Flávio Paranhos - Conto


Pensando bem



- Vou me matar.

- Eu também.

Soren e Arthur estavam sentados em uma mesa de bar. Conversavam. Pensavam muito antes de dizer cada palavra. Lá pelas tantas, Arthur quebra o silêncio:

- Acho que deveríamos ser mais espontâneos – propõe.

- E não estamos sendo? – estranha Soren.

- Não. Estamos pensando muito antes de falar.

- E o que é que você queria?

- Mais objetividade.

- Tem razão. Mas, pensando bem, para quê, se vamos ambos nos matar?

- Vamos realmente?

- Vamos. Ou você não foi espontâneo?

- Fui espontâneo, mas não absolutamente sincero.

- Isso não é bonito. Ou é?

- Não é. Entretanto, também não é bonito que nos matemos.

- Do ponto de vista religioso?

- De qualquer ponto de vista.

- Mas a existência é fútil.

- Quem está citando?

- Ninguém. Ou a mim mesmo, não sei...Nunca sei se falo o que penso ou o que os outros pensam.

- Todos falamos o que todos pensamos.

- Está citando alguém?

- Não.

Novo silêncio. Arthur, absorto, fita o próprio copo de cerveja.

- Em que está pensando? – pergunta Soren.

- Esta pergunta é perigosa.

- Por quê?

- Poderia lhe dar um livro como resposta.

- É mesmo...Deixa pra lá.

Soren observa para o copo de cerveja de Arthur que, percebendo, lhe oferece:

- Quer um pouco?

- Não, obrigado.

- Se não quer um pouco de minha cerveja, por que está olhando fixamente para ela?

- Estou olhando para sua cerveja da mesma maneira que você.

- Então está olhando com sede.

- Pensei que estava usando seu copo de cerveja apenas como um gancho entre este mundo que podemos observar e algo além.

- Está definindo a metafísica?

- Talvez. De qualquer forma, não estou olhando para sua cerveja com desejo.

Arthur bebe a cerveja de um só gole, esvaziando o copo.

- Parece gostosa - observa Soren.

- A cerveja?

- Sim. Vendo você beber me dá vontade de beber também.

- Então beba.

- Mas aí estragaria minha vontade.

- Vontade de beber cerveja?

- Vontade de me matar.

- Está realmente com vontade de se matar, ou esta é apenas uma representação?

- Acho pernóstico citar a si mesmo.

- Não estou me citando. Quis dizer representando um papel. Quase mentindo.

- Se fosse esse o caso, não mereceria minha atenção.

- Pode ser. Por outro lado, também pode ser que estejamos representando um papel para nós mesmos para que possamos nos livrar da angústia que nos persegue.

- Faz sentido.

- Tudo faz.

- Nem tudo.

- O que não faz?

- A religião.

- Não entremos neste assunto.

Calam-se por alguns minutos. Soren olha a cerveja com um esforço descomunal para enxergar além. Nada. A não ser a imagem deformada de uma mosca pousada sobre a mesa. Seria o bastante? Pouco provável. Com um golpe desastrado, Arthur mata a mosca e derruba metade do conteúdo do copo.

- Que desperdício - diz Soren, e acrescenta em seguida, sem muita convicção: - É... Acho que vou me matar.

- Eu também – concorda Arthur, distraidamente.

- Vontade ou representação?

- Está me citando?

- Não. Quer dizer, estou, mas apenas o que disse há pouco.

- Sendo assim, acho que estamos representando.

- E resolve?

- Deveria.

- Falar sobre a angústia exaustivamente nos livraria dela?

- Penso que sim.

- Pensamos demais...

- Se pensássemos menos...

- Resolveria?

- Se nada pensássemos...

- Aí seríamos como as formigas-operárias.

- Ou os operários homens mesmo.

- Sua existência transcorre sem questionamentos.

- Refere-se à minha existência ou dos operários?

- Dos operários. Sua vida passa sem que se perguntem coisas que sabem que não têm resposta.

- Minha vida? – Arhur não estava em uma boa fase para generalizações..

- Mas será possível!? – irrita-se Soren.

- Está bem. Já entendi. Os operários não pensam.

- É claro que pensam. As formigas é que não pensam. A diferença é que os homens operários pensam apenas o básico. Vêm ao mundo com um pacote básico de pensamentos.

- Determinista?

- Apenas um exemplo. O problema é que os homens operários possuem um cérebro capaz de, num repente, traí-los e pode acabar por mostrar-lhes o que realmente são.

- E o que são, realmente?

- Nada.

- Não está exagerando?

- Nada são. Trabalham de segunda a sábado e no domingo descansam. Pronto, é só o que há.

- Neste caso, seria melhor ser uma formiga.

- Isso.

- E se as formigas também tivessem consciência da própria mediocridade?

- Seria terrível e até pior do que os homens, mas não acredito nisso.

- Também não acredito.

Arthur bebe o resto de cerveja que sobrara. Soren pede uma ao garçom.

- Mudou de idéia?

- A respeito...

- A respeito da cerveja estragar sua vontade de se matar.

- Mudei. Mas vou me matar assim mesmo.

- Eu também.

Novo silêncio, que Arthur quebra tamborilando os dedos na mesa de madeira, sem forro, incomodando bastante Soren, que procura retomar logo o assunto:

- Voltemos ao assunto das formigas.

- Voltemos a elas – assente Arthur, aquietando a mão, para alívio de Soren.

- Não acha que são extremamente felizes e, ainda por cima, têm segurança absoluta nesta felicidade?

- Concordo quanto à felicidade, mas... Segurança absoluta?

- Sim. Os operários homens, apesar de elaborarem em seu dia-a-dia apenas pensamentos básicos necessários à sua subsistência, podem, de uma hora para outra, começar a ter idéias subversivas.

- Subversivas como?

- Como para quê trabalhar tanto e sempre, ininterruptamente, até aposentar de velho ou morrer.

- O que aconteceria?

- Ficariam loucos, angustiados, melancólicos...

- O que, de fato, por vezes acontece.

- Acontece. E aí, como não têm com quem dividir esta melancolia extrema, matam-se.

- Eu também.

- Calma. Ainda não terminei.

- Prossiga.

- Se, ao invés de operários, estes indivíduos pertencessem a uma classe intelectual...

- Como nós?

- Como queira. Se fossem intelectualmente diferenciados, teriam acesso a uma leitura e conversas com pessoas extremamente angustiadas...

- Como nós?

- Como nós. E este acesso à melancolia intelectualizada poderia ser sua salvação.

- Racionalizar a angústia?

- Precisamente.

- E nós?

- Nós não somos apenas medianos com acesso a educação. Nós somos a educação.

- Acho que isso foi pretensioso.

- Totalmente. No entanto, é o que somos. Pretensiosos.

- Sendo assim, vou me matar.

- Eu também.

- Vamos nos matar de que maneira?

- Por enquanto, de maneira nenhuma.

- Estamos representando?

- De certa forma, sim.

- Sabia!

- É uma representação necessária. Afinal, estamos resolvendo os problemas do mundo aqui.

- Estamos?

- Estamos.

- Tem razão. Somos um bocado pretensiosos.

Arthur sinaliza para o garçom, queria mais cerveja. Suspira, enquanto observa algumas crianças brincando na pracinha em frente ao bar.

- Vou me matar.

- Eu também.

O garçom traz mais dois copos cheios.

- E se o sentido da vida fossem os pequenos prazeres? Como esta cerveja, por exemplo? – Arhur levanta o copo e o examina contra a luz do sol, escondido atrás de várias nuvens. O dia estava idealmente cinzento.

- E quem está buscando um sentido para a vida?

- Não estamos?

- Pois não vamos nos matar?

- É verdade. A não ser que estejamos apenas representando.

- Temos que nos matar. Não é possível que saibamos tanto e não nos matemos.

- Por quê?

- Tanto conhecimento tem que levar à loucura completa.

- Ou à completa melancolia.

- Isso.

- Mas se racionalizarmos nossa melancolia?

- Como bons medianos?

- Como bons medianos.

- Não o somos.

- Nada nos impede.

- Racionalizemos, então.

- Já o fazemos.

- É verdade...Mas vou me matar assim mesmo.

- Eu também.


In. Epitáfio. São Paulo: Nankin, 2003.
Imagem retirada da Internet: mesa de bar

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário aqui

Leia também

Valdivino Braz - Poema

Soldado ucraniano Pavel Kuzin foi morto em Bakhmut  - Fonte BBC Ucrânia em Chamas - Século 21                               Urubus sobrevoam...