Antônio Ramos Rosa - Poema
















Maio de 68


As linhas, mil linhas, novas linhas
do ar que circula
numa língua desligada, de uma fábrica
de ervas violentas, jovens,
nutrindo o pulso e os membros,
água de silêncio, no ar agora,
nas avenidas abertas ao silêncio,
nas pedras sem memória, sem medo,
vitória que se perde na frescura rápida,
princípio irrefragável desvanecido, vindo,
lanço a fronte no ar para a linguagem viva
que respira na espessura fragmentada morta
perseguida no vazio, obscura carga,
peso de um olhar, de uma boca ávida sem passado,
no entusiasmo irreparável da língua por viver
do corpo imediato
no centro - turbilhão - da árvore.
Terra, o solo comum, originário, em que descalços
surgir, ó boca, surgir como só um
de nós,
na praia de um presente aberto,
o vulcão surdo convertido em jorro de ar,
a boca restituída ao corpo, a língua
dada ao ar, ao sopro de um corpo a renascer,
razão livre desde sempre, ignota, desde sempre a única
razão,
anterior chama de ar submersa,
que nos lábios soçobra, agora se levanta,
fronte única, fonte, ovo de tudo o que começa,
rajadas de ar,
árvore de homens num estrépito de folhas de ar nas ruas,
a pedra o sol a terra a chama ávida e nua
a praia sob os passos
a página de mil linhas
a boca as palavras que rompem como água
de um princípio que encontra o seu presente
agora a língua livre e jovem
a língua irrefragável.


In.Nos seus olhos de silêncio. Publicações Dom Quixote: Lisboa, 1970.p.99-100. Fonte: Revista Poesia Sempre. Nº 26, Ano 14. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, p.28, 2007.
Imagem retirada da Internet: Antônio Ramos Rosa


Antônio Ramos Rosa - Poema






Antônio Ramos Rosa






Se não vivo ainda de um país branco e vermelho
ou de uma mulher de um magnífico fruto
se por ela não tremo e por ti não digo
ou não tremo e escrevo
sem uma estrela viva sem uma sombra de amor
é porque saí do teu ventre
e pela interdição de o fender
de o abrir na tua fenda primeira
numa Primavera derradeira
e por ti e por ela poderei viver ainda
e num arco-íris de sombra ou de areia
respirar como um astro subterrâneo
o espaço do mar
o sono de um canto adolescente
ó maravilhoso gemido
de um abandono
sem futuro!

Lisboa, 24/11/06


In. Revista Poesia Sempre. nº 26, Ano 14. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, p.24, 2007.
Imagem retirada da Internet: arco-íris

Brasigóis Felício - Ensaio






Por Brasigóis Felício







A liturgia da caneta




No lançamento do livro “Pescando peixes graúdos em águas goianas”, do poeta Geraldo Pereira, representando a Ube-go, fui chamado a dizer algumas palavras. Disse da diferença que existe entre as pessoas que planejam, alimentam sonhos, e as que se deixam levar como peraus na correnteza: as primeiras têm futuro, enquanto as outros têm destino. Falei da decadência a que se entregam as nações que não escutam as vozes de seus poetas. Ou de estadistas que honram a liturgia dos cargos que exercem, esmerando-se em dar exemplos positivos aos povos que lideram, animando-os com palavras sábias, nobres e belas, e outros, que agem como se fossem animadores de circo, acrobatas de buteco, e piadistas indecorosos, envaidecidos de não lerem livros, e de não gostar dos que os lêem ou escrevem – como diz o senador Mão Santa, ele prefere fazer duas horas de esteira a ler, de um livro, uma página inteira!

A história de Geraldo Pereira, este poeta longilíneo, espandongado e sem jeito, qual um Quixote dos trópicos, é um exemplo a ser exaltado e seguido. Vindo dos gerais da Bahia, à beira do São Francisco, para não morrer de fome, já que o velho Chico anda vasqueiro de peixes (até dos miúdos), veio, batendo alpercatas, pescar em águas goianas – como tantos de sua grei o fizeram, atravessando a Serra Geral, em caminhada heróica e sertaneja, que durava meses. Quando, ao atravessar a serra, os mais cansados perguntavam se Goiânia estava longe, alguém dizia: vamos apertar a alpercata que a capital está ali, bem pertinho. Pois é... pra que... um rapaz tão moço! Assim, como tantos outros heróis anônimos, Geraldo Pereira chegou, se instalou na Vila Nova, pátria da baianidade vindica, e viu que era bom. Viu que poderia ter aqui um futuro melhor do que poderia ter na terra em que nasceu. De bicicleta, pedalando sua magrela pelas ruas de Goiânia, fez-se vereador, mas logo viu que seus ideais estavam além do que a política poderia fazer, a não ser prometer sem cumprir, como a maioria dos políticos o fazem. Bandeou-se então para a poesia, e nesta nave vai muito bem, pescando peixes graúdos, em águas goianas, de mais dois ou três Estados do nordeste, e até em águas de Portugal.

Em uma mesa, bebericando e mordiscando delícias do ágape que o Sesc ofereceu ao poetariado tupiniquim, conversava com o poeta Valdivino Braz e Lamar Lamounier, sobre A caneta dourada, casa de vender e consertar canetas de classe, que houve na Goiânia antiga. Era um requinte ter uma Mon Blanc, uma Park 51. Conferia status e distinção a quem portava uma destas, mesmo sendo analfa de pai e mãe. Quando estragavam, Valbraz era o artífice que dava jeito, chegando até a fabricar peças das cobiçadas jóias, objeto do desejo de colecionadores. Quem matou a beleza e o requinte deste tempo?Quem trouxe a simplicidade barata e objetiva da Bic, que anda de bolso em bolso, sem dono que possa chamar de seu, e sem valer nem de um calango nem o seu pisca-pisca? Pior será quando matarem a arte de escrever.

Que tenha se perdido no tempo o prazer (ou o orgulho besta, admito) de ter uma caneta que seja jóia rara, foi uma perda e tanto. Uma aposentadoria da beleza, um destronar do talento. Collor não sacou de uma Bic para assinar o termo de posse e renúncia da presidência da República. A liturgia do cargo pedia uma Mont Blanc. Mesmo tendo ele feito o que fez, ou permitido que o fizessem. Já outros fazem titica na liturgia do cargo, agindo como Chapolins colorados, fazendo piada de assassinatos políticos, para divertir os irmãos Castro. Tristes, trágicos tempos sem canetas douradas!


Imagem retirada da Internet: Parker

Paulo Leminski - Poema


















Amor


Amor, então,
também acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.


In.Caprichos & nrelaxos. Paulo Leminski. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.89.
Imagem retirada da Internet:amor meu grande amor


Ivan Junqueira - Poema














INÊS: O NOME


Inês é nome que se pronuncia
Para instigar ou seduzir prodígios,
é senha que as sibilas balbuciam
ao decifrar enigmas cabalísticos.

É mais do que isto: códice da língua,
raiz da fala, bulbo do lirismo.
É gênese da raça e do suplício,
arché do amor e substância prima.

É mais ainda: tálamo do espírito,
dessa alquimia de morrer em vida
e retornar na antítese do epílogo.

E quem disser que Inês é apenas mito
- mente. E faz dela inútil pergaminho.
E da poesia um animal sem vísceras.


In. A rainha arcaica. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p.114.
Imagem retirada da Internet: Pedro e Inês

Ana Cristina César - Poema












O tempo fecha



Sou fiel aos acontecimentos biográficos.
Mais do que fiel, oh! tão presa! Esses mosquitos
que não largam! Minhas saudades ensurdecidas
por cigarras! O que faço aqui no campo
declamando aos metros versos longos e sentidos?
Ah que estou sentida e portuguesa, e agora não
sou mais, veja, não sou mais severa e ríspida:
agora sou profissional.


In. A teus pés. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.9.
Imagem retirada da Internet: Ana Cristina César

Carlos Nejar - Poema

















Contra a esperança


É preciso esperar contra a esperança.
Esperar, amar, criar
contra a esperança
e depois desesperar a esperança
mas esperar, enquanto
um fio de água, um remo,
peixes existem e sobrevivem
no meio de litígios;
enquanto bater
a máquina de coser
e o dia dali sair
como um colete novo.

É preciso esperar
por um pouco de vento,
um toque de manhãs.
E não se espera muito.
Só um curto-circuito
na lembrança. Os cabelos,
ninhos de andorinhas
e chuvas. A esperança,
cachorro a correr
sobre o campo
e uma pequena lebre
que a noite
em vão esconde.

O universo é um telhado
com sua calha, tão baixo
e as estrelas, enxame
de abelhas na ponta.

É preciso esperar contra a esperança
e ser a mão pousada
no leme de sua lança.

E o peito da esperança
é não chegar;
seu rosto é sempre mais.
É preciso desesperar
a esperança
como um balde no mar.

Um balde a mais
na esperança
e sobre nós.


In.Os melhores poemas. Carlos Nejar. São Paulo: Global, 1984, p.46.
Imagem retirada da Internet: corra-tempo

Paulo Henriques Brito - Entrevista


Paulo Henriques Brito



É provável que todo leitor culto brasileiro tenha na estante algum livro com a assinatura de Paulo Henriques Britto. Ele traduziu alguns dos maiores escritores de língua inglesa, como Byron, Wallace Stevens, Emily Dickinson, Elisabeth Bishop, Henry James, Philip Roth, Thomas Pynchon e Salman Rushdie. Todavia, é também um grande poeta, que, desde a estréia, em 1982, com "Liturgia da Matéria", vem conquistando a crítica. Em novembro do ano passado, "Macau", seu último livro de poesia, foi o vencedor do Prêmio Portugal Telecom de Literatura. Paulo Henriques Britto ganhou 35 mil euros (cerca de 100 mil reais), dinheiro que, entre outras coisas, lhe serviu para trocar de carro (o seu tinha 12 anos). Venceu o carioca Sérgio Sant’Anna, com os contos de "O Vôo da Madrugada," que ficou em segundo lugar, e o gaúcho Assis Brasil, que ficou em terceiro com o romance "A Margem Imóvel do Rio".

Professor do programa de pós-graduação da PUC do Rio de Janeiro, onde ingressou por notório saber, Paulo Henriques Britto nasceu no Rio de Janeiro, em 1951. Leitor de Monteiro Lobato, de gibis e do Tesouro da Juventude, na infância, começou a escrever aos 6 anos de idade. Estudou cinema nos Estados Unidos e aprendeu a fazer poesia, segundo ele mesmo, lendo as traduções dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e traduzindo o poeta Wallace Stevens. A partir da descoberta de Fernando Pessoa, por volta dos 15 anos, começou a “escrever poesia a sério”, como contou numa entrevista a Rodrigo de Souza Leão, publicada no Jornal de Poesia (jornaldepoesia.jor.br), do poeta cearense Soares Feitosa. Também na adolescência, descobriu a música popular, especialmente através de Caetano Veloso. No final do ano passado, Paulo Henriques Britto estreou na ficção, com o livro de contos Paraísos Artificiais, publicado pela Companhia das Letras.

Nesta entrevista, feita pelo jornalista Euler Belém e os escritores Carlos Willian Leite e Francisco Perna, Paulo Henriques Britto fala, sobretudo, da tradução.


Entrevista foi realizada em 2004 e publicada na Revista Bula e no Jornal Opção.


Carlos Willian Leite — Traduzir é trair?

Não. Só acha que toda tradução é uma traição quem tem uma concepção ingênua do que é traduzir, e imagina ser possível capturar absolutamente todas as características do original numa tradução. A perfeição é tão inatingível na tradução quanto em qualquer outra atividade extremamente complexa.

Francisco Perna — Num de seus poemas, “Sonetilho de Verão”, podemos ler o seguinte: “Traído pelas palavras. O mundo não tem conserto. Meu coração se agonia. Minha alma se escalavra. Meu corpo não liga não”. Alguma vez, na sua carreira de poeta, o senhor já se sentiu traído pela palavra, ao incorporar ao seu texto uma palavra ou um verso de alguém que o senhor tenha traduzido, para só depois se dar conta do feito?

Já, embora não seja a essa experiência que me refiro no poema em questão. Mas uma coisa parecida aconteceu comigo quando enviei os originais de Macau para a editora e só então me dei conta de que a série de nove variações poéticas que eu havia escrito tinham sido inspiradas por uma canção dos Doors.

Euler Belém — Baseado em Minas Gerais, Agenor Soares de Moura foi um dos mais contundentes críticos de tradução do país. Suas críticas foram reunidas no livro À Margem das Traduções, organizado pelo tradutor e poeta Ivo Barroso. Como avalia o trabalho de Agenor? Suas críticas são válidas, contribuíram para melhorar as traduções brasileiras?

A intervenção de Agenor foi salutar naquele momento, chamando a atenção para a importância da qualidade no trabalho de tradução. Porém uma ressalva que pode ser feita ao trabalho dele é que seus comentários são sempre pontuais. Ora, achar falhas pontuais numa tradução é sempre possível. Para se fazer uma avaliação séria de uma tradução, é necessário ser sistemático, considerar a obra como um todo, pesar os erros e acertos, tentar compreender para onde apontam as falhas encontradas (se o problema é conhecimento da língua-fonte, domínio dos registros informais na língua-meta, ou lá o que seja), considerar qual o público a que a tradução se dirige, etc. Sem dúvida, muitas das falhas apontadas por Agenor seriam criticáveis em qualquer situação, mas crítica de tradução deve ser mais do que uma colheita de “pérolas” descontextualizadas.

Euler Belém — Como o sr. avalia o trabalho de tradutores como Sebastião Uchoa Leite, mais poesia, e José Paulo Paes, poesia e prosa (por exemplo, Laurence Sterne)?

São dois excepcionais tradutores. Em particular, eu destacaria de Sebastião sua tradução de Villon, e de Paes sua Antologia Grega. Não li a tradução de Sterne feita por Paes, por isso não posso opinar.

Euler Belém — “O Corvo”, de Edgar Allan Poe, é um dos poemas mais traduzidos em língua portuguesa. Fernando Pessoa e Machado de Assis o traduziram, por exemplo. Há pouco tempo, surgiu uma polêmica sobre a melhor tradução, e o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony bateu o martelo: a sua predileta é a de Milton Amado, tradutor mineiro (que traduziu também Dom Quixote). Ivo Barroso organizou, num belo livrinho, todas as traduções, inclusive a francesa. Na sua opinião, qual é a melhor tradução? Ou não há a melhor?

Minhas favoritas são a de Fernando Pessoa e a de Alexei Bueno, duas traduções extraordinárias; é difícil dizer qual é a melhor. A de Pessoa de certo modo aperfeiçoou o original, em que o poeta afirma que não dirá o nome da amada e depois acaba dizendo; em Pessoa a promessa é mantida, e o nome não é revelado.

Euler Belém — Machado de Assis, que tinha ótimo ouvido para sua própria língua, para sua sonoridade, era um tradutor competente?

Machado, um grandíssimo prosador, era um poeta menor, e como tradutor de poesia também não era muito bom. Sua tradução do “Corvo”, por exemplo, não é nada boa.

Francisco Perna — O poeta e tradutor Régis Bonvicino, ao traduzir o poeta norte-americano Robert Creeley, A Um (As One), abre o livro da seguinte maneira: “Reúno, neste volume, os primeiros resultados de três anos de convivência e reflexão a respeito da vida, das idéias e da poesia de Robert Creeley...” Essa relação de amizade entre tradutor e autor é fundamental para o resultado de uma boa tradução, além da competência de quem traduz?

Eu não diria que é fundamental, porque senão seria impossível traduzir um autor morto, mas é claro que ajuda. Não posso me queixar dos autores com quem travei contato; quase todos foram muito prestativos. Creio que o mais prestativo de todos tem sido Thomas Pynchon, de quem já traduzi dois livros (O Arco-Íris da Gravidade e Mason & Dixon).

Francisco Perna — Por falar em Creeley, como o sr. analisa a poesia dele? O senhor gostaria de tê-lo traduzido?

Conheço muito pouco a poesia de Creeley.

Carlos Willian Leite — Como foi traduzir o romance Buddy Bolden’s Blues, do escritor Michael Ondaatje, do Sri Lanka, que recria a carreira meteórica de Buddy Bolden, músico que revolucionou a maneira de tocar jazz?

Foi uma tradução que não apresentou maiores dificuldades. Fiz dois livros de Ondaatje, este e Bandeiras Pálidas, ambos trabalhos bastante tranqüilos.

Euler Belém — O escritor e crítico literário Silviano Santiago, numa resenha para a Folha de S. Paulo, aproxima William Faulkner mais do brasileiro Guimarães Rosa do que do irlandês James Joyce. O sr. nota a mesma aproximação?

A meu ver, Faulkner é um escritor bem mais tradicional do que Rosa e Joyce. É um ótimo contador de histórias, criador de personagens e enredos rocambolescos, com muito melodrama — incesto, assassinato, estupro, mestiçagem (tema que ainda causava frisson na época dele). Mas Ulisses desabou sobre Faulkner como uma espécie de imposição: é preciso ser moderno, ser experimental, ser difícil. E aí ele escreveu O Som e a Fúria, livro dificílimo, com quatro focos narrativos diferentes, muito stream of consciousness, diálogos sem pontuação, etc. O primeiro narrador é retardado; o segundo está se preparando para o suicídio; mas o terceiro e o quarto episódios são bem mais lineares, e ao final do livro tudo está esclarecido. Este fato — a necessidade de deixar tudo explicado no final — já aponta para a contradição entre o tradicional e o moderno que chama a atenção no livro. A complexidade de Faulkner sempre me dá a impressão de ser um pouco postiça, sem a integração orgânica com a totalidade da obra que vemos em Joyce ou em Rosa. O enredo de O Som e a Fúria não deixa nada a dever a nenhum folhetim do século XIX: estupro, castração, amores incestuosos; há um claro descompasso entre o melodrama da ação e a sofisticação da linguagem. Além disso, muitas vezes a modernidade formal é apenas uma fina camada de verniz por cima de uma técnica perfeitamente convencional. Por exemplo, se você colocar uma pontuação normal nos diálogos entre Quentin e Caddy do segundo capítulo, toda a aparência de experimentalismo desaparece.

Francisco Perna — Joyce ou Rosa? Faulkner ou Ramos (Graciliano)? Tendo de optar, com quem o senhor ficaria?

Mas não precisa optar, não é? Assim, fico com todos, inclusive Faulkner, que apesar do problema que apontei continua sendo um excelente ficcionista.

Euler Belém — William Faulkner, suposto filho da tradição de James Joyce, é considerado um autor difícil de ser traduzido. O sr. traduziu o livro mais complexo dele, O Som e a Fúria. Como foi fazê-la? Quais as grandes e as pequenas dificuldades?

É um texto que apresenta várias dificuldades para o tradutor. Uma delas é insolúvel: a questão do dialeto racial. Como não existe dialeto racial no Brasil, fui obrigado a ignorar as marcas do black English; limitei-me a caracterizar a fala dos negros como subpadrão, já que os personagens em questão são de fato pessoas pouco instruídas. O primeiro capítulo, narrado por um deficiente mental, também foi bastante difícil. Já o problema da compreensão de algumas passagens obscuras foi resolvido por pesquisas na Internet e pela ajuda de um especialista em Faulkner da University of California at Los Angeles, o professor Stephen Yenser. No capítulo 4 há uma palavra que não encontrei em nenhum dicionário, nem na internet; perguntei o que era ao professor Yenser e ele me respondeu que ninguém sabia — talvez um cochilo do autor que, depois da morte de Faulkner, tornou-se impossível esclarecer o que é.

Euler Belém — A Germinal Editora copiou uma tradução antiga do romance russo Oblomov e mudou o nome do tradutor (o nome do tradutor original era Francisco Inácio Peixoto, um escritor modernista de Minas Gerais). Além disso, a editora mutilou a tradução anterior, “acrescentando” erros que não há na versão da Edições O Cruzeiro. Isto é praxe ou exceção no Brasil? Ocorre em outros países?

É o primeiro caso do gênero de que ouço falar. Realmente, não sei se já ocorreu em outros países.

Francisco Perna — Na prosa, quais são os seus autores preferidos?

São muitos: Kafka, Proust, Machado, Henry James, Joyce, Flaubert, Tchekhov, Dostoiévski, Tolstói, Melville, Cortázar, Graciliano, Guimarães Rosa, Gombrowicz, Céline, Campos de Carvalho...

Euler Belém — O que falta traduzir de importante de Henry James? The Ambassadors?


Muita coisa! The Ambassadors, certamente. The Wings of the Dove já foi traduzido? [Nota do Jornal Opção: o romance As Asas da Pomba, traduzido por Marcos Santarrita, foi publicado pela Ediouro.] Se não foi, é outra omissão importante. Mas sinto falta em particular de uma antologia bem gorda contendo alguns dos melhores contos de James. Ele é um contista magnífico, e alguns dos meus contos favoritos nunca saíram no Brasil, ou só saíram em edições mal divulgadas e já esgotadas.

Euler Belém — Como avalia o trabalho crítico de Marcelo Pen sobre A Arte do Romance (de Henry James)? (Trata-se de uma dissertação de mestrado publicada em livro pela editora Globo)

Ainda não li.

Euler Belém — Monteiro Lobato foi um grande tradutor ou um grande adaptador que não se importava com a questão da fidelidade literária?

Nunca li as traduções dele, mas com base em artigos que tenho lido e conversas com pessoas que o estudaram, julgo que as traduções dele eram o que hoje em dia chamaríamos de adaptações.

Carlos Willian Leite – Como poeta o sr. disse que sua poesia tende mais para o seco que para o úmido, por quê?

Creio que o que eu quis dizer é que busco uma certa secura que admiro em alguns dos meus escritores prediletos — Kafka, Machado, Cabral, Flaubert: o uso da palavra exata, com pouca adjetivação, e com uma emotividade mais contida, sem muito derramamento.

Euler Belém — Como o sr. avalia a chamada “transcriação”, as traduções patrocinadas pelos irmãos Campos (Haroldo e Augusto)?

São os maiores tradutores de poesia que conheço. Foi lendo e estudando as traduções deles que aprendi a traduzir poesia. Só discordo do termo “transcriação”: o que eles fazem é tradução mesmo, a melhor possível.

Euler Belém — O sr. não acha que há certo exagero dos concretistas em colocar Sousândrade como um grande poeta? Ele não é apenas um poeta mediano, assim como Pedro Kilkerry?

Sousândrade sem dúvida é uma figura interessantíssima, e foi bom ele ser redescoberto. Mas a meu ver ele está muito longe de ser um grande poeta.

Carlos Willian Leite — O que restou das vanguardas?

As vanguardas tiveram a função de abrir muitos caminhos. Acho que ainda não exploramos suficientemente os filões revelados pelas vanguardas do início do século XX: eles abriram tanta coisa que um século ainda é pouco para esgotar o legado deles. Não estou dizendo que é impossível fazer algo de novo agora — sempre é possível fazer algo de novo, e no fundo só é interessante o que é novo. Mas o tipo de experimentação formal radical empreendida pelas grandes vanguardas clássicas, do período que vai mais ou menos da guerra franco-prussiana até a eclosão da Segunda Guerra Mundial, é uma coisa que, pelo menos por ora, parece ter ficado para trás. Talvez porque tenha se tornado muito difícil acreditar em fórmulas únicas que resolverão todos os problemas, na arte ou na vida. As reflexões de Octavio Paz sobre os nossos tempos pós-utópicos me parecem irretocáveis.

Carlos Willian Leite — O que existe na poesia brasileira além de cabralinos e drummondianos?

Na minha opinião, existe muita coisa boa na poesia brasileira atual, e não acho que o que se faz agora não passe de pastiche de Cabral e Drummond, se é isso que você quis dizer com a sua pergunta. É natural que os poetas de agora estejam explorando o imenso território desbravado pelos modernistas clássicos. É de se esperar que estejam dialogando com Cabral e Drummond, e Bandeira e Pessoa e Murilo Mendes, e Eliot e Pound e Rilke e Mallarmé e García Lorca, e também com o concretismo e com a grande música popular dos anos 60 — para mim e para muitos da minha geração, Chico Buarque e Caetano Veloso e Bob Dylan também são mestres. É assim que se faz poesia: dialogando com os antecessores, respondendo a eles, por vezes até brigando com eles — Harold Bloom escreveu uma série de livros muito bons sobre isso, mostrando como os românticos ingleses tiveram que enfrentar a sombra acachapante de Milton. É justamente este diálogo com os “poetas fortes” das gerações anteriores que faz o que se chama de uma tradição.

Carlos Willian Leite — Wallace Stevens, que o sr. traduziu, disse que “um poema, assim como a maioria das coisas na natureza, não tem significado algum”. Concorda com ele?


Creio que nessa frase ele está se insurgindo contra uma tendência, fortíssima na época dele, de querer que a obra de arte tenha uma “mensagem” que possa ser resumida. Ele está chamando a atenção para o fato de que no poema o significado referencial tem menos importância do que a estrutura verbal em si, os sons e imagens; tal como uma paisagem natural, a beleza do poema não deve depender do significado referencial a ele associado.

Euler Belém — O sr. está traduzindo parte da poesia de Emily Dickinson. Como avalia as traduções anteriores de Idelma Ribeiro de Faria e de Aíla de Oliveira Gomes? O mais importante tem sido traduzido ou ainda há muito por traduzir? Paralelamente, não seria importante traduzir um pouco mais de Walt Whitman?

Não estou traduzindo Dickinson; apenas traduzi alguns poemas dela, que publiquei em Inimigo Rumor. Além das traduções de Idelma e Aíla, conheço também mais duas, de Lúcia Olinto e Isa Mara Lando. Todas (inclusive as minhas) têm altos e baixos, acertos e desacertos. Dickinson é dificílima de traduzir, e ainda não saiu uma antologia realmente representativa dela — talvez a da Aíla seja a que mais se aproxima disso. De Whitman saiu uma boa tradução do Song of Myself [Canção de Mim Mesmo, Editora Imago], de André Cardoso. Realmente, seria bom se alguém empreendesse uma boa antologia de Leaves of Grass, um livro tão importante para a poesia moderna quanto Les Fleurs du Mal. [As Flores do Mal, de Baudelaire; obra traduzida por Ivan Junqueira, para a Editora Nova Fronteira].

Euler Belém — Antonio Candido e Wilson Martins (o mais atuante) são considerados os grandes críticos brasileiros. Como avalia e diferencia o trabalho de cada um deles? E cadê os novos críticos?

A meu ver, Antonio Candido é o maior de todos, mas Alfredo Bosi, Davi Arrigucci, Silviano Santiago e Luiz Costa Lima também são muito bons; Bosi e Arrigucci são críticos literários no sentido estrito, enquanto Silviano enveredou pela crítica cultural e Costa Lima é acima de tudo um teórico da literatura. Os falecidos Mário Faustino e José Guilherme Merquior eram excepcionais analistas de poesia; e Roberto Schwarz propôs uma leitura de Machado que todo mundo terá de levar em conta de agora em diante. Os ensaios de Augusto de Campos sobre poesia e música popular são primorosos. Na nova geração, eu destacaria Flora Süssekind e Italo Moriconi. O melhor texto de crítica que li nos últimos meses foi o livro de Cristóvão Tezza sobre Bakhtin, Entre a Prosa e a Poesia: Bakhtin e o Formalismo Russo.

Euler Belém — Nos jornais atuais sobram resenhas, mas faltam críticas. O sr. acredita que há um público pouco interessado em críticas mais consistentes, maiores?

Acho que hoje em dia o lugar para essa crítica mais aprofundada talvez seja mesmo a revista literária. Publicações como Inimigo Rumor, Cacto e muitas outras estão abrindo lugar para uma crítica mais densa do que a jornalística. Mas no caderno Mais! da Folha de S. Paulo às vezes encontramos textos críticos com certa densidade.

Francisco Perna — O que deve ler um poeta, prosa ou poesia?

As duas coisas, sem dúvida. Quanto a mim, sempre li mais prosa — ficção, ensaios, crítica, diários, cartas — do que poesia.

Euler Belém — Como avalia o trabalho das revistas de cultura como Bravo! e Cult? As duas não estão descambando para o entretenimento, seguindo o ritmo dos jornais e revistas brasileiros?


Por que “descambando”? Desde o começo, Bravo! e Cult são revistas destinadas a um público mais amplo, ao contrário de revistas literárias no sentido estrito, como Cacto, Ficções, Inimigo Rumor, Sebastião, Azougue ou Coyote. Bravo!, em particular, é uma revista francamente voltada para o entretenimento, que noticia que peças teatrais e espetáculos de dança estão em cartaz. O que há de mau nisso?

Carlos Willian Leite — O que o sr. pensa sobre a poesia marginal? E especificamente sobre Paulo Leminski e Chico Alvim?

A poesia marginal foi uma reação saudável ao excesso de cerebralismo dos concretos. A maior parte dela ficou muito datada, mas alguma coisa sólida restou do movimento, como o melhor de Ana Cristina César e Chacal, entre outros. A poesia de Chico Alvim, que tem alguns pontos de contato com a poesia marginal, na verdade desde o começo tinha um diferencial: longe de ser um derramamento ingênuo das emoções pessoais, ela dava voz ao outro; com o passar dos anos ficou claro que o projeto dele é personalíssimo, e a meu ver admirável. Quanto a Leminski, seu trabalho me parece uma diluição do poema-piada oswaldiano com pitadas de concretismo, uma poesia que depende acima de tudo de trocadilhos e outros achados verbais que, quando lidos pela segunda vez, perdem boa parte do interesse.

Euler Belém — O sr. traduziu, há pouco, Mason & Dixon. Acredita que seja possível ler o romance de Thomas Pynchon sem um “guia Pynchon”, sobretudo se o leitor não quiser perder as referências? Como foi sua correspondência com o escritor durante o processo de tradução?

De fato, Pynchon é um desses autores que se calcam em referências numerosas. Felizmente, com a internet tudo ficou bem mais fácil: há um site dedicado a Pynchon que é da maior utilidade para seus leitores e tradutores. Quanto à minha correspondência com ele, como já comentei antes, foi da maior importância. Ele foi extremamente prestativo, me ajudou muitíssimo.

Euler Belém — O sr. só traduz do inglês? Gostaria de traduzir algum autor em outra língua?

Não domino outras línguas que não português e inglês.

Euler Belém — Qual grande obra gostaria de traduzir?

Muitas. Eu destacaria o Don Juan de Byron e The Changing Light at Sandover de James Merrill, dois poemas imensos e extraordinários. Na prosa, gostaria de traduzir mais Henry James, de quem fiz apenas um romance [Pelos Olhos de Maisie, Editora Companhia das Letras] e uma pequena antologia de contos [A Morte do Leão — Histórias de Artistas e Escritores, Editora Companhia das Letras].

Euler Belém — Qual grande obra teme traduzir?

Nunca parei para pensar nisso.

Carlos Willian Leite — Qual sua avaliação sobre a poesia do francês Yves Bonnefoy?

Conheço muito pouco da obra dele. E meu francês é fraco demais para eu poder julgar poesia francesa.

Euler Belém — Dizem que um poeta traduz melhor outra poeta. Mas o poeta não tende, ao traduzir outro poeta, outra persona, a se intrometer um pouco mais no trabalho alheio, introduzindo, ainda que filigramas, um pouco de si e de seu modo de fazer poesia?

Sim, e é justamente por isso que é bom poesia ser traduzida por poeta. É essa intromissão do tradutor no trabalho alheio que gera as grandes traduções. Uma tradução em que o tradutor não ponha nada de si será necessariamente uma tradução chocha. Só quem não tem nenhum conhecimento do que é o trabalho de tradução é capaz de imaginar que o tradutor pode ou deve ser neutro.

Carlos Willian Leite — Qual desses três livros indicaria a um amigo: Liturgia da Matéria, Mínima Lírica ou Trovar Claro?


Na minha opinião, meu melhor livro de poesia é Trovar Claro; Macau fica um pouco atrás. E o mais fraco é o primeiro, Liturgia da Matéria.

Euler Belém — O sr. vai traduzir mais algum Faulkner? Resta pouco a traduzir dele, não é?


Não está nos meus planos traduzir mais Faulkner, não.

Euler Belém — A tradutora mineira mineira Julieta Cupertino tem 96 anos e continua trabalhando, traduzindo, depois de Katherine Mansfield, Joseph Conrad (“Lorde Jim”, que também foi traduzido por Mario Quintana). O sr. conhece o trabalho dela?

Não.

Carlos Willian Leite — Qual o maior poeta de todos os tempos?

Essa pergunta não pode ser respondida por uma pessoa que, como eu, domina apenas dois idiomas, e lê mal e porcamente mais três (espanhol, francês e italiano). De qualquer modo, o poema mais extraordinário que já li foi mesmo a Divina Comédia.

Euler Belém — Quem é o maior poeta brasileiro vivo? Ferreira Gullar?

É difícil dizer; estou longe de conhecer bem as obras de todos os poetas brasileiros vivos. Dos que eu conheço melhor, Ferreira Gullar e Armando Freitas Filho são os que têm uma obra mais realizada.

Euler Belém — Qual é o maior poema brasileiro?

Dos que eu conheço, eu escolheria “Uma Faca só Lâmina” de Cabral e “A Máquina do Mundo” de Drummond.

Carlos Willian Leite — Quais livros o influenciaram?

Muitos. Os poetas que estão mais presentes no meu trabalho, creio eu, são Cabral, Drummond, Pessoa, Bandeira, Stevens e Dickinson; também Shakespeare e Whitman, autores que descobri ainda menino, deixaram suas marcas. A música popular dos anos 60 também é uma fonte importante, principalmente Caetano Veloso.

Euler Belém — Já pensou em traduzir a poesia de Emily Brontë? Tem o vigor do romance O Morro dos Ventos Uivantes?

Não sou um leitor entusiasta de Emily Brontë.

Francisco Perna — O sr. acredita na genialidade literária?

Bem, há escritores que consideramos muito, muito melhores que os outros, e esses nós chamamos de gênios. Para mim, é só isso.

Euler Belém — Ivan Junqueira traduziu todo o Eliot, em termos de poesia. Como avalia este trabalho? Não seria a hora de traduzir o Eliot ensaísta?

Ainda não li a nova edição do Eliot. Conheço a anterior, da Nova Fronteira, e é uma ótima tradução. [O tradutor é o mesmo Ivan Junqueira.] Sim, seria uma boa idéia alguém organizar uma antologia dos ensaios de Eliot.

Carlos Willian Leite — Ao decretar a finitude e romper com o transcendentalismo, sua poesia caminha em direção a Cabral de Melo Neto, porém, mais urbano, sem os Severinos e aquela coisa meio Tieta do Agreste. Além dessas duas últimas, quais outras características diferenciam a poesia de ambos?

Sem dúvida, Cabral é um dos ancestrais com que mais dialogo. Cabral e Drummond são as duas referências mais fortes para a minha geração, e creio que para a seguinte também. Porém, ao contrário de Cabral, que faz questão de negar a subjetividade, eu tomo a subjetividade assumidamente como ponto de partida. Mas minha afirmação da subjetividade é sempre irônica, cautelosa, desconfiada, ressabiada, em parte porque estou o tempo todo tendo que responder a Cabral, me afirmar diante dele.

Carlos Willian Leite — Alguns de seus poemas revelam profundas inquietações, fazendo blague na forma de encarar a vida. Isso é autobiográfico?

Tudo que posso dizer é que meus poemas estão ligados à minha visão do mundo e da vida, sim, mas não são estritamente autobiográficos. Um dos efeitos do trabalho com a forma é precisamente este: despersonalizar um pouco (não totalmente) o poema, tornando-o mais autônomo em relação ao autor e (espera-se) mais universal.


Imagem retirada da Internet: Paulo Henriques Brito

Ferreira Gullar - Poema

















Cantiga para não morrer



Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento



In. Toda poesia. Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, p.286.
Imagem retirada da Internet: mulher

Visgo Ilusório - Livro de Poesia

Rodolfo Ward
Capa do livro Visgo Ilusório
Capa do livro Visgo Ilusório




Escritor tocantinense fala da luta com as palavras na obra “Visgo ilusório”


15/03/10 16:23 - Thâmara Filgueiras



O escritor e professor do curso de Letras da Unitins – Fundação Universidade do Tocantins, Francisco Perna Filho, se prepara para o lançamento da sua quarta obra, Visgo ilusório, que acontecerá no próximo dia 18, no Flamboyant Shopping Center em Goiânia. A obra faz parte da coletânea Goiânia em prosa e verso, uma parceria entre a prefeitura daquele município, a editora Kelps e a Universidade Católica de Goiás.

Visgo ilusório trata da luta diária pelo verbo preciso. “A palavra é uma convenção humana e, de uma certa maneira, ela é arbitrária. Então, o vínculo que há entre a coisa que nomeia e o ser nomeado é muito difusa e às vezes a palavra não consegue expressar aquilo que você quer dizer ou representar”, argumentou o escritor.

O autor também faz uma relação com uma antiga brincadeira de crianças, que aprisionavam pássaros usando visgo feito a base de jaca ou outros materiais. Esta analogia pode ser vista no poema Por um sono, que trata do visgo ilusório da palavra que, segundo explica Perna Filho, “para criar essas imagens poéticas, para traduzir o mundo, o poeta luta com as palavras para tentar traduzir essa realidade que ele vê. E nem sempre consegue, mas ele usa as palavras que mais se aproximam. Então a gente tem a ilusão de que aquilo está sendo representado pela palavra”, explicou.

A obra divide-se em cinco partes, que são compostas por poesias escritas a partir da invasão dos Estados Unidos ao Iraque até quando se propalou que o etanol seria a grande saída para o Brasil e muitos proprietários de terras começaram a arrendá-las com esse fim. “Eu começo com O olhar, em que eu trago poesias da minha infância, do meu pai, uma autobiografia. Depois tem O voo, onde eu falo da poesia e do ofício do poeta. O mergulho é um trabalho mais voltado para o sentimento mesmo. O revoo onde eu trago oAboio, que fala das fazendas que foram vendidas para plantação de cana para produção de etanol, e Concerto para violino, que fala do maestro russo Serguei Diatchenko, que se matou aos 64 anos. Por fim, tem O visgo, que fala das cenas urbanas, do aglomerado de pessoas”, descreveu o escritor.

Em Palmas, a obra tem lançamento previsto para abril, ainda sem data definida, no restaurante Boa Massa.
A coletânea

A coletânea é composta por 100 obras de diferentes autores que falam da capital goiana em verso ou prosa. Cada livro terá mil exemplares, sendo que 700 serão distribuídos em escolas, bibliotecas e universidades de Goiás. Os números restantes serão entregues aos autores, como forma de pagamento autoral, e poderão ser vendidos.

A ideia da coletânea é reunir o trabalho de um escritor com o de um artista plástico. Visgo ilusório está acompanhado da pintura Rio vermelho, do pintor goiano Amaury Menezes. Perna Filho já faz um trabalho semelhante em seu blog pessoal Banzeiro – a poesia em movimento, que pode ser acessado pelo linkhttp://banzeirotextual.blogspot.com/.

Francisco Perna Filho
Nasceu em Miracema do Tocantins, onde teve os primeiros contatos com a literatura. É mestre em Letras e Linguística – estudos literários, pela Universidade Federal de Goiás. Tem três livros publicados: Refeição, de poesia, lançado em 2001 pela editora Kelps; As mobílias da tarde, poesia, publicado pela Perna e Leite Editores, em 2006; e Criação e vanguarda: Bopp e Barros, crítica literária publicada pelo projeto Goiânia em prosa e verso, em 2009.

José Inácio Vieira de Melo - Poema












Cântico dos cânticos


Que as tuas nádegas aventureiras estejam abertas
para o poema em linha reta que te ofereço,
que a minha escrita torta e avessa
chegue linheira na olaria de tua carne
e ardas e ardo neste morno forno
das tuas nádegas tão abundantes.

Das tuas nádegas tão montanhosas
o horizonte é mais macio e a minha linguagem
saboreia o mel do fel que trazes
e de teus olhos gemem arco-íris
e teu corpo todo é um esplendor, uma assombração
e quanta delícia anunciam teus arrepios
e tuas nádegas aventureiras tão venturosas
são uma tempestade de emoções.

Que idioma mágico que tu inventas
quando me aventuro por tuas nádegas
e me perco profundamente e profundamente
me encontro na plenitude cega que tudo enxerga
e profundamente me encanto cantando uníssono
neste nosso idioma o novo cântico dos cânticos.


In.Roseiral. José Inácio Vieira de Melo. São Paulo: Escrituras, 2010, p.69.
Imagem retirada da Internet: Nádegas

LANÇAMENTO DO MEU LIVRO "VISGO ILUSÓRIO" - POESIA


Projeto: Goiânia- Prosa e verso
(da Sec. Municipal de Cultura)
Dia: 18/03/2010 Quinta- feira às 19h30min
Local: Deck do Flamboyant Shopping Center
Editora: Kelps/UCG

César Moro - Poema








(1903 - 1956)







Vens na noite com a fumaça fabulosa de tua cabeleira


Apareces
A vida é certa
O cheiro da chuva é certo
A chuva te faz nascer
E bater à minha porta
Oh árvore
E a cidade o mar que navegaste
E a noite se abrem a teu passo
E o coração volta de longe a mostrar-se
Até chegar à tua frente
E ver-te como a magia resplandecente
Montanha de ouro ou de neve
Com a fumaça fabulosa de tua cabeleira
Com as bestas noturnas nos olhos
E teu corpo de rescaldo
Com a noite que regas em porções
Com os blocos de noite que caem de tuas mãos
Com o silêncio que prende à tua chegada
Com o transtorno e o marulho
Com o vaivém das casas
E o oscilar de luzes e a sombra mais dura
E tuas palavras de avenida fluvial
Tão logo chegas e te foste
E queres pôr a flutuar minha vida
E apenas preparas minha morte
E a morte de esperar
E o morrer de te ver longe
E os silêncios e o esperar o tempo
Para viver quando chegas
E me rodeias de sombra
E me fazes luminoso
E me submerges no mar fosforescente onde acontece teu estar
E onde apenas dialogamos tu e minha noção escura e pavorosa de teu ser
Estrela desprendendo-se no apocalipse
Entre bramidos de tigres e lágrimas
De gozo e gemer eterno e eterno
Consolar-se no ar rarefeito
Em que te quero aprisionar
E girar pela pendente de teu corpo
Até teus pés cintilantes
Até teus pés de constelações gêmeas
Na noite terrestre
Que te segue acorrentada e muda
Trepadeira de teu sangue
Sustentando a flor de tua cabeça de cristal moreno
Áquario encerrando planetas e caldas
E a potência que faz com que o mundo siga em pé e guarde o equilíbrio dos mares
E teu cérebro de matéria luminosa
E minha adesão sem fim e o amor que nasce sem cessar
E te envolve
E que teus pés transitam
Abrindo marcas indeléveis
Onde se pode ler a história do mundo
E do porvir do universo
E esse ligar-se luminoso de minha vida
à tua existência.



Tradução de Floriano Martins.
In. Poesia Sempre. Nº 28, ano 15 Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2008, p.29-30.
Imagem retirada da Internet: César Moro

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