Cláudio Manuel da Costa - Poema


ODES

A MÍLTON

1

Contigo me entretenho,
Contigo passo a noite, e passo o dia,
E cheia a fantasia
Das imagens, ó Milton, do teu canto,
Contigo desço às Regiões do espanto,
Contigo me remonto a imensa altura,
Que banha de seu rosto a formosura.

2

Tamisa, que nos deste
Dentro do seio teu alto engenho,
Que o sagrado desenho
Do divino Poema lhe inspiraste,
Como o cofre dos males derramaste
Sobre a sua fortuna? Como ao Fado
O trazes desde o berço abandonado?

Não basta além da Pátria
Peregrino vagar estranhas terras,
No horror das civis guerras
Ensangüentar o braço às Musas dado,
Da torpe, e vil pobreza inda vexado
Queres que gema, e conte em baixo preço
De seus estudos o cansado excesso?

4

Sim, esta é a ventura,
Estas as murtas, e as grinaldas de oiro
Que ao século vindoiro
Hão de levar os que de Aônia bebem:
Fortuna, os teus tesoiros só recebem
Bastardas Gentes, que da tenra infância
Afagou nos seus braços a ignorância.

5

Tu o sabes, ó Tejo,
O teu grande Camões o geme, e chora;
Nem mais risonha aurora
No Apenino esclarece ao nobre Tasso:
De porta em porta vagarosa, e lasso,
Mendigando o cantor da Grega gente,
O peso infausto da miséria sente.

6

Nega-lhes muito embora
Deusa inconstante as vãs riquezas; tudo
Entre o silêncio mudo
Dos tempos jazerá; a ilustre glória,
Que os nomes encomenda a larga história
Livre de naufragar nesta mudança
Os guarda. e zela na imortal lembrança.

Por ela te contemplo
Calcar, ó Mílton, da desgraça o colo;
Desde o gelado Pólo
Teu nome vencedor a nós se estende,
Em nobre fogo o coração acende,
Quando nos abres a feliz estrada
Da Epopéia jamais de alguns trilhada.

8

A nunca ouvida língua
Das eternas celestes criaturas,
As suaves ternuras
As castas expressões dos Pais primeiros,
De incorpóreas substâncias os Guerreiros
Combates no Aquilon! tudo imagino;
Tudo é grande, ó bom Deus, tudo é divino.

9

Voa do Estígio Lago,
Ó Espírito rebelde: um frio gelo
Me deixa apenas vê-lo!
Tenta a Equinocial, vaga os abismos,
Que horror! Entre funestos paroxismos
Talvez chego a temer, que o Monstro possa
Cantar os loiros da tragédia nossa.

10

Ah não: oiça-se o brado
Da Épica Trombeta: o rapto admiro,
E já no dúbio giro
Longe de me aterrar o Dragão fera,
Arrancadas montanhas ver espero
Do Trono de Sião, vingada a injúria,
Confunde-te, oh soberbo, e rende a fúria.

11

Estranhas maravilhas
De algum gênio mortal jamais tentadas!
Idéias animadas
Na mais nova, mais rara fantasia!
Se Mílton pela mão nos leva, e guia,
Cesse do bem perdido a fatal ânsia,
Esta é de Eden a milagrosa estância.

12

Musas, vós que educastes
Alma tão grande, e que a gostar lhe destes
As doçuras celestes
Do néctar, e da ambrósia, um novo loiro
Vinde tecer-lhe; e junto ao Busto de oiro
Mandai gravar este Epitáfio breve:
Mílton morreu: seja-lhe a terra leve.


In.UFSC

Imagem retirada da Internet: Mundo Paralelo

Manuel Botelho de Oliveira - Poema













Sol e Anarda


O sol ostenta a graça luminosa,
Anarda por luzida se pondera;
o sol é brilhador na quarta esfera,
brilha Anarda na esfera de formosa.


Fomenta o sol a chama calorosa,
Artarda ao peito viva chama altera,
o jasmim, cravo e rosa ao sol se esmera,
cria Anarda o jasmim, o cravo e a rosa.


O sol à sombra dá belos desmaios,
com os olhos de Anarda a sombra é clara,
pinta maios o sol, Anarda maios.


Mas (desiguais só nisto) se repara
o sol liberal sempre de seus raios,
Anarda de seus raios sempre avara.


Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet

Padre José de Anchieta - Poema

Compaixão da Virgem na morte do filho



Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas,

e em pesado dormir, tão fundo assim ressonas?
Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto,
que a morte tão cruel do filho chora tanto?
O seio que de dor amargado esmorece,
ao ver, ali presente, as chagas que padece?
Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus,
ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux.
Olha como, prostrado ante a face do Pai,
todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai.
Olha como a ladrão essas bárbaras hordas
pisam-no e lhe retêm o colo e mãos com cordas.
Olha, perante Anás, como duro soldado
o esbofeteia mau, com punho bem cerrado.
Vê como, ante Caifás, em humildes meneios,
agüenta opróbrios mil, punhos, escarros feios.
Não afasta seu rosto ao que o bate, e se abeira
do que duro lhe arranca a barba e cabeleira.
Olha com que azorrague o carrasco sombrio
retalha do Senhor a meiga carne a frio.
Olha como lhe rasga a cerviz rijo espinho,
e o sangue puro risca a face toda arminho.
Pois não vês que seu corpo, incivilmente leso,
mal susterá ao ombro o desumano peso?
Vê como a dextra má finca em lenho de escravo
as inocentes mãos com aguçado cravo.
Olha como na cruz finca a mão do algoz cego
os inocentes pés com aguçado prego.
Ei-lo, rasgado jaz nesse tronco inimigo,
e c'o sangue a escorrer paga teu furto antigo!
Vê como larga chaga abre o peito, e deságua
misturado com sangue um rio todo d'água.
Se o não sabes, a mãe dolorosa reclama
para si quanto vês sofrer ao filho que ama.
Pois quanto ele aguentou em seu corpo desfeito,
tanto suporta a mãe no compassivo peito.
Ergue-te pois e, atrás da muralha ferina
cheio de compaixão, procura a mãe divina.
Deixaram-te uma e outro em sinais bem marcada
a passagem: assim, tornou-se clara a estrada.
Ele aos rastros tingiu com seu sangue tais sendas,
ela o solo regou com lágrimas tremendas.
Procura a boa mãe, e a seu pranto sossega,
se acaso ainda aflita às lágrimas se entrega.
Mas se essa imensa dor tal consolo invalida,
porque a morte matou a vida à sua vida,
ao menos chorarás todo o teu latrocínio,
que foi toda a razão do horrível assassínio.
Mas onde te arrastou, mãe, borrasca tão forte?
que terra te acolheu a prantear tal morte?
Ouvirá teu gemido e lamento a colina,
em que de ossos mortais a terra podre mina?
Sofres acaso tu junto à planta do odor,
em que pendeu Jesus, em que pendeu o amor?
Eis-te aí lacrimosa a curtir pena inteira,
pagando o mau prazer de nossa mãe primeira!
Sob a planta vedada, ela fez-se corruta:
colheu boba e loquaz, com mão audaz a fruta.
Mas a fruta preciosa, em teu seio nascida,
à própria boa mãe dá para sempre a vida,
e a seus filhos de amor que morreram na rega
do primeiro veneno, a ti os ergue e entrega.
Mas findou tua vida, essa doce vivência
do amante coração: caiu-te a resistência!
O inimigo arrastou a essa cruz tão amarga
quem dos seios, em ti, pendeu qual doce carga.
Sucumbiu teu Jesus transpassado de chagas,
ele, o fulgor, a glória, a luz em que divagas.
Quantas chagas sofreu, doutras tantas te dóis:
era uma só e a mesma a vida de vós dois!
Pois se teu coração o conserva, e jamais
deixou de se hospedar dentro de teus umbrais,
para ferido assim crua morte o tragar,
com lança foi mister teu coração rasgar.
Rompeu-te o coração seu terrível flagelo,
e o espinho ensangüentou teu coração tão belo.
Conjurou contra ti, com seus cravos sangrentos,
quanto arrastou na cruz o filho, de tormentos.
Mas, inda vives tu, morto Deus, tua vida?
e não foste arrastada em morte parecida?
E como é que, ao morrer, não roubou teus sentidos,
se sempre uma alma só reteve os dois unidos?
Não puderas, confesso, agüentar mal tamanho,
se não te sustentasse amor assim estranho;
se não te erguesse o filho em seu válido busto,
deixando-te mais dor ao coração robusto.
Vives ainda, ó mãe, p'ra sofrer mais canseira:
já te envolve no mar uma onda derradeira.
Esconde, mãe, o rosto e o olhar no regaço:
eis que a lança a vibrar voa no leve espaço.
Rasga o sagrado peito a teu filho já morto,
fincando-se a tremer no coração absorto.
Faltava a tanta dor esta síntese finda,
faltava ao teu penar tal complemento ainda!
Faltava ao teu suplício esta última chaga!
tão grave dor e pena achou ainda vaga!
Com o filho na cruz tu querias bem mais:
que pregassem teus pés, teus punhos virginais.
Ele tomou p'ra si todo o cravo e madeiro
e deu-te a rija lança ao coração inteiro.
Podes mãe, descansar; já tens quanto querias:
Varam-te o coração todas as agonias.
Este golpe encontrou o seu corpo desfeito:
só tu colhes o golpe em compassivo peito.
Chaga santa, eis te abriu, mais que o ferro da lança,
o amor de nosso amor, que amou sem temperança!
Ó rio, que confluis das nascentes do Edém,
todo se embebe o chão das águas que retém!
Ó caminho real, áurea porta da altura!
Torre de fortaleza, abrigo da alma pura!
Ó rosa a trescalar santo odor que embriaga!
Jóia com que no céu o pobre um trono paga!
Doce ninho no qual pombas põem seus ovinhos
e casta rola nutre os tenros filhotinhos!
Ó chaga que és rubi de ornamento e esplendor,
cravas os peitos bons de divinal amor!
Ó ferida a ferir corações de imprevisto,
abres estrada larga ao coração de Cristo!
Prova do estranho amor, que nos força à unidade!
Porto a que se recolhe a barca em tempestade!
Refugiam-se a ti os que o mau pisa e afronta:
mas tu a todo o mal és medicina pronta!
Quem se verga em tristeza, em consolo se alarga:
por ti, depõe do peito a dura sobrecarga!
Por ti, o pecador, firme em sua esperança,
sem temor, chega ao lar da bem-aventurança!
Ó morada de paz! sempre viva cisterna
da torrente que jorra até a vida eterna!
Esta ferida, ó mãe, só se abriu em teu peito:
quem a sofre és tu só, só tu lhe tens direito.
Que nesse peito aberto eu me possa meter,
possa no coração de meu Senhor viver!
Por aí entrarei ao amor descoberto,
terei aí descanso, aí meu pouso certo!
No sangue que jorrou lavarei meus delitos,
e manchas delirei em seus caudais benditos!
Se neste teto e lar decorrer minha sorte,
me será doce a vida, e será doce a morte!



Fonte: Wikisource

Imagem retirada da Internet: Paixão

Antonin Artaud - Carta


disegno di W.Hogart , 1679-1764.


Carta aos Médicos-Chefes dos Manicômios


Senhores,


As leis e os costumes concedem-vos o direito de medir o espírito. Essa jurisdição soberana e temível é exercida com vossa razão. Deixai-nos rir. A credulidade dos povos civilizados, dos sábios, dos governos, adorna a psiquiatria de não sei que luzes sobrenaturais. O processo da vossa profissão já recebeu seu veredicto. Não pretendemos discutir aqui o valor da vossa ciência nem a duvidosa existência das doenças mentais. Mas para cada cem supostas patogenias nas quais se desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem classificações das quais as mais vagas ainda são as mais aproveitáveis, quantas são as tentativas nobres de chegar ao mundo cerebral onde vivem tantos dos vossos prisioneiros? Quantos, por exemplo, acham que o sonho do demente precoce, as imagens pelas quais ele é possuído, são algo mais que uma salada de palavras?

Não nos surpreendemos com vosso despreparo diante de uma tarefa para a qual só existem uns poucos predestinados. No entanto rebelamos-nos contra o direito concedido a homens – limitados ou não – de sacramentar com o encarceramento perpétuo as suas investigações no domínio do espírito.

E que encarceramento! Sabe-se – não se sabe o suficiente – que os hospícios, longe de serem asilos, são pavorosos cárceres onde os detentos fornecem uma mão-de-obra gratuita e cómoda, onde os suplícios são a regra, e isso é tolerado pelos senhores. O hospício de alienados, sob o manto da ciência e da justiça, é comparável à caserna, à prisão, à masmorra.

Não levantaremos aqui a questão dos internamentos arbitrários, para vos poupar o trabalho dos desmentidos fáceis. Afirmamos que uma grande parte dos vossos pensionistas, perfeitamente loucos segundo a definição oficial, estão, eles também, arbitrariamente internados. Não admitimos que se freie o livre desenvolvimento de um delírio, tão legítimo e lógico quanto qualquer outra sequência de ideias e actos humanos. A repressão dos actos anti-sociais é tão ilusória quanto inaceitável no seu fundamento. Todos os actos individuais são anti-sociais. Os loucos são as vítimas individuais por excelência da ditadura social; em nome dessa individualidade intrínseca ao homem, exigimos que sejam soltos esses encarcerados da sensibilidade, pois não está ao alcance das leis prender todos os homens que pensam e agem.

Sem insistir no carácter perfeitamente genial das manifestações de certos loucos, na medida da nossa capacidade de avaliá-las, afirmamos a legitimidade absoluta da sua concepção de realidade e de todos os actos que dela decorrem.

Que tudo isso seja lembrado amanhã pela manhã, na hora da visita, quando tentarem conversar sem diccionário com esses homens sobre os quais, reconheçam, os senhores só têm a superioridade da força.

Tradução de Cláudio Willer

Extraído dos Escritos de Antonin Artaud. Coleção Rebeldes Malditos, nº 5. Trad.: Cláudio Willer, L&PM Editores.

Imagem retirada da Internet: Manicômio

Sinésio Dioliveira - Crônica

Prefeito, mate a sede dos passarinhos!


Os pássaros são notas musicais duma canção celeste. Eles poesiam o céu.



O chupim, também conhecido como vira-bosta e melro (ou merro), é um pássaro bem malandro. Sua malandragem consiste no fato de ele não construir ninho nem tratar dos seus filhotes. Em vez disso, o trapaceiro deposita seus ovos em ninhos de outros pássaros, como tico-tico, sabiá, joão-de-barro. Eu mesmo já fiz fotografia de um sabiá-laranjeira tratando de um filhote de chupim na Praça Cívica.


Por quase 15 dias, os involuntários pais adotivos dão comida no bico ao filhote alheio, que, para conseguir alimento, emite um som característico, abaixando o corpo e tremulando as asinhas. O chupim costuma ser confundido com o pássaro-preto, isso devido à semelhança entre eles quanto ao tamanho e à plumagem negra. Só que o pássaro-preto, além de ser um pouco maior, não foge da obrigação de construir seu ninho e de cuidar dos filhotes.

A Praça Cívica é morada de inúmeras espécies de pássaros. No local podemos encontrar gaturanos, bicos-de-brasa, chupins, rolinhas, suiriris, pica-paus de espécies diferentes, pombas-do-bando, bem-te-vis, almas-de-gato, balança-rabos, sabiás, joões-de-barro entre outros. Até mãe-da-lua já foi vista por lá. Em quantidade, os chupins e as rolinhas se destacam.

Quanto ao que comer, pelo que tenho observado, nada falta aos pássaros. O que não vejo por lá é um local onde possam beber água limpa. No século passado, quando Cora Coralina ainda era viva e autografava seus livros na Feira Hippie, tomando café adoçado com garapa, havia duas fontes na Praça Cívica. Assim não faltava água limpa aos pássaros.

Hoje, entretanto, a água que lhes é disponibilizada vem da que é jogada nos carros que são lavados por lá. Água esta não como a de outrora, mas poluída de produtos químicos utilizados na lavagem de carro.

É isso que, certamente, tem adoecido muitos pássaros por lá, alguns até morrendo. Muitos nem chegam a morrer naturalmente, pois, ao adoecer, vão para o chão, haja vista que perdem a força para voar, e aí viram presas fáceis dos gatos que rondam o local.

Recentemente o prefeito Paulo Garcia fez alguns retoques estéticos ao longo da Avenida Goiás. Louváveis por sinal, pois acrescentaram mais beleza à respectiva via, além da proporcionada pelo ex-prefeito Pedro Wilson. Nessas alterações realizadas por Paulo Garcia, foram construídas duas fontes.

Não sei se o prefeito Paulo Garcia tem conhecimento de que a nossa cidade possui uma fauna ornitológica muito rica e que alguns desses pássaros estão na Praça Cívica. Tomara que esse fato chegue ao seu conhecimento para que assim ele promova também alguns retoques estéticos na Praça Cívica, que está jogada às traças, ao lixo e à ausência de flores. Inclusive a falta de borboletas e beija-flores por lá se deve ao último aspecto. E que nesses retoques, ele promova a reativação das fontes; assim, além de embelezar a praça, vão proporcionar água limpa para os passarinhos. A morte de passarinho, senhor prefeito, é canto triste na boca do poeta Gabriel Nascente: "Toda vez que morre um pássaro,/ um pedaço do céu fica cego.”

Prefeito, não deixe o céu ficar cego! Cuide bem dessas sublimes avezinhas-poetas! Elas nos declamam gratuitamente seu canto, cujo conteúdo não exige de nós um dicionário para que o entendamos. Exige apenas amor e muito respeito à natureza.
Os prefeitos que não cuidarem bem delas passarão...

Observação: a cidade onde esta crônica é ambientada chama-se Goiânia, Goiás, Brasil.

Sinésio Dioliveira é jornalista, professor de português e fotógrafo (www.flickr.com/photos/sinesiodioliveira) (www.wikiaves.com.br/perfil_canarinho) (oliveirasinesio@gmail.com)


Imagem retirada da Internet: pássaros

Alexandre Bonafim - Poema










Outono



Nas antecâmaras do silêncio
o amor estende os lençóis de luto
o linho suave do lamento
esculpindo nas sombras da ausência
um pergaminho de lágrimase tormentos.
O que fazer dos braços
do peito
o que fazer da carne
quando a dor torna excesso
o tudo mais além do eu?
O que fazer das chuvas
das horas mais tristes da infância
o que fazer dos gestos
quando a hora torna cicatriz
o todo infinito aquém do eu?
Em pequenos barcos de papel
escoam-se os risos do menino de outrora,
as cirandas de cinzas
e aurorasdo Nada.
E em tudo nasce a névoa,
o sortilégio do vazio
o pó da memória.
Ante os escombros do invisível
nasce apenas o desejo do movimento urgente,
a vontade de andar contra os acasos e acidentes.
Entretanto,
apesar do silêncio
a vida estoura
rápida,
precisa
conclamando à luta
as mãos e o poema.

Mesmo sem itinerários
a vida ergue seu cântico
para além de todas as noites
para além de todas as ausências.



Imagem retirada da Internet: outono

Mario Vargas Llosa Nobel de Literatura 2010

Mario Vargas Llosa,o 6.º Nobel... espanhol

Peru foi apanhado de surpresa com notícia e demorou

Foi o próprio Prémio Nobel, ao agradecer horas depois do anúncio oficial a Espanha o empurrão que deu na sua carreira, que permitiu a apropriação parcial por parte deste país ibérico do galardão que a Academia Sueca concedera a Mario Vargas Llosa. O jornal El Mundo destacou-se e até titulava ontem na primeira página "Vargas Llosa, o 6.º Nobel espanhol"...


Claro que não há qualquer inverdade na situação, já que o autor tem dupla nacionalidade, desde que o ex-presidente Fujimori lhe retirou a peruana e foi Felipe González quem lhe deu pátria, enquanto não recuperou a cidadania com que nascera.

Ontem, se feridas havia na relação entre Vargas Llosa e o Peru, elas foram tratadas com o forte medicamento chamado Prémio Nobel. Não era para menos, pois desde 1982 - com Gabriel García Márquez - que o continente sul-americano não ganhava o Nobel. Mas foi na cidade onde nasceu em 1936 que a alegria foi mais genuína e a festa até contou com uma sessão de fogo-de-artifício para chamar a atenção ao povo de Arequipa. À boa maneira sul-americana, os populares ocuparam a Plaza de Armas para exibirem o seu orgulho e, contam os jornais locais, participar das homenagens de jovens estudantes que agitavam bandeiras e davam vivas. Apesar de Arequipa ficar a 1300 km de Lima, os seus habitantes não são info-excluídos e muitos deles entraram no mundo virtual para responder a perguntas que vinham de todo o mundo. "Foi a melhor notícia de 2010", dizia um; "És genial, Mario", dizia outro. O mais bairrista escrevia "Tinha de ser arequipenho".

Oficialmente, o país também viveu um dia de euforia e uma das frases que se impuseram referia que "O Peru e a liberdade celebram". A Agência Oficial Andina recordou o primeiro livro de Vargas Llosa, A Cidade e os Cães, e a razão alegada pela Academia Sueca para dar o Nobel, a "cartografia das estruturas do poder", enquanto a Rádio Programas do Peru festejava "o anúncio mais esperado". Diga-se que o Peru foi apanhado desprevenido com a concessão do Nobel e os primeiros ecos surgiram através das agências internacionais, até que o Presidente peruano, Alan García, deu o mote ao afirmar que era "um enorme dia para o Peru. Um dia de alegria, inclusive para os que não comungavam com Mario".

As reacções no resto do continente seguiram os sentimentos do Peru, à excepção do órgão oficial do Partido Comunista Cubano, que definiu a atribuição do prémio a Vargas Llosa como o "anti-Nobel da ética". O Granma aceitou que o escritor trouxe "desenvolvimento à literatura universal", mas "ideias reaccionárias" provam "a sua repugnância moral".

Se a festa foi grande na América, na Feira do Livro de Frankfurt não se ficaram atrás. Editores de todo o mundo do escritor abriram garrafas de champanhe e comemoraram o Nobel. Nos Estados Unidos, Vargas Llosa encerrou o dia com uma conferência de imprensa onde afirmou: "É preciso estimular a leitura nas novas gerações e convencê-las de que a literatura, mais do que conhecimento, é um prazer."

O Peru foi apanhado de surpresa com a

Primeiro capítulo do novo livro de Vargas Llosa

O capítulo que abre o novo livro intitula-se 'O Congo'. Relata a história do cônsul britânico Roger Casement e o seu pensamento sobre colonialismo. O novo romance será publicado antes do fim do ano pela Quetzal.




Quando abriram a porta da cela, com o jorro de luz e um golpe de vento entrou também o barulho da rua que as paredes de pedra abafavam e Roger acordou, assustado. Pestanejando, ainda confuso, lutando para se acalmar, vislumbrou, encostada no vão da porta, a silhueta do sheriff. A sua cara flácida, com o bigode louro e os olhinhos maldizentes, contemplava-o com a antipatia que nunca tinha tentado dissimular. Eis aqui alguém que sofreria se o governo inglês lhe concedesse o pedido de clemência.
- Visita - murmurou o sheriff, sem tirar os olhos de cima dele.
Pôs-se de pé, friccionando os braços. Quanto tempo teria dormido? Um dos suplícios da Pentonville Prison era não saber as horas. Na prisão de Brixton e na Torre de Londres, ouvia os sinos que marcavam as meias horas e as horas; aqui, os grossos muros não deixavam chegar ao interior da prisão o agitar dos sinos das igrejas de Caledonian Road nem o bulício do mercado de Islington e os guardas colocados na porta cumpriam estritamente a ordem de não lhe dirigir palavra. O sheriff pôs-lhe as algemas e indicou-lhe que saísse à frente dele. Trar-lhe-ia o seu advogado alguma boa notícia? Ter-se-ia reunido o gabinete e tomado uma decisão? Talvez o olhar do sheriff, mais carregado do que nunca com a aversão que lhe inspirava, fosse devido ao facto de lhe terem comutado a pena. Avançava pelo comprido corredor de ladrilhos vermelhos enegrecidos pela sujidade, entre as portas metálicas das celas e umas paredes descoloridas nas quais a cada vinte ou vinte cinco passos havia uma janela gradeada através da qual conseguia vislumbrar um pedacinho de céu acinzentado. Porque teria tanto frio? Era Julho, o coração do Verão, não havia razão para este gelo que lhe eriçava a pele.
Ao entrar no pequeno locutó- rio das visitas afligiu-se. Quem o esperava ali não era o seu advoga-do, maître George Gavan Duffy, mas sim um dos seus ajudantes, um jovem louro e desengonçado, de maçãs do rosto salientes, vestido co-mo um peralvilho, a quem tinha visto durante os quatro dias do julgamento a levar e trazer papéis aos advogados de defesa. Por que ra-zão o maître Gavan Duffy, em vez de vir em pessoa, mandava um dos seus assistentes?
O jovem deitou-lhe um olhar frio. Nas suas pupilas havia agastamento e asco. O que passaria pela cabeça deste imbecil? "Olha-me como se eu fosse uma alimária", pensou Roger.
- Alguma novidade?
O jovem negou com a cabeça. Inspirou antes de falar:
- Sobre o pedido de indulto, ainda não - murmurou secamente, fazendo um trejeito que o desfigurava ainda mais. - Há que esperar que se reúna o Conselho de Ministros.
A Roger incomodava-o a presença do sheriff e do outro guarda no pequeno locutório. Ainda que permanecessem silenciosos e imóveis, sabia que estavam suspensos de tudo o que diziam. Essa ideia oprimia-lhe o peito e dificultava-lhe a respiração.
- Mas, tendo em conta os últimos acontecimentos - acrescentou o jovem louro, pestanejando pela primeira vez e abrindo e fechando a boca exageradamente -, tudo se tornou agora mais difícil.
- À Pentonville Prison não chegam as notícias do exterior. O que aconteceu?
E se o Almirantado alemão tinha decidido por fim atacar a Grã-Bretanha pela costa da Irlanda? E se a sonhada invasão estava a ter lugar e os canhões do Kaiser vingavam neste preciso momento os patriotas irlandeses fuzilados pelos ingleses no Levantamento da Semana Santa? Se a guerra tivesse tomado esse rumo, os seus planos realizavam-se, apesar de tudo.
- Agora tornou-se difícil, talvez impossível, ter êxito - repetiu o assistente. Estava pálido, continha a sua indignação e Roger adivinhava-lhe a caveira sob a pele esbranquiçada da sua tez. Pressentiu que, nas suas costas, o sheriff sorria.
- Do que está você a falar? O senhor Gavan Duffy estava optimista a respeito da petição. O que aconteceu para que mudasse de opinião?
- Os seus diários - disse o jovem separando as sílabas, com outro trejeito de repugnância. Tinha baixado a voz e Roger tinha dificuldade em ouvi-lo. A Scotland Yard descobriu-os na sua casa de Ebury Street.
Fez uma longa pausa esperando que Roger dissesse alguma coisa. Mas como este tinha emudecido, deu rédea solta à sua indignação e entortou a boca:
- Como pôde ser tão insensato, homem de Deus - falava com uma lentidão que tornava mais patente a sua raiva. - Como pôde você pôr no papel semelhantes coisas, homem de Deus. E, se o fez, como não tomou a precaução elementar de destruir esses diários antes de se pôr a conspirar contra o Império britânico.
"É um insulto que este imberbe me chame 'homem de Deus'", pensou Roger. Era um mal-educado, porque ele tinha, pelo menos, o dobro da idade deste mocinho amaneirado.
- Fragmentos desses diários circulam agora por todo o la- do - acrescentou o assistente, mais sereno, ainda que continuando enraivecido, agora sem olhar para ele. - No Almirantado, o porta-voz do ministro, o capitão-de-mar-e-guerra Reginald Hall em pessoa, entregou cópias a dezenas de jornalistas. Estão por toda a Londres. No Parlamento, na Câmara dos Lordes, nos clubes liberais e conservadores, nas redacções, nas igrejas. Não se fala de outra coisa na cidade.
Roger não dizia nada. Não se mexia. Tinha, outra vez, aquela estranha sensação que se tinha apoderado dele muitas vezes nos últimos meses, desde aquela manhã cinzenta e chuvosa de Abril de 1916 em que, inteiriçado de frio, foi preso entre as ruínas de McKenna's Fort, no sul da Irlanda: não se tratava de ele, era de outro que falavam, outro a quem aconteciam estas coisas.
- Já sei que a sua vida privada não é assunto meu, nem do senhor Gavan Duffy nem de ninguém - acrescentou o jovem assistente, esforçando-se por controlar a cólera que impregnava a sua voz. - Trata--se de um assunto estritamente profissional. O senhor Gavan Duffy quis pô-lo ao corrente da situação. E preveni-lo. A petição de clemência pode estar comprometida. Esta manhã, em alguns jornais já há protestos, inconfidências, rumores sobre o conteúdo dos seus diários. A opinião pública favorável à petição poderá vir a ser afectada. Uma mera suposição, para já. O senhor Gavan Duffy mantê-lo-á informado. Deseja que lhe transmita alguma mensagem?
O prisioneiro negou, com um movimento quase imperceptível da cabeça. No acto, girou sobre si mesmo, encarando a porta do locutório. O sheriff deu uma indicação com a sua cara bochechuda ao guarda. Este correu o pesado ferrolho e a porta abriu-se. O regresso à cela pareceu-lhe interminável. Durante o percurso pelo longo corredor de pétreas paredes de ladrilhos vermelhos enegrecidos teve a sensação de que a qualquer momento tropeçaria e cairia de bruços sobre aquelas pedras húmidas e não voltaria a levantar-se. Ao chegar à porta metálica da cela, recordou: no dia em que o trouxeram para a Pentonville Prison o sheriff disse-lhe que todos os réus que ocuparam aquela ce-la, sem uma excepção, tinham terminado no patíbulo.
- Poderei tomar um banho, hoje? - perguntou, antes de entrar.
O obeso carcereiro negou com a cabeça, olhando-o nos olhos com a mesma repugnância que Roger tinha percebido no olhar do assistente.
- Não poderá tomar banho até ao dia da execução - disse o sheriff, saboreando cada palavra. - E, nesse dia, só se for a sua última vontade. Outros, em vez do banho, preferem uma boa refeição. É mau negócio para Mr. Ellis, porque depois, quando sentem a corda, cagam-se. E deixam o lugar numa imundície. Mr. Ellis é o verdugo, caso não saiba.
Quando sentiu a porta fechar-se nas suas costas, deixou-se cair de barriga para cima no pequeno catre. Fechou os olhos. Teria sido bom sentir a água fria a enrijecer-lhe a pele e a azulá-la de frio. Na Pentonville Prison, os réus, com excepção dos condenados à morte, podiam tomar banho com sabão uma vez por semana naquele jorro de água fria. E as condições das celas eram passáveis. Pelo contrário, recordou com um calafrio a sujidade da prisão de Brixton, onde se tinha enchido de piolhos e pulgas que pululavam no colchão do seu catre e lhe tinham coberto de picadas as costas, as pernas e os braços. Procurava pensar nisso, mas uma e outra vez voltava à sua memória a cara enraivecida e a voz odiosa do louro assistente ataviado como um manequim que o maître Gavan Duffy lhe tinha enviado em vez de vir pessoalmente dar-lhe as más notícias.
Fonte: DN Artes - A tradução é da responsabilidade do DN

José Mendonça Teles - Crônica



BRASIGÓIS, POR ELE MESMO



À beira da praia do Farol, em São Bento do Norte, no Rio Grande do Norte, Isabela, de 8 anos, netinha de Brasigóis Felício, com o dedinho do pé inflamado, depois de uma topada, não queria entrar no mar. Foi advertida pela coleguinha, uma caiçarense, de 7 anos: “Deixa de ser mole, mulé, o mar cura!” Foi o que aconteceu com o poeta. Carregando enorme tristeza e solidão pelas ruas de Goiânia, subindo e descendo ladeiras da indiferença ele se mandou com a mudança nos pneus da distância, levando a companheira Elci e a netinha Isabela. Embarcou nos ares dos sonhos e depois de mais de dois mil quilômetros de palavras aceleradas, chegou. Chegou, viu e ouviu o clamor daquele marzão escancarado diante dos olhos, dizendo: - Vem, poeta, também estou sozinho! E o poeta lá ficou. Ficou, mas deixou saudades. Companheiro de tantas caminhadas, amigo para sempre nas horas emparedadas, sabendo-se distante, sentado nas dunas do silêncio, a contemplar o mar, naveguei nos ares da distância, e lá cheguei e encontrei o poeta, na sua simplicidade de menino interiorano, montado no jegue da vida, esperando o mundo parar para descer.

Tão lento e devagar ia o poeta, que suas palavras, suas contemplações, saiam compiladas no imaginário da solidão: “uma cabana à beira mar: eis o sonho do refúgio impossível. Também, no mais ermo lugar o tempo fustiga como acoite a mente que sempre deseja estar em outro lugar. Jamais encontrei o meu menino em mim. Certa nostalgia faz-me ter saudades do cerrado quando estou no mar, e maravilhar-me do mar quando estou no cerrado. Em Caiçara do Norte o silêncio é mais profundo, e tem o som de motor contínuo. É o som e o sentido da máquina do mundo, igual e diferente em todos os lugares. Sobrevivente de uma agitação vazia sem finalidade, vejo-me, hoje, como homem praiano. Vivo às margens do oceano que povoa meus sonhos. E não me encontro feliz. Trabalho desde a alvorada até as horas mais silenciosas da noite. Ocupo-me do reino das palavras. Mas não escrevo para que me amem. Tanta estrada com muito nada por todos os lados, eu tenho viajado. Na casa planetária em que vivo, sinto saudades dos amigos que deixei em Goiás. Longe estou da vida vertiginosa que vivia. Vim morar onde acaba o sertão, e começa a vastidão do mar. Ao longe, vendo os primeiros albores da madrugada, escuto o bramir do lendário Atlântico. É como se escutasse o som contínuo da máquina do mundo’’.

Quinze dias com Ana Maria fiquei no condado de Brasigóis (também lá estavam o poeta Edival Lourenço e sua musa Tânia), observando os passos do poeta, tentando decifrar o enigma de uma mudança tão rápida, desde endeusamento ao mar, nestas imagens tão sensíveis pelo reino mágico das palavras. Somente agora, em Goiânia, lendo o seu livro Vozes do Farol é que encontrei a resposta. Estava na frase da menina caiçarense de 7 anos ‘’O mar cura!’’.


A benção, Brasigóis Felício, meu amigo e poeta do mar e do Hotel do Tempo, farol iluminado dos ‘’mares nunca dantes navegados!’’.




José Mendonça Teles é Escritor e Imortal da Academia Goiana de Letras - e-mail: josemendoncateles@gmail.com

Dora Ferreira da Silva - Poema



Pássaro e Mulher




Quem me prende
mais do que a terra?
Impossível o vôo
agora.
Quente fremente
a intenção de alguém.
Desfez-se a palidez
perdi meu vôo
nas grades de seu peito.
Aprísiona-me - grilhão -
o seio suave e
no calor do instante
a união.


In.Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: blog mural dos escritores

Alexandre Bonafim - Crítica Literária


O Real encantado de Helvécio Goulart




Por Alexandre Bonafim*




Quando encontramos um legítimo poeta ainda desconhecido do grande público (grande?), sentimos certa nostalgia, uma melancolia doce por ser uma descoberta inédita para nós, mas também amarga por sermos os raríssimos conhecedores desse autor quase anônimo.

Helvécio Goulart é um grande poeta praticamente irrevelado. O Brasil como um todo ainda precisa conhecê-lo. Durante toda a sua vida, Goulart erigiu uma obra de coerência exemplar, de fidelidade irrestrita à palavra poética sincera, devotada inteira na busca da beleza e nada mais. Sua escrita lembra a de um Juan Guelman ou a de um Alberto da Costa e Silva (o filho); recorda-me também, em alguns momentos, as epifanias de Clarice Lispector.

Como a autora de Laços de família, o poeta mineiro (na verdade também goiano, pois viveu quase toda existência em Goiás) desvela uma espécie de real desnudo, de espacialidade adâmica, virginal. As coisas despontam num esplendor fulminante, encantatório. Diante de poemas como os de Helvécio Goulart, sentimos uma alegria ingênua: a felicidade de possuirmos um corpo, um lugar no cosmos. Encantamo-nos com um real intensificado, agudo, fulgente. Essa é a paixão da escrita epifânica: transformar a banalidade do mundo em raríssima aventura. É o que podemos perceber, por exemplo, em A beleza:



Alimenta-se a luz

do corpo do pavão;

na cauda esplêndida

gasta-se a cor

multifária

e nas manchas de sangue

da plumagem

no azul e amarelo,

ele e o sol

completam-se, cada um no seu destino.

Leve cair de folhas,

grande a ave se volta

com os seu raios de fogo reprimidos

pela força imutável das origens

a afrontar, impassível,

a beleza traída.

(p. 19)



Nesse texto, uma inversão incomum de valores é de suma importância. O pássaro não é a beleza, mas o contrário: toda beleza verdadeira é um encantado pavão. A inventividade dessa metáfora abre-nos para o feito singelo de descobrir o encanto em sua humilde e avassaladora verdade. Toda beleza sempre nos arrasta com a mesma força inaugural de quando fitamos um belo pavão. Susto. Espasmo. Febre. Estertor. Alegria de viver apesar da morte, da fome, das injúrias da vida.

Algo semelhante se dá em Os objetos, em que a verdade das coisas, a fidelidade à sua justeza é o grande esplendor de todo o existir do nosso olhar:



Observa os objetos:

de todos eles

emanam respostas ao efêmero.



Falam a estante, os livros,

o tapete vermelho, as cortinas translúcidas,

os vasos de cristal, o escuro piano,

os enfeites de metal,

as paredes de pedra.



Expressam-se todos em silêncio

a lembrança do tempo

que não cessa de rodar

suas pernas de mármore

e de ver a morte

através de cada coisa

com grandes olhos de veneno

e de fogo,

invisíveis,

abertos para sempre.

(p. 23)



Se o real alcança sua agudeza pela palavra poética, essa mesma realidade torna-se alumbrada por ser mágica, feérica. Nesse sentido, Helvécio Goulart conjuga em sua escrita duas grandes e fundamentais lições dos surrealistas: o jogo de associações livres de imagens e a descoberta da surrealidade, do âmago, do cerne do verdadeiro real, do real mais verossímil e denso. Podemos perceber essa verdadeira bricolagem de imagens em Os meses:



A doçura de uma vida

cheia do verde luminoso da manhã.

A alegria dos mortos que voltavam

com os rostos cobertos de geada;

muitos vinham de longe

com seus cavalos novos

cheirando a hortelã.

A boca se entreabria

e leve

o sono ressoava

e eram muitos azuis os olhos das meninas

quando a noite as construía.

Lembranças. Histórias apagadas,

mulheres conduzindo maçãs em balaios de vime,

uma rua sem fim no começo da morte.



Quando o frio chegava

todos o acolhiam em seu peito

como se faz com o amor

no meio do verão.

Vinham com ele as namoradas,

as caixinhas de música,

os ciprestes noturnos

e a lua com seu halo de junho.

Era o momento das grandes descobertas,

a hora em que os corpos se queimavam

entre canções, no vento.

A marca dos meses continua nos muros.

(p.38)



Podemos vislumbrar o mesmo efeito em Os cavalos:



Peço perdão porque eu não sabia parar.

Nem a rua me deteve

com suas vitrinas luminosas

e seus metais sonoros.



Peço perdão porque eu não podia morrer naquela hora,

eu tinha que correr

eu tinha

que andar

correndo pela noite.

A vida estava perto

tão próxima,

que quem quisesse poderia tocá-la,

a vida.



A água caiu em minha sede

E de repente os cavalos ficaram amarelos

e voaram.

(p. 49)



Nesse texto, o movimento corporal do eu lírico é irrefreável. Tudo se agita, no poema, numa ansiedade infinita. Movido por uma sede sem nome, sem paradeiro, a pessoa poética anda a esmo, num caminhar misterioso, inescrutável em suas razões, em suas motivações. Esse movimento em moto contínuo se findará, encontrará a serenidade, apenas na epifania a findar o texto. A sede cessa quando os cavalos tornam-se ouro e magicamente voam. O desassossego finda-se na imagem lírica de grande singeleza e simplicidade, desemborcando em uma enseada de leveza e serenidade.

Determinados leit motivs consagram a escrita de Helvécio, pontilhando-a de símbolos emblemáticos, verdadeira chaves de entrada para os seus significados profundos dos textos (ainda a serem explorados por leitores e críticos): a criança, a estrela, o canário, as flores, os cavalos e etc. Se em cada poema eles ganham conotação singular, em todos os textos eles colorem as paisagens, imprimindo um tom pitoresco, campesino, bucólico à sua escritura. É o que podemos notar no belíssimo ciclo de poemas intitulado Crianças fontes estrelas canários:



1

As estrelas

dominavam o entardecer

dos dias antigos

e os canários conduziam

as árvores para a fonte

das primeiras crianças



[...]



7

Árvores e crianças

dominavam

os antigos canários

as estrelas

do entardecer

e os conduziam

à fonte dos dias

(p. 102-103)



Só quem conhece Goiás sabe o quanto essa geografia está viva na escrita desse mineiro goiano. Com seus flamboaiãs e ipês, suas árvores frondosas, Goiás respira inteira na escrita de Helvécio. Perto dessas árvores estamos também próximos de Deus, abraçados à poesia. E poucos como Helvécio sabem dessa verdade tão simples, tão singela.



GOULART, Helvécio. Poemas reunidos. Goiânia: UCG, 2007.


* Alexandre Bonafim é Professor Universitário, Doutor em Letras, Poeta e Crítico Literário.



Foto by Ana Carolina Pires: Pastor

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