Célio Pedreira - Ensaio Poético


NOSSA SENHORA DO ACERVO DAS INTENÇÕES



Um tempo quase desistindo de ser arremeda esses dias antigos da rua que insiste em chegar sempre nos átrios. Assim propenso a vigília sinto os benditos de Dona Miúda estreitarem os quintais para habitar uma sala de chão batido. A parede escuta mesmo. A parede da sala até responde o bendito entoado. Outras vozes se juntam para alcançar os agudos e seguir a procissão das almas. As almas vão abrindo cancelas, achando caminhos por entre as candeias. As almas entendem a luz das candeias como trilha para um dia e depois o outro dia, devagar.

Aqui se repara o tornar de beatas, a desfiar pendor de madrugadas para abrandar essa vida amuada. Usuárias de calejar-se, nem alegam o copioso enfado de refazer sobras de caminho.

Dona Miúda assenta um tapete em renda suave no chão da sala para um bálsamo aos joelhos que lamentam as almas. As vozes agora nem mais necessitam das bocas e conseguem romper portais, janelas e candeias. As vozes já montam seus cavalos e se atiram nos breus das almas. Segue noite alta já. As almas dispersam em redes e balançam um adormecer na intenção de amanhecer.

O dia é igual dia de lida mesmo. Lenha, fogo, panela pouca e a boca que espera o bendito para saciar a vida. Dona Miúda abana a brasa e sabe que o fogo é quem tempera a salvação das almas. Dona Miúda lembra que toda sorte de morte pode ter serventia de canto, o alimento mais precioso das almas. Por isso o chão da sala precisa ser lavrado de bendito, para alimentar a vida. Para fazer a farinha se juntar com a carne frita na boca das almas. Sem isso a fome é certa e a intenção da vida míngua.

Tardezinha, depuradas em santas, as rezadeiras se juntam para ciscar os silêncios, ou talvez surdir um mercê para ficar implicadas de amém.


Imagem retirada da Internet: procissão das almas

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