Hélio Pólvora - Os Dez Mandamentos do Conto



 Uma poética do Conto Literário



Horacio Quiroga, autor de Cuentos de la selva, El desierto e Los desterrados, entre outros livros, elaborou em Buenos Aires, 1927, o Decálogo do Perfeito Contista. O contista gaúcho Sérgio Faraco submeteu o decálogo a alguns contistas brasileiros, entre eles Hélio Pólvora, que emitiu os seguintes pareceres:


                                                                 I

Crê num mestre — Poe, Maupassant, Kipling, Tchékhov — como na própria divindade.

Creio em Edgar Poe, que estudou a estrutura da história curta e para ela cunhou o tributo de “singular efeito único”. Poe foi o mestre do gothic appeal — e convenhamos que o leitor gosta de mistérios, sejam os do sobrenatural, sejam os da personalidade. Não creio mais em Maupassant, porque concordo com Sherwood Anderson: não há, na vida, histórias seqüenciadas; há “instantes” que devem atuar como epifanias. O conto maupassantiano tem início, miolo e fim bem elaborados, numa fusão episódica que se sobrepõe a acontecimentos normais da vida. Não divinizo Rudyard Kipling apenas por causa da sobrecarga de exotismo Mas creio no todo-poderoso Anton Pavlovitch Tchékhov, Senhor do Conto, do qual retirou o arcabouço clássico para que pudesse espelhar a vida baça. E creio, também, em Machado de Assis, que escreveu contos funéreos à maneira de Poe, contos anedóticos à feição de Maupassant e contos modernos, tchekhovianos, nos quais os silêncios eloqüentes valem por todo um manual de ambigüidade e apelo à cumplicidade de quem o lê.

                                                                   II

Crê que tua arte é um cume inacessível. Não sonhes dominá-la. Quando puderes fazê-lo, conseguiste sem que tu mesmo o saibas.

Sim, olhemos sempre para o alto, para as distâncias. Mas o conto, tal como a Casa Celestial dos crentes, tem várias mansões e muitos são os caminhos até elas, segundo o ponto de vista (viewpoint) do autor. Os mestres devem ser tomados como referência, não como ídolos onipotentes e inalcançáveis. Dentro de cada contista que se sente maduro ou em vias de amadurecer há, pelo menos, um facho a guiá-lo na noite escura da criação. Quando esse facho crescer a ponto de se transformar em tocha olímpica, então as cordilheiras e os cumes das cordilheiras estarão a seus pés. Para isso não bastam as musas: Hemingway falou em dez por-cento de inspiração e noventa por-cento de transpiração.

                                                                  III

Resiste tanto quanto possível à imitação, mas imita se o impulso for muito forte. Mais do que qualquer coisa, o desenvolvimento da personalidade é uma longa paciência.

Nesta nossa modernidade, ou pós-modernidade, como queiram, predominam temas recorrentes: a literatura de ficção está sempre a reescrever-se. Mas não se trata de remake, porque serão sempre o temperamento e a formação do autor, com o seu ponto de vista, que farão do tema assemelhado um relato novo e original. Quiroga tem razão: há que confiar no desenvolvimento da personalidade. “Meu amigo, façamos contos”, disse Diderot, citado por Machado de Assis como epígrafe a Várias Histórias. “O tempo passa e o conto se completa sem disso darmos conta”. Jorge Luís Borges disse que “o conto, por sua índole sucessiva, corresponde intimamente a nosso ser que se desenvolve no tempo”. Verdade: no conto nada se perde, tudo se completa e se transforma. O conto é para quem o escreve — e quem o lê — meio de busca e averiguação. Brota bem de dentro do autor, tanto quanto o poema. O conto é a maneira de o autor-narrador conviver com os seus conflitos básicos. Por isso o conto há de aprimorar-se, ou simplesmente mudar, na medida em que o autor-narrador muda de conceito, ponto de vista e insight. O conto, ainda que acabado, estará sempre a pulsar, a germinar e a fermentar nos misteriosos meandros das entrelinhas.

                                                                   IV

Nutre uma fé cega não na tua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que o desejas. Ama tua arte como amas tua amada, dando-lhe todo o coração.

Reconheço que é preciso acreditar, embora de desilusão em desilusão estejamos a perder as velhas crenças. Mas a fé no conto literário prevalece nos contistas ardorosos. Estes vêem no conto um enigma, uma esfinge a decifrar — ou então um espelho em que refletir e identificar a própria personalidade. Sem o ardor dessa identidade amorosa, caminha-se com mais vagar e tropeços. E, como disse o poeta António Machado, “el camino se hace al andar”. O contista William Saroyan fez praça de franqueza: quando tivermos fome, devemos comer com vontade, quando sentirmos raiva, devemos estrebuchar de cólera. E, analogamente, quando estivermos a escrever um conto, entreguemo-nos a ele de corpo e alma. Mesmo porque, conforme lembrou Saroyan, “cedo morreremos”. E disse mais: “Do not pay any attention to the tales other people make, I wrote. They make them for their own protection, and to hell with them. (…) Forget Edgar Allan Poe and O. Henry and write the kind of stories you felt like writing. Forget everbody who ever wrote anything”. Palavras da introdução a The Daring Young Man on the Flying Trapeze.

                                                                      V

Não começa a escrever sem saber, desde a primeira palavra, aonde vais. Num conto bem-feito, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância das três últimas.

Há quem comece um conto cegamente, guiado pelo instinto, por uma luz bruxuleante de vaga-lume. Pelo visto, Quiroga não acreditava na intuição. E há, paralelamente, os que estruturam o conto na cabeça, deixando-o sazonar até o instante de deitá-lo no papel em branco. Eu procedi assim com “O Grito da Perdiz”, que ficou germinando uns dez anos, acreditem. São atitudes, jeitos, temperamentos. Quanto à importância do início e do fim, ela foi salientada por Tchékhov, para quem a nota inicial deveria retornar, como mesmo timbre ou timbre parecido, no fecho. Não me refiro àquele final de impacto, maupassantiano, senão a uma impressão ou estado de ânimo, ou pressentido instante revelador, que deveria abrir e fechar-se como um leque, definindo-se em toda a plenitude da onda, ou de um impulso único.

                                                                  VI

Se queres expressar com exatidão essa circunstância – “Desde o rio soprava um vento frio” — não há na língua dos homens mais palavras do que estas para expressá-la. Uma vez senhor de tuas palavras, não te preocupes em avaliar se são consoantes ou dissonantes.

São os instantes, as emoções, as circunstâncias que ditam as palavras. Há palavras (ou seja: formas de dizer) peculiares ao que se deseja exprimir. São únicas, insubstituíveis. Infelizmente, há momentos em que o ficcionista, errando no labirinto, defronta o indizível. Impõe-se, nesse caso, a arte da sugestão, com a qual seria possível, de acordo com Stevenson, transformar um jornal diário em nova Ilíada. A ambivalência é a maior conquista do ficcionismo moderno. Lutemos, pois, com as palavras, que nem sempre a luta será vã. Mas, ao contrário do que recomendou Quiroga, convém que nos preocupemos com o ritmo, a musicalidade da prosa. Devemos ter ouvidos abertos, afiados. A lição é de Flaubert: na solidão de Croisset, ele cantava as sentenças e ia torneando a prosa, livrando-as de nós e rugosidades. Frases sem o fluxo da música interior são típicas de prosadores surdos.

                                                                 VII

Não adjetives sem necessidade, pois serão inúteis as rendas coloridas que venhas a pendurar num substantivo débil. Se dizes o que é preciso, o substantivo, sozinho, terá uma cor incomparável. Mas é preciso achá-lo.

Nada tenho contra o adjetivo. Sem ele, o que seria da prosa gostosa de Eça de Queiroz? Certas categorias gramaticais parecem apegadas a determinados prosadores. Que seria de Monteiro Lobato se lhe retirássemos a força verbo-motora? O adjetivo faz parte intrínseca da prosa retórica, como, por exemplo, a de William Faulkner, que é um dos grandes ficcionistas atuais. Logo, defenda-se o adjetivo, que não é tão ornamental quanto parece: quando bem empregado, tem a sua carga imagética necessária. Nem sempre, mestre Horacio Quiroga, o substantivo é capaz de vibrar sozinho: requer um fundo musical, um acompanhamento de violino ou violoncelo. Quando se fala em escritor adjetivoso, condena-se o mau prosador, aquele prosador artificial e artificioso, que agita águas rasas para parecer profundo. Em mãos do escritor consciente, artesão, carpinteiro, engenheiro e arquiteto de palavras, o adjetivo é argamassa, é adorno sem exagero. Quem tem medo do adjetivo? Tchékhov e Machado dois artistas reticentes, não o temeram.

                                                                VIII

Toma teus personagens pela mão e leva-os firmemente até o final, sem atentar senão para o caminho que traçaste. Não te distraias vendo o que eles não podem ver ou o que não lhes importa. Não abuses do leitor . Um conto é uma novela depurada de excessos. Considera isso uma verdade absoluta, ainda que não o seja.

De quando em quando os personagens se afirmam por conta própria, com um impulso interior de que não suspeitávamos. E, em vez de dar-nos as mãos, nos puxam sem cerimônia pelo braço, arrastam-nos para suas aventuras ou desventuras, seus abismos ou suas planícies rasas. Além disso, conforme já observado, não se abre o caminho inteiro, de ponta a ponta: ele se desdobra na medida em que caminhamos, em que o nosso roteiro prossegue. Quiroga pretende ater-se, naturalmente, ao essencial, ao fulcro, ao ponto ou turning point do relato. Quanto a esse aspecto, de acordo: desvios resultam cansativos. Convém atentar que o conto tem desenvolvimento unicelular, ao contrário do romance, que admite afluentes. Se um conto apresenta subplots, então se desviou para a novela, que, com as suas sobreposições, não passa de um romance curto. O conto independe de extensão: poderá completar-se nas densas “duas polegadas quadradas” de Samuel Rawet ou no latifúndio de Grande Sertão: Veredas. Decerto, Quiroga elaborou o Decálogo tomando por modelo o conto clássico ou imediatamente pós-clássico. De lá para cá, algumas regras foram atiradas pela janela, conforme o conselho de Saroyan.

                                                                   IX

Não escrevas sob o império da emoção. Deixa-a morrer, depois a revive. Se és capaz de revivê-la tal como a viveste, chegaste, na arte, à metade do caminho.

Perfeito, mestre. A emoção, enquanto se escreve, é má conselheira. Não podemos sufocá-la de todo, porque o escritor mergulha na água limpa ou na lama do que escreve, e se conjuga, e se transmite. Mas, deve-se contê-la, sufocá-la o mais possível. Uma vez escrevi um conto em estado de sofreada exaltação, depois o reli e vi que era bom, e deixei a emoção transbordar; ela me inundou, saí pelas ruas em estado de êxtase e comunhão. Mas seria atitude prudente, uma vez concluído o conto, ou considerado acabado, guardá-lo na gaveta durante algum tempo. A gaveta funcionaria como refrigerador. Louise Bogess, americana que escreveu sobre a arte do conto literário, recomendava essa atitude: esfriar o conto, o que significa esfriar a emoção. Graciliano Ramos, depois de concluído Caetés, levou anos cortando uma palavra aqui, outra ali, fazendo substituições. Escrever, para Hemingway, consistia em cortar palavras. Para outros, menos áticos e mais retóricos, significa acrescentar. Joseph Conrad, um dos pais da prosa moderna, advertiu que era preciso esgotar o assunto, sorvê-lo como se extrai o suco da cana-de-açúcar, deixar o bagaço do assunto. Não há regras definitivas, há temperamentos que elaboram regras próprias. Em vez de “assunto” eu deveria dizer “tema” (theme), para sinalizar aquilo que a personagem principal capta e absorve em conseqüência do andamento do conto.

                                                                  X

Ao escrever, não penses em teus amigos, nem na impressão que tua historia causará. Conta, como se teu relato não tivesse interesse senão para o pequeno mundo de teus personagens, e como se tu fosses um deles, pois somente assim obtém-se a vida num conto.

Uma lição valiosa. Literatura de peso se faz em silêncio. Os outros — sejam amigos, sejam, competidores ferrenhos — devem servir de emulação positiva. Escreve sem pensar no que será amanha o teu escrito, se ele terá passaporte para a eternidade ou morrerá despercebido. Os livros fazem seu próprio destino, como observou Terenciano Mauro. Escreve para desabafar, movido por necessidade interior; para calar por algum tempo os teus fantasmas, para consolar-se, para purgar. Os humildes escrevem assim, para se acalmar e se conhecer, sem pensar na glória do tipo pedestal. A verdadeira glória está na escrita, está na capacidade de quem escreve e no que ficou dito. Escreve também sem pensar na crítica. Afinal, para que serve a crítica? Em geral, ela é burra ou caprichosa, ou preconceituosa. A crítica ensinou alguém a escrever bem? Escreve, pois — porque entre os teus valores é na tua escrita que mais confias, e por ela serás absolvido.



Fonte:
Recolhido de Itinerários do Conto. Interfaces críticas e teóricas da moderna Short Story. Editus – Editora da Universidade stadual de Santa Cruz, Ilhéus, Bahia, 2002, 252 p.
In. singrando horizontes


Imagem: Gjol


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