José J. Veiga - Entrevista


Entrevista com José J. Veiga



por Fabio Weintraub, Sergio Cohn e Ruy Proença*



Falecido em outubro de 1999, José. J. Veiga — autor, entre outros títulos, de Cavalinhos de Platiplanto e A máquina extraviada — fala de sua infância, sua amizade com Guimarães Rosa, discorre sobre as imposturas da globalização e comenta aspectos de sua obra com os poetas Fabio Weintraub, Ruy Proença e Sérgio Cohn nesta que foi a última entrevista concedida pelo escritor.


WEBLIVROS!: O senhor costuma dizer que a denominação de fantástico para a sua literatura deve ser usada com cautela. Aquela hesitação entre o natural e o sobrenatural característica do gênero fantástico, segundo Todorov, talvez não funcione aqui no Brasil, onde o fantástico está mais perto da gente...

José J. Veiga: Esse fantástico precisa ser muito pensado, estudado, porque não é tão fantástico assim. É o que acontece mesmo. Por exemplo, os medos que acompanham aquelas pessoas, aquelas crianças todas, existem muito nos lugares pequenos do interior, ao menos para as pessoas do meu tempo, da minha geração. Quando fazia frio, as crianças ouviam, ao pé do fogo na cozinha, as pessoas mais velhas contando estórias de assombração, coisas inexplicáveis que aconteciam. A gente ia dormir preocupado com aquilo. E sonhava, tinha pesadelos incríveis em função daquelas estórias que ouvia. Embora muito alegre durante o dia, com sol e tudo, a vida da gente, de noite, quando nem luz elétrica havia, era uma coisa assustadora mesmo. Além disso, coisas incríveis como a lepra, erradicada de muitos países, acontecem ainda aqui. O desrespeito pela pessoa exercido pelos poderosos..., fantástica mesmo é a existência de sociedades que ainda toleram isso no mundo de hoje, com um pé já no novo milênio. Dizia-se que o ano dois mil seria um marco. Desde criança, ouço falar nisso, no "admirável mundo novo". Mas, para nós, parece que estamos ainda lá atrás. Vai custar a chegar.

WEBLIVROS!: Um tema bastante recorrente nos seus livros é o da perplexidade diante do estrangeiro. Fale um pouco disso.

José J. Veiga: Aí entram também coisas da infância. No lugar pequeno em que a gente morava, meio fora de mão, só se viam as pessoas dali mesmo, que eram poucas e alcançáveis pela visão. Então, quando chegavam pessoas de fora, a gente ficava recuando, assim, olhando, não é?, se defendendo. Aquilo fica impregnado na cabeça da gente e nos acompanha por muito tempo. O estranho, o ainda não visto, é o invasor.

WEBLIVROS!: O senhor mencionou que o que diferencia o escritor do cidadão normal é o olhar indagativo, a depuração do olhar, atento para as coisas. Em seu último livro, Objetos turbulentos, o senhor descreve uma série de objetos minuciosamente dentro desse universo fantástico. Um deles é o cachimbo, que já aparecera no Relógio Belisário e reaparece agora em um conto. A descrição é pormenorizada, minuciosa. Além do fato de ter sido, talvez, um usuário do cachimbo, queria saber se o senhor costuma fazer pesquisa prévia dos detalhes, como fazia o Guimarães Rosa, de quem o senhor foi amigo...

José J. Veiga: Gosto de que todos os objetos e situações sejam visualizados por quem lê. Procuro dar o máximo de informações para que o leitor possa ver o objeto. E também olho muito para fixar a imagem dele e para tentar reproduzi-lo depois com palavras, de modo que o leitor o veja. Aliás, por falar em Guimarães Rosa, que eu li muito, no Grande Sertão, na página 284 da edição da José Olympio, há uma coisa curiosa. É logo após um combate no qual o bando de Riobaldo foi dizimado. Ele escapa, se mete num lugar que ele conhecia, fica lá, só pescando... Ele fala dos peixes, dos passarinhos com todos aqueles nomes, tudo explicadinho, as plantas que havia, as florzinhas silvestres... É um longo parágrafo que ele termina, vejam a sonoridade, dizendo: "Esse lugar chamava-se Guararavacã do Guaicuí. Hoje se chama Caixerópolis". (risos) Ele derruba, não é? (risos)

WEBLIVROS!: Ainda com relação ao cachimbo, queria que o senhor nos falasse novamente do absurdo que é acendê-lo com isqueiro.

José J. Veiga: Ah, mas é mesmo. O cachimbo é uma coisa para você curtir. Eu, por exemplo, fumo cachimbo, mas não carrego pra rua. Não se fuma em qualquer lugar. Só em casa, no seu ambiente, com o fumo que você escolheu, uma preferência definida: se não tiver daquele tipo, você não fuma. Cada fumo tem um gosto. Então você tem que acender com muita cautela. Uma vez um cara me recebeu na Biblioteca Nacional, fumante de cachimbo, me convidou. Daí todo aquele ritual, não pode apertar muito o fumo e tal. Quando eu fui ver, ele pegou o isqueiro e... Nossa! Onde já se viu? O cheiro do fluido à base de petróleo contamina o gosto, estraga tudo, não presta a cachimbada. A maneira correta de se acender é com o fósforo, depois que queimou a cabeça química e ficou só a madeira. Por isso, para acender bem o cachimbo, você pode gastar até três, quatro fósforos. Não é frescura não.

WEBLIVROS!: O senhor falou que o cachimbo deve ser fumado em casa. Justamente nesse conto sobre o cachimbo, o protagonista vai fumar fora de casa e aí acontecem as piores coisas... (risos)

José J. Veiga: Punição. (risos)

WEBLIVROS!: Por que existe esse mito de que o cachimbo deve ser fumado em casa?

José J. Veiga: Mas não é mito! É fato mesmo. (risos) Em casa ou no trabalho. Em um ambiente onde ninguém proteste, você pode fumar como se estivesse em casa. O cachimbo dura, não é? Uma cachimbada satisfaz por muito tempo. Cigarro você fuma um, dali a pouco tempo já está com vontade de fumar outro. Como eu trago a cada baforada que dou, o cigarro é triste. Já o cachimbo não. Fico com ele na boca, chupo, sopro, chupo, sopro..., de vez em quando eu tiro e dou uma tragada boa, assim, gostosa. Então a gente aspira menos a parte tóxica do fumo. É uma coisa boa.

WEBLIVROS!: E qual o seu fumo preferido?

José J. Veiga: Tem dois. Um é muito difícil de encontrar. Quando algum amigo viaja à Inglaterra, peço para me trazer. Chama-se Saint Julian. Tem um cheiro assim, lembra uma coisa brasileira: umburana. É suave. Gosto de fumo suave. E tem o Players Navy cut, suave também, mas esse você tem que desfiar. O outro já vem desfiado, fofinho. Esse vem numas plaquetinhas dentro da lata. Você tem que cortar na mão, separar. São esses dois que eu estou fumando. Recentemente ganhei um bom estoque do meu editor, que viajou e me trouxe.

WEBLIVROS!: Mas, voltando a seu último livro, Objetos turbulentos, os contos deixam a impressão de um certo "fetichismo", como se a relação com o objeto se impusesse...

José J. Veiga: Mas há mesmo fetichismo. Os objetos que você usa em casa, que fazem parte da sua vida como se fossem da família, suscitam um apego enorme. Quando acabam, quebram ou ficam inutilizados, me dá uma certa tristeza... Poxa, aquele aparelho de barba, tão bom, que eu tinha, caiu, entortou, não entra mais a lâmina..., que pena. Posso comprar outro, mas não é o mesmo. Tenho apego às coisas que me servem, das quais eu me sirvo.

WEBLIVROS!: Refiro-me ao fetichismo no sentido mais especificamente psicanalítico e aproveito para perguntar se há leituras psicanalíticas da sua obra, se o senhor acha que procedem...

José J. Veiga: Muitas. Já desde Os cavalinhos de Platiplanto. Um psicanalista, que tenha tempo e pachorra para pesquisar aquilo, vai encontrar muita coisa que explique o comportamento daqueles personagens forjados com a intenção de espelhar o comportamento do ser humano em formação. Aí está a questão da observação. Eu observo o comportamento da juventude, comparo com o que era no meu tempo... É sempre a mesma coisa passando-se em outra época, com outros ingredientes, mas, no fundo, é sempre o ser humano querendo amansar um pedaço do mundo para nele se instalar e ser o mais feliz possível.

WEBLIVROS!: O senhor já declarou que, se tivesse que indicar apenas um de seus livros para um leitor que quisesse conhecer a sua obra, indicaria Os cavalinhos de Platiplanto, porque todas as suas inquietações já estavam lá. Todo autor acaba se prendendo a algumas questões?

José J. Veiga: O autor é orientado por preocupações que ele carrega desde a infância, quando se dá a tomada de consciência, e o conduzem pela vida afora. Aqueles são os problemas em volta dos quais ele trabalha para fazer isso que acabei de falar: domesticar um território, um pedaço do mundo, para nele se instalar e procurar viver com o menor sofrimento possível. Isso é permanente na alma humana e comanda a vida das pessoas, embora o autor talvez nem tenha consciência disso. Mas, no final das contas, é o que ele está fazendo. Eu evito muito, por exemplo, noticiários de imprensa, de televisão, as cenas desses massacres, desse esmagamento do ser humano indefeso. Isso me causa tanto mal que, hoje em dia, estou me preservando. Já absorvi muito disso, já tenho bastante coisa dentro de mim para trabalhar. Chega, já estou lotado.

WEBLIVROS!: O senhor disse que já foi criticado por escrever uma literatura otimista demais...

José J. Veiga: Ah, foi. Disseram isso a propósito do final do livro A hora dos ruminantes. Eu não acreditava que aquela ditadura tivesse condições de durar muito. Achei que ela ia se dissolver. Demorou muito mais do que eu esperava. Em A hora dos ruminantes, eu pensava que ela ia ser curta. Por isso aquele final otimista. Os ruminantes foram embora, deixaram a sujeira aí, mas a gente limpa. O relógio da igreja, que estava parado há muito tempo, enguiçado, foi consertado, bateu horas, todo mundo se animou. Fui muito criticado por alguns, que me acharam muito otimista. Daí eu fiz uma espécie de continuação em Sombras de reis barbudos, livro no qual a repressão e o esmagamento chegam ao auge. Mas no fim, pensando bem, a ditadura acabou como está em A hora dos ruminantes: saiu pela porta dos fundos, não foi? O Figueiredo nem entregou a faixa ao Sarney, saiu pelos fundos, desmilingüiu como os ruminantes. Até hoje ninguém sabe direito como foi. Simplesmente foram embora. Viram que não estavam agradando. (risos)

WEBLIVROS!: E hoje? O senhor segue sendo otimista?

José J. Veiga: Não. Acho que depois que acabou esse negócio todo, veio aquela grande esperança, falou-se na Nova República e tal... Mas o esmagamento continua. Disfarçado. Não tem ditador, mas tem entreguismo, loteamento do país... Fala-se muito hoje em globalização, abertura de mercados. Abertura dos nossos mercados. Continua como sempre foi: os países periféricos vendendo matéria-prima a baixo preço e importando de volta produtos caríssimos, já com o trabalho deles lá, com o salário bom deles. Aqui, todo mundo desempregado e importando coisas. Pelas leis internacionais acabou a proteção aduaneira; mas existem as sobretaxas. O que é isso? É proteção aduaneira com outro nome.

WEBLIVROS!: E essa desvalorização, também se estende à literatura? Uma vez o Mário Faustino, comentando um poema do Jorge de Lima, disse que se o poema fosse escrito em inglês ou francês estaria entre os dez mais belos do século.

José J. Veiga: O problema não se deve à língua. O português hoje é a sétima língua mais falada do mundo. Veja quantas línguas ficam para trás. Se repete muito isso: "Ah, se eu escrevesse em outra língua que não o português..." Isso é uma bobagem imperialista. Eu nunca ouvi falar de um escritor holandês que ficasse chorando pelos cantos, dizendo: "Pobre de mim que escrevo numa língua pouco falada..." (risos) Nem um sueco, nem um alemão. Quem é que fala alemão hoje? Só Alemanha e Áustria. O português é muitíssimo falado. Então, não é por aí. O que falta é o respaldo. Se a gente tivesse uma bandeira, alta, forte, o português seria falado, estudado e todo mundo poderia aprender.

WEBLIVROS!: Há obras de ficção que remetem a universos muito específicos. Quando lhe perguntaram se havia lido o Ulisses do Joyce, o senhor disse que não, pois tal livro exigia um conhecimento enorme do folclore estrangeiro...

José J. Veiga: Mais especificamente do folclore irlandês. A Irlanda é um paisinho pequeno com uma enorme importância literária. São todos descendentes dos celtas, não é? Há até um poema do Yeats, lindo, que fala dos celtas, pais deles todos. Mas sinceramente não vejo motivo para eu me aprofundar num assunto tão específico só pra entender um livro.

WEBLIVROS!: Mas se pode pensar um pouco no reverso da moeda. O Guimarães Rosa seria um autor também difícil aos olhos de um irlandês. Em relação à sua obra, eu pergunto: o senhor acha que ela é mais facilmente traduzível ou ela coloca problemas semelhantes aos que a obra do Rosa oferece aos estrangeiros?

José J. Veiga: Não, o Rosa é muito mais difícil porque, como o Joyce, inventava palavras. Emendava palavras cuja etimologia você precisa conhecer para deduzir o que ele estava falando. Palavras sorrateiras: uma parte vem daqui, outra dali..., caramba! Às vezes invento palavras, quando não acho nenhuma que me sirva. Mas invento de uma maneira tal que, pelo contexto, o lei,tor pode deduzir o significado. Dá pra sacar o que é.

WEBLIVROS!: E a sua amizade com Guimarães Rosa? Como foi mesmo que o conheceu?

José J. Veiga: Nós nos conhecemos por causa de gatos. Eu e minha mulher tínhamos muitos gatos em casa e ele, quando voltou da Europa, após cumprir uma temporada em Paris, trouxe gatos de raça. Nós tínhamos um veterinário que tratava dos nossos gatos, o Dr. Nilo, professor de veterinária. Um dia uma gata do Rosa ficou doente e indicaram o Dr. Nilo. Dona Araci telefonou para ele, que morava num subúrbio, e estava doente, não podia atender. Mas ele disse: "A sra. telefone para Dona Clérida Veiga, ela entende tanto de gatos quanto eu". Decerto ele julgou, pela descrição dos sintomas ao telefone, que não era nada de muito grave e minha mulher podia resolver. Então, ele deu nosso telefone para Araci, ela telefonou. Minha mulher escutou, recomendou as coisas que ela achava cabíveis. A gata ficou boa e a Araci telefonou depois, muito agradecida, nos convidando para ir à casa dela ver os gatos. Fomos e descobrimos que ela era Araci Guimarães Rosa. Perguntei-lhe se era parente do escritor. "Sou mulher dele", ela respondeu. Então eu falei que tinha lido Sagarana em Londres e que tinha gostado muito. Depois da visita, nós a convidamos para vir a nossa casa. Ela então veio. Com o marido. O Rosa foi lá no meu escritorinho, viu os meus livros, pegou um, pegou outro, perguntou, sentou, começamos a conversar..., e daí partiu a amizade que tivemos até a morte dele. A gente estabeleceu um regime: um domingo eu e minha mulher íamos até a casa dele — almoçávamos e ficávamos até a noitinha — e na semana seguinte eles vinham à nossa casa. Foi assim por muitos anos. Eu acompanhei a composição do Corpo de baile inteirinha. Ele lia pra gente. As nossas mulheres choraram muito com a história do menino que teve gangrena no pé e ia morrer. A mãe se lamentando: "Coitadinho, olha o pezinho dele". Quando eu vi, as duas mulheres estavam em pranto. Acho que é no "Miguilim". O Rosa também era muito espírito de porco, provocador, adorava discutir. Um dia ele tomava a defesa do Getúlio Vargas, de quem nunca gostei. Era terrível, eu protestava. Passado algum tempo, ao me ouvir dizer que o Getúlio, apesar de tudo, havia criado leis e dispositivos que, é preciso reconhecer, ajudavam muito o trabalhador, ele retrucava: "Que Getúlio nada, Getúlio é um safado e tal..."; esquecendo o que ele mesmo havia dito anteriormente. (risos)

WEBLIVROS!: O senhor falou que o Guimarães Rosa gostava de ler os textos dele em voz alta para vocês. O senhor lê seus livros em voz alta para pensar o ritmo?

José J. Veiga: Para mim, leio. Acabo de escrever um trecho, algumas páginas, daí eu paro, dou uma leitura. Uma coisa importante é a pontuação. Os gramáticos convencionaram que todo advérbio deve vir entre vírgulas: "Eu, vírgula, pessoalmente, vírgula... ". Se o aluno escrever e não puser vírgula, tira má nota. "Olha aí o advérbio, cadê as vírgulas?" Eu não faço isso, deixo que a vírgula seja a respiração de quem está lendo ou falando. "Eu pessoalmente não gosto disso." Para que a vírgula? Preocupo-me muito com o ritmo. Em certos trechos, há mesmo certa musicalidade. Tenho muito que ver com música, som, som das palavras. O som delas chacoalhando lá na frase.

WEBLIVROS!: Quando você vai começar um livro novo, você pensa assim: "Vou experimentar agora tal tipo de estrutura, de narrativa, o som das frases e tal..."?

José J. Veiga: Penso, conforme o assunto. Acho que o assunto comanda muito isso. Isso exige um ritmo tal..., e vou tentando fazer aquilo. Mas depois, lá adiante, eu me interesso muito pelo que estou fazendo e esqueço um pouco o planejamento. Quando faço a revisão para passar a limpo, reformular, aí então volta a idéia. Então o planejamento entra e, às vezes, não entra; porque ficou desnecessário, ou relegado a um segundo plano, esquecido. Acho que cada um, sem perceber, tem um ritmo. A cabeça, o modo de pensar, de articular, emendar as idéias, as frases, é dele. Está embutido, ele não precisa perder tempo se preocupando com isso, porque vem naturalmente. Ele tem a batida. É claro que o ritmo muda. Numa narrativa você joga com as diferenças. Tem hora que a coisa se acelera, hora em que você entra numa mansidão, num ritmo mais lento, compassado. Mas isso não deve ser a preocupação primeira. A não ser para um principiante, que ainda não descobriu as coisas. Então ele tem de levar isso em conta se quiser fazer as coisas conscientemente. Depois isso se torna natural. É como o estilo. Antigamente havia manuais de estilo. Você precisava primeiro formar um estilo. Até que se descobriu que não, o estilo se forma por si. Eu li no tempo do ginásio um livro de um francês chamado Antoine Albalat: A arte do estilo, traduzido pelo Cândido de Figueiredo. Era interessante, ensinava coisas. Havia transcrições de autores antigos, inclusive de autores gregos traduzidos para o francês, boas traduções que mantiveram o ritmo etc. Foi bom. No Brasil, algo semelhante foi feito por um professor da Fundação Getúlio Vargas, muito amigo do Antônio Houaiss, Othon Moacyr Garcia. O livro chamava-se Comunicação e prosa moderna. Quando eu fui dirigir a editora, fiquei espantado: como se vendia aquele livro! Edições de dez mil exemplares saíam uma após outra, uma após outra. Muita coisa. O livro do Albalat dizia o que se deve evitar: repetições do "que", repetições do pronome..., é útil.

WEBLIVROS!: E aquela história de as palavras terem aura? Que não se pode comprimir a aura das palavras como se aperta o gado num curral?

José J. Veiga: Sim, as palavras demandam espaço, mais espaço do que o espaço físico que ocupam na linha. Deve haver espaço para que elas possam respirar. Se você bota muita palavra enquanto escreve, se você se empolga e tudo vem fácil, desconfie. Cuidado com o que vem fácil demais, porque em geral não é bom. Depois da empolgação, você vai ler e descobre que tem palavra demais. Tem que arejar o texto. Uma sala grande cheia de coisas não dá gosto de ficar. É preciso tirar algumas coisas para tornar o ambiente acolhedor. Assim é com o texto também. Você tem que tirar a palavra que entrou sem licença, clandestina, sem pagar entrada, sem contribuir para o andamento da história. Tem que desbastar, tirar o bagaço.


* Fabio Weintraub, poeta e editor, autor de Sistema de Erros (SP: Arte Pau-Brasil, 1999).

* Sergio Cohn, poeta e editor da revista azougue, autor de Lábio dos Afogados (SP: Nankin, 1999).

*Ruy Proença, engenheiro e poeta, autor de A lua investirá com seus chifres (SP: Giordano, 1996) e Como um dia come o outro (SP: Nankin, 1999).


Bibliografia de José J. Veiga

Os cavalinhos de Platiplanto (contos). Rio de Janeiro, Nítida, 1959.

A hora dos ruminantes (romance). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966.

A máquina extraviada (contos). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967.

Sombras de reis barbudos (romance). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972.

Os pecados da tribo (novela). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1976.

De jogos e festas (novelas). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980.

Aquele mundo de Vasabarros (romance). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1982.

Torvelinho dia e noite (romance). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1985.

A casca da serpente (romance). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989.

O risonho cavalo do príncipe (romance). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1992.

O relógio Belisário (romance). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1995.

Objetos turbulentos (contos). Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1998.

(observação: desde 1997 o autor integra o Catálogo da Bertrand Brasil, tendo toda a sua obra anterior publicada por essa editora).


Esta entrevista foi publicada originalmente pela WEBLIVROS.


Imagem retirada da Internet: José J. Veiga

Célio Pedreira - Poema


Nascido em Porto Nacional, no Estado do Tocantins, Célio Pedreira é uma das nossas mais autênticas vozes poéticas. Sem artificialismos poéticos, consegue traduzir o substrato tocantino com leveza e muito lirismo. Transitando muito bem pelos gêneros textuais, não se deixa aprisionar pelos modismos, pela pressa em publicar. O seu compromisso é com a poesia, com a natureza e com a cultura do Tocantins.




VILA COVALESCENÇA


As dobras das tardes
invadindo os hábitos
das calçadas viventes
feito tarefa de moça
a ocultar-se.

Sobras de olhar
e mãos desprovidas
cadeira sem espaldar
conversas dormidas.

Tomo posse da vista
para o benefício da comoção
posto que sou encarregado
em bocados de portos.


Imagem retirada da Internet: Olhar

Camilo Pessanha - Poema














SAN GABRIEL (II)


Vem conduzir as naus, as caravelas,
Outra vez, pela noite, na ardentia,
Avivada das quilhas. Dir-se-ia
Irmos arando em um montão de estrelas.

Outra vez vamos! Côncavas as velas,
Cuja brancura, rútila de dia,
O luar dulcifica...Feeria
Do luar não mais deixes de envolvê-las!

Vem guiar-nos, Arcanjo, à nebulosa
Que do além vapora, luminosa,
E à noite lactescendo, onde, quietas,

Fulgem as velhas almas namoradas...
- Almas tristes, severas, resignadas,
De guerreiros, de santos, de poetas.


In.Clepsidra. Camilo Pessanha (Parte II). São Paulo:Princípio, p.25, p.1989.
Imagem retirada da Internet: CARAVELA.

Camilo Pessanha - Poema














SAN GABRIEL (I)



Inútil! Calmaria. Já colheram
As velas. As bandeiras sossegaram,
Que tão altas nos topes tremularam,
- Gaivotas que a voar desfaleceram.

Pararam de remar! Emudeceram!
(Velhos ritmos que as ondas embalaram)
Que cilada que os ventos nos armaram!
A que foi tão longe nos trouxeram?

San Gabriel, arcanjo tutelar,
Vem outra vez abençoar o mar,
Vem-nos guiar sobre a planície azul.

Vem-nos levar à conquista final
Da luz, do Bem, doce clarão irreal.
Olhai! Parece o Cruzeiro do Sul!


In. Clepsidra. Camilo Pessanha. (Parte I) São Paulo: Princípio,p.24, 1989.
Imagem retirada da Internet: Nau

Camilo Pessanha - Poema














Inscrição


Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...



In. Clepsidra. Porto: Editora Nova Crítica, p11, 1989.
Imagem retirada da Internet: Lua

Herberto Helder - Poema

















O Amor em Visita


Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
ele — imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
— Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria!
Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.

E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.

- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.

Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.

E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe
a força maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.

Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho, no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.

Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.


Imagem retirada da Internet: mulher

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