Brasigóis Felício - Ensaio crítico



Diário da Noite





“Enquanto despertava nossas sombras descobriu o significado de si mesma”. Assim escreveu Clarice Lispector, viajante da noite de sua angústia estranha, sobre a vertigem de beirar abismos, em que se compraz certa categoria de artistas. Às vezes é preciso beirar abismos, sobreviver a terríveis perigos, para conhecer o lado vertiginoso da alma. Só então, esquecendo, depois de abandonar os cacos do passado, sem pensar em perdas e danos, tomamos a trilha incerta — o que é promessa de perigos, mas abertura a possibilidades.

No dizer do poeta Vicente Huidobro: “O mundo cambaleia/quando de meu passado recebo/aquilo de que preciso/para viver nas profundezas de mim mesmo/”.

Tão estrategista é o ego, que quando pensamos poder vencê-lo um dia, é ele que pensa isto — e em sua esperteza nos engana, a sugerir que venha a sabotar a si próprio. O pensamento é seu costumeiro disfarce, que utiliza, para nos fazer enganar a nós mesmos.

Eckart Toole assinala: “Um dia vou me libertar do ego. Quem está falando? O ego. Libertar-se dele é verdadeiramente um grande trabalho. Mas pode ser uma tarefa pequena. Basta estarmos conscientes de nossos pensamentos e de nossas emoções, à medida em que vão surgindo. Não se trata de fazer, e sim de ver com atenção. Neste sentido, é verdade que nada podemos fazer para nos libertar do ego. Quando essa mudança acontece, ou seja, quando passamos do pensamento para a consciência, uma inteligência muito maior do que a esperteza começa a agir em nossa vida”.

*

Sendo, em sua vaidosura descomunal, um peru grugulejante, metido a poetastro de província, pediu licença para “usar da palavra” roufenha, feito taquara rachada, no quintal do poetariado. Queria grugulejar sozinho, apaixonado que sempre foi por escutar sua própria voz — tão estrondosamente ruidosa que desmancha roda de bêbados.

*

No Brasil os artistas e escritores estão mal acostumados a viver e a serem tratados como artistas da fome. Convidados a atuar ou a dar palestras nos mais distantes lugares, vão para “dar” mesmo, uma vez que jamais lhe perguntam o preço de seu trabalho. É como se só vivessem para almoçar ou jantar, como o comedor de gilette, da sátira de Ary Toledo: “Decente, deixa eu cume uma giletezinha, pra vancê vê! Que eu num cumi nadinha inda hoje!”.

Como eternos artistas da fome, não temos direito a dar o preço de nosso trabalho, em um mercado onde tudo se compra, menos o produto dos artífices do verso, como já verberava Brecht. Mas sempre chega o tempo da decadência, em que nem para trabalhar de graça são os bardos do poetariado (membros do lumpenzinato cronificado) são solicitados.

Alguns, caídos nas graças de governos, após anos de conformismo e cumplicidade, em que tiveram que atuar como obedientes serviçais, chegam a receber homenagens “em palácio”. Se tivessem brio na cara, e percebessem a mancada, perguntariam, como sugeriu Bertolt, o dramaturgo poeta: “Onde foi que errei?”. Para alguns “gênios da raça” as glórias, por frias, já chegam tarde. Outros vivem de cavá-las como podem, em todos os Estados da federação, onde detêm e manobram ligadas de serviçais compadres ou comadres.


A maioria, porém, soterrada pelo esquecimento, não deixa a mínima lembrança de haver existido. Nas praças não deixarão nomes, nem serão estátuas onde pássaros farão titica. Deles se saberá que passaram, como tudo passa. Por efêmeros instantes, como o passageiro deslumbramento de fogos de artifício, refulgirão no oceano da imbecilização das consciências e em mares de novas e triunfantes mediocridades.


Brasigóis Felício é Poeta, Membro da Academia Goiana de Letras.

Imagem retirada da Internet: noturno

Fagundes Varela - Poema


O VIZIR



- Não derribes meus cedros! murmurava
O gênio da floresta aparecendo
Adiante de um vizir, senão eu juro
Punir-te rijamente! E no entanto
O vizir derribou a santa selva!
Alguns anos depois foi condenado
Ao cutelo do algoz. Quando encostava
A cabeça febril no duro cepo,
Recuou aterrado: - "Eternos deuses!
Este cepo é de cedro!" E sobre a terra
A cabeça rolou banhada em sangue!


Imagem retirada da Internet: Vizir

Fagundes Varela - Poeta


DEIXA-ME!




Quando cansado da vigília insana
Declino a fronte num dormir profundo,
Por que teu nome vem ferir-me o ouvido,
Lembrar-me o tempo que passei no mundo?

Por que teu vulto se levanta airoso,
Tremente em ânsias de volúpia infinda?
E as formas nuas, e ofegante o seio,
No meu retiro vens tentar-me ainda?

Por que me falas de venturas longas,
Por que me apontas um porvir de amores?
E o lume pedes à fogueira extinta,
Doces perfumes a polutas flores?

Não basta ainda essa existência escura,
Página treda que a teus pés compus?
Nem essas fundas, perenais angústias,
Dias sem crenças e serões sem luz?

Não basta o quadro de meus verdes anos
Manchado e roto, abandonado ao pó?
Nem este exílio, do rumor no centro,
Onde pranteio desprezado e só?

Ah! não me lembres do passado as cenas,
Nem essa jura desprendida a esmo!
Guardaste a tua? a quantos outros, dize,
A quantos outros não fizeste o mesmo?

A quantos outros, inda os lábios quentes
De ardentes beijos que eu te dera então,
Não apertaste no vazio seio
Entre promessas de eternal paixão?
Oh! fui um doido que segui teus passos,
Que dei-te em versos de beleza a palma;
Mas tudo foi-se, e esse passado negro
Por que sem pena me despertas n'alma?

Deixa-me agora repousar tranqüilo,
Deixa-me agora dormitar em paz,
E com teus risos de infernal encanto
Em meu retiro não me tentes mais!


Imagem retirada da Internet: Lira

Oswald de Andrade - Poema

Canto de Regresso à Patria



Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os pássaros daqui
Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo



Imagem retirada da Internet: Rua XV

Célio Pedreira - Poema









ENXURRADA



Venho admitir a vida
pelos flancos
confidenciar-lhe os bueiros
renascer em grotas
jorros explicítos
misturando
jardins e monturos
desobedecendo o vasto
para juntar
estreitar com força
as águas que descabem
nossas recônditas tempestades


Imagem retirada da Internet: Capri

Valdivino Braz - Poema


O MAR E OS LOBOS DO MAR



Por Valdivino Braz*




As gaivotas


De sol e nuvens, um céu de ouro e sangue, o arrebol do entardecer. Os pios melancólicos, de solitárias gaivotas, sobrevoando as carcaças dos barcos. Parecem dizer que o tempo a tudo trespassa, e tudo se esgota. Parecem gritos de alerta, que o dia cessa e se aproxima a hora escura. Parecem avisar que ali vêm as sombras a cobrir o mundo e fechar as portas. Parecem deduzir que vão cerrar-se as cortinas dos quartos, que vem a noite por cima estender-se e cobrir a nudez dos corpos. Parecem gritar que a hora é essa, que a vida é só essa, não há outra. Parece que a vida vai sair pela porta dos fundos, o coração a saltar pela boca. Gritam as gaivotas, e serão outras ao amanhecer, com o mar a derramar-se de peixes mortos. Na manhã do mar profundo, com as mortes do mundo.


Rostos na penumbra


Curtidos pelo sol e o sal, escondidos na penumbra de âmbar dos copos de rum, os velhos estão lá, nos fundos tristonhos do BARco. Olhando o vazio através da névoa que lhes turva o olhar, deles há que lacrimejam e não se pejam de chorar. Estão lá, os lobos do mar, como se esquecidos. À margem da vida de aventuras e de outrora, arrebóis de auroras, azuis os olhos do céu. Cinzento, agora, o tempo que se foi, envolto em véus. A desoras, à luz do lampião — mais ao fundo e mais sombrio, onde finda o estabelecimento —, apenas um encontra-se lá, com o copo vazio de seus dias, seu vidro de solidão. Soturno pescador, memória e melancolia, noturno seria o seu cantar — não fosse a sonolência do silêncio —, até um novo dia raiar e, redivivo, do oblívio, o homem se erguer.


O velho e o mar


O velho Santiago, dentro da noite, entre os lampiões e os tonéis de rum do bar, soma o que se lhe dá de somar: oitenta e quatro dias sem sorte, peixe nenhum se lhe dá. Deixar-se ali ficar, dormir e descansar sobre o balcão, ou debruçar-se sobre a mesa, antes que a morte lhe seja barco e abrigo, velho veleiro de velhos aventureiros. Farol para onde, a vítrea luz de um lampião, irmão de outros lampiões, pendurados nos mastros de sustentação do BARco? Navegar é sonhar, atravessar a noite da morte, sobrepor-se ao cansaço, superar seus próprios limites, vencer o desafio dos moços, mostrar-se ainda forte. Fisgar o maior dos espadartes, lutar em vão com os tubarões e exibir os ossos, o troféu de seus destroços: preso ao longo do barco, o esqueleto do peixe de cinco metros!


O BARco


O pequeno barco à vela, do velho Santiago, nada mais que um palito, comparado ao porte, prumo e proa do “Pequod”, navio do obstinado, frio e arrogante capitão Ahab, em perseguição a Moby Dick, o cachalote da morte, que o levou a pique, como se conta pela escrita de um gigante Hermann Melville.Um gosto de bile, sob o sol de verão, nas bocas velhas dos homens de rostos riscados pelos vincos da pele. Os olhos insones, obnubilados pelo serão dos bebedores de rum, no enfumaçado salão do Poseidon, o BARco. Soalho coberto de serragem, manchas de salsugem nas paredes encardidas, ferrugem comendo as emendas e o ferro dos suportes: este o palco em que se contam bravatas, histórias de piratas, de luta, paixão e morte, azar e sorte.

A quem se aproxima e olha de esguelha, ofuscado pela intensa luz solar, ou, tomado por delírios, vislumbra-lhe as formas difusas na bruma, de modo vário o BARco se avulta em suas estranhas instalações. Visto de frente ou pelos flancos, tomado-lhe o todo pelo costado e o rabo, a cinzenta estrutura, consoante o ponto de vista, se assemelha a uma velha caravela, ao casco de um grande barco arruinado e ali adernado, à carcaça de uma gigantesca lagosta, a um enorme escaravelho-escorpião. De toda forma, miragem ao sol, alucinação na bruma ou na meia escuridão, o “barco bêbado” — como também é chamado —, e com o vento a soprar, meio que balança e range em seu madeirame, parece até que se põe mesmo a dançar, como dançam os barcos nas altas ondas do mar.

Lá dentro, nas soturnas entranhas do recinto — ou cá na porta, já não importa o lugar, se fora ou dentro, o tempo a passar —, os velhos contam o que lembram e riem do que contam, tanto quanto lamentam. Então se esgotam, quedam-se em si e no silêncio. Ficam ali, com o seus ares de cansaço; os olhares perdidos no mar imenso das distâncias, buscando outros mares. Vidas arruinadas, a bordo do Poseidon — o mesmo BARco —, onde os homens se embriagam e naufragam. Vidas destroçadas pelas águas, ancoradas em fundos de bar, varridas para os cantos do mundo, como as rolhas de cortiça do rum e as folhas de verão caídas das sete-copas, agitadas pelo vento lá fora.

Alguém começa, em voz baixa — como quem balança um berço e acalenta a criança —, uma cantiga de roda, dessas de se pôr a lembrar de amor de mãe, ou duma outra mulher, e todos se põem a cantar e a beber o rum que os aquece. Vão indo e um pouco se animam. Gemidos do vento, no entanto, ao anoitecer, parece de mulher a chorar. “Como pode o peixe vivo viver fora da água fria? Como poderei viver sem a tua companhia?” Assim a cantiga do marinheiro Juscelino, e com ele os companheiros. Assim também indagaria, diante do mar, se ali na praia houvesse, por mal de amor, a mulher sozinha, a chorar.


Os homens no BARco


Os homens envelhecem no bar, bebendo as palavras salobras da noite e cuspindo o zinabre corrosivo do tédio. Na longa travessia das horas, destiladas pelos copos, sabem o cansaço dos corpos, os vincos nas faces vulneráveis e a vida moída pela mó do inexorável. Sabem nesta hora o íntimo silêncio em que os gestos se anulam, os olhos no vazio vagam, e cada homem diz a si mesmo coisas uns aos outros indizíveis. Sabem agora a solidão sozinha do lobo ferido no ermo do mundo, e os inevitáveis borrões vermelhos da sangria própria do que é vivo e dói. E morrem os homens, à mesa do bar, barco de náufragos no mar de espuma da última cerveja.


O mapa do tesouro


“Ah, todo cais é uma solidão de pedra!”, diz alguém a suspirar. A voz é de Fernando, o bardo português, por ali a passar, por ali o lugar de tudo passar. Os braços do mar, com seus látegos de água agitada, batendo nas rochas da costa arqueada. Água laminando pedra, pedra bebendo água pelas locas de suas bocas. Açoites do vento recortam os penhascos e agitam as palmeiras da noite. Sussurros no escuro, uivos, gemidos agoniados, parece que alguém lá fora chamando, chamando, chamando. E assim vão partindo os lobos do mar, crepusculares e noturnos, assim como tem sido o ar que se respira, a fios de ouro fino o tesouro perdido, assim o tecido da vida, assim o mapa amarfanhado nos rostos envelhecidos, e assim o destino desconhecido.



A Linha de sombra

(Rito de passagem)


Ó tempo frio, de homens sombrios! O navio pirata da morte estende por mortalha o seu negro estandarte, e ali a sinistra caveira, sobre as tíbias cruzadas em X, marco de vidas riscadas do mapa, a golpes de espada. A galope das águas as éguas de Netuno. Ó nau sem rumo! Longe, soa um sino. Dim, dom, dim, dom, dim, dom! Ressoa o bronze pelos confins da terra e do mar. Por quem os sinos dobram, John Donne? Por toda a humanidade. “A morte de cada homem diminui-me, por isso não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti.”


Lá se vai o corpo

do Lobo Larsen

Há tempos já vieram de partir, pela ordem, os velhos navegadores Hermann Melville, Robert Louis Stevenson, Jack London, Joseph Conrad, Ernest Hemingway, William Somerset Maugham e muitos outros. O pai de Hemingway, o médico Clarence Edmonds Hemingway, suicidou-se aos 28 anos de idade, em seu consultório, com a velha pistola Smith & Wesson do avô. Trinta anos depois, o filho seguia-lhe os passos. Acordou muito cedo, silenciosamente deixou o leito e ali a esposa Mary a dormir, dirigiu-se à sala de armas, pegou sua espingarda de caçar pombos, enfiou o cano duplo na boca e disparou.


Lá se vai o morto

Lobo Larsen


Primitivo, violento, cruel, amoral, levado por seus instintos, comandava o seu navio “Ghost” — com nome de “Fantasma”, o navio de caçar focas — e via a vida de forma nua e crua. O homem nada mais que fermento, ossos, músculos e nervos. A legenda de Lobo Larsen era a lei do mais forte, muito ao contrário do intelectual Van Weyden, que também viajava no “Ghost” e com o “lobo” travava confronto. A luz do intelecto no coração das trevas. Ideologias. Marx, Darwin e Nietzsche, cada qual a bicar o seu alpiste. Abissal e soberba luta entre o bem e o mal. “O homem é o lobo do homem” — Thomas Hobbes ainda hoje emerge e se avulta com as ondas do mar e o Leviatã estatal.


Lá se foi

o Lobo Larsen


Foi-se o morto. Aonde vai toda arrogância do mundo? Linha de sombra, rito de passagem, a experiência-limite de um extremo a outro. Inexperientes homens ao mar, marinheiros de primeira viagem, sem saber como partir — a população moribunda, e sem ventos pra navegar —, é ficar sem sair do lugar, é partir pra não chegar, se perder e não se achar, não mais ter como voltar. Se não assim também a nau do mundo, se não assim o barco insensato, se não assim o peixe morto.


Nau dos insensatos

De ouro e sol, o arrebol do amanhecer. “Matina”, o nome do poema. Filigrana, fina epifania de luz e harmonia. Ilumina-se, deslumbra-se de imenso o poeta Giuseppe Ungaretti, de passagem por ali. Por onde passa um, pássaros todos os poetas. Gritam, alvoraçadas, as gaivotas, peregrinas perseguindo os barcos abarrotados de peixes, muitos ainda se debatendo em meio a tantos, de há muito mortos. Se não também assim os homens, perplexos no barco de espantos, no porto do tempo. Se não assim a humanidade, a nau dos insensatos, como se conta no livro de Katherine Anne Porter. Os homens no mesmo barco, o mundo feito nau à deriva, todos a bordo, perturbados; não sabem e não se importam pra que lado estão indo.

Manhã do octagésimo quinto dia

Gritam as gaivotas. Gritam na praia os meninos. Ladra o sabujo de nome Marujo. O vento agita a cabeleira das palmeiras. A maresia traz um cheiro de piche. Oitenta e quatro dias sem fisgar um peixe. De um passado de vitórias, agora um pescador privado de boa vida — vive num casebre, dorme no solo duro, sobre jornais amontoados —, Santiago acorda. É logo que pega seu barco e se joga no mar aberto de Cuba. De partida naquele dia, acena para seu amigo, o menino Manolín, que dele se condoeu e lhe deu de presente uma fisga. Quem sabe seja hoje a pescaria bem-sucedida. Se não assim também a vida.

Assim falava Lobo Larsen


"A vida é como um fermento, uma levedura que se move por um minuto, uma hora, um ano, um século, um milênio, mas que por fim terá paralisados os movimentos. Para manter-se em movimento, o grande come o pequeno. Para manter-se forte, o forte come o fraco. O que tem sorte prolonga o seu movimento por mais tempo — eis tudo."

*

Nota do Autor: Tomados de empréstimo, os títulos “O velho e o mar”, “Nau dos insensatos” e “A Linha de sombra” são, respectivamente, de Ernest Hemingway, Katherine Anne Porter e Joseph Conrad. Robert Louis Stevenson, citado no poema, escreveu “Nos mares do Sul” e “A ilha do tesouro”, entre outros, inclusive o clássico “O médico e o monstro”. Contos de William Somerset Maugham intitulam-se como “Histórias dos Mares do Sul”. Lobo Larsen é personagem do romance “O lobo do mar”, de Jack London. “O coração das trevas”, referido em meu texto, intitula romance de Conrad. O poemeto “Matina”, também referido, é uma epifânica e pequena obra-prima de Giuseppe Ungaretti, poeta italiano, nascido no Egito. O aludido poeta Fernando, outro não é senão Fernando Pessoa. O velho Santiago, muitos sabem, é personagem de Hemingway (“O velho e o mar”). A frase contendo “por quem os sinos dobram” é do poeta inglês John Donne e foi referência para Hemingway no título homônimo de seu romance “Por quem os sinos dobram”. A estrofe de canção alusiva ao peixe vivo e o pescador de nome Juscelino lembram o ex-presidente Juscelino Kubitschek (“in memoriam”), que governou o Brasil no período de 1956-1960 e apreciava a canção. “O barco bêbado”, belo poema de Arthur Rimbaud, serviu-me na configuração fantástica do BARco. “Enquanto agonizo”, por mim utilizado, é título de romance de William Faulkner. Ainda recente (verde, ainda), o poema “O mar e os lobos do mar”, em linha corrida (prosa poética) ou direta (sem a quebra de versos), foi escrito entre 8 e 13 de setembro deste ano (2010) e publicado em livro como “Os velhos lobos do mar”, onde o termo “velhos” é uma redundância, pois lobo do mar já significa velho e experiente marinheiro. Daí o novo (talvez provisório) título: “O mar e os lobos do mar”.


*Valdivino Braz é um dos maiores nomes da Poesia brasileira contemporânea. Nasceu em Buriti Alegre (GO), em 23 de novembro de 1942. Filho de Valdemar Alves Ferreira e Sebastiana Braz da Silva. Fez o curso primário no Grupo Escolar Coronel José Teófilo Carneiro, em Uberlândia, MG. Supletivo nos institutos Dom Abel e Rio Branco, em Goiânia. Formado em Jornalismo pela UFG (1984). É membro da União Brasileira de Escritores de Goiás. Possui várias premiações literárias, entre elas, o 1º prêmio no Concurso de Literatura José Décio Filho, Goiânia, 1985; Concurso Literário Departamento Estadual de Cultura/SESC – 1º lugar, 1972; 1º Festival “Travessia” de Poesia Falada, Goiânia, 1984; Prêmio José Décio Filho, 1985, com Tessitura do Ser; Prêmio Hugo de Carvalho Ramos, 1988, com Arabescos num chão de giz; Prêmio Cora Coralina (1990), com As lâminas de Zarb; Prêmio Nacional Cidade de Belo Horizonte, 1992, com A trompa de Falópio; Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, 2002, com Poema da terra perdida. "O Gado de Deus", com menção honrosa no Paraná. Em 1997, recebeu da União Brasileira de Escritores/Goiás o troféu Tiokô de Poesia, e, em 2004, o Troféu Goyazes de Poesia Leodegária de Jesus, conferido pela Academia Goiana de Letras (AGL).


Imagem retirada da Internet: Lobo do Mar

Cesário Verde - Poema

ESPLÊNDIDA


Ei-la! Como vai bela! Os esplendores
Do lúbrico Versailles do Rei-Sol
Aumenta-os com retoques sedutores.
E como o refulgir dum arrebol
----- Em sedas multicores.

Deita-se com langor no azul celeste
Do seu landau forrado de cetim;
E os seus negros corcéis que a espuma veste,
Sobem a trote a rua do Alecrim,
----- Velozes como a peste.

É fidalga e soberba. As incensadas
Dubarry, Montespan e Maintenon
Se a vissem ficariam ofuscadas
Tem a altivez magnética e o bom-tom
----- Das cortes depravadas.

É clara como os pós à marechala,
E as mãos, que o Jock Club embalsamou,
Entre peles de tigres as regala;
De tigres que por ela apunhalou,
----- Um amante, em Bengala.

É ducalmente esplêndida! A carruagem
Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar
----- Atrai como a voragem!

Os lacaios vão firmes na almofada;
E a doce brisa dá-lhes de través
Nas capas de borracha esbranquiçada,
Nos chapéus com roseta, e nas librés
----- De forma aprimorada.

E eu vou acompanhando-a, corcovado,
No trottoir; como um doido, em convulsões,
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejando o lugar dos seus truões,
----- Sinistro e mal trajado.

E daria, contete e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
----- Teu pobre trintanário.

E aos almoços magníficos do Mata
Preferiria ir, fardado, aí,
Ostentando galões de velha prata,
E de costas voltadas para ti,
----- Formosa aristocrata!


Imagem retirada da Internet: sensual


Nélida Piñon - Conto

Foto by Tadeu Vilani: Colheita


Colheita



Um rosto proibido desde que crescera. Dominava as paisagens no modo ativo de agrupar frutos e os comia nas sendas minúsculas das montanhas, e ainda pela alegria com que distribuía sementes. A cada terra a sua verdade de semente, ele se dizia sorrindo. Quando se fez homem encontrou a mulher, ela sorriu, era altiva como ele, embora seu silêncio fosse de ouro, olhava-o mais do que explicava a história do universo. Esta reserva mineral o encantava e por ela unicamente passou a dividir o mundo entre amor e seus objetos. Um amor que se fazia profundo a ponto de se dedicarem a escavações, refazerem cidades submersas em lava.

A aldeia rejeitava o proceder de quem habita terras raras. Pareciam os dois soldados de uma fronteira estrangeira, para se transitar por eles, além do cheiro da carne amorosa, exigiam eles passaporte, depoimentos ideológicos. Eles se preocupavam apenas com o fundo da terra, que é o nosso interior, ela também completou seu pensamento. Inspirava-lhes o sentimento a conspiração das raízes que a própria árvore, atraída pelo sol e exposta à terra, não podia alcançar, embora se soubesse nelas.

Até que ele decidiu partir. Competiam-lhe andanças, traçar as linhas finais de um mapa cuja composição havia se iniciado e ele sabia hesitante. Explicou à mulher que para a amar melhor não dispensava o mundo, a transgressão das leis, os distúrbios dos pássaros migratórios. Ao contrário, as criaturas lhe pareciam em suas peregrinações simples peças aladas cercando alturas raras.

Ela reagiu, confiava no choro. Apesar do rosto exibir naqueles dias uma beleza esplêndida a ponto de ele pensar estando o amor com ela por que buscá-lo em terras onde dificilmente o encontrarei, insistia na independência. Sempre os de sua raça adotaram comportamento de potro. Ainda que ele em especial dependesse dela para reparar certas omissões fatais.

Viveram juntos todas as horas disponíveis até a separação. Sua última frase foi simples: com você conheci o paraíso. A delicadeza comoveu a mulher, embora os diálogos do homem a inquietassem. A partir desta data trancou-se dentro de casa. Como os caramujos que se ressentem com o excesso da claridade. Compreendendo que talvez devesse preservar a vida de modo mais intenso, para quando ele voltasse. Em nenhum momento deixava de alimentar a fé, fornecer porções diárias de carpas oriundas de águas orientais ao seu amor exagerado.

Em toda a aldeia a atitude do homem representou uma rebelião a se temer. Seu nome procuravam banir de qualquer conversa. Esforçavam-se em demolir o rosto livre e sempre que passavam pela casa da mulher faziam de conta que jamais ela pertencera a ele. Enviavam-lhe presentes, pedaços de toicinho, cestas de pêra, e poesias esparsas. Para que ela interpretasse através daqueles recursos o quanto a consideravam disponível, sem marca de boi e as iniciais do homem em sua pele.

A mulher raramente admitia uma presença em sua casa. Os presentes entravam pela janela da frente, sempre aberta para que o sol testemunhasse a sua própria vida, mas abandonavam a casa pela porta dos fundos, todos aparentemente intocáveis. A aldeia ia lá para inspecionar os objetos que de algum modo a presenciaram e eles não, pois dificilmente aceitavam a rigidez dos costumes. Às vezes ela se socorria de um parente, para as compras indispensáveis. Deixavam eles então os pedidos aos seus pés, e na rápida passagem pelo interior da casa procuravam a tudo investigar. De certo modo ela consentia para que vissem o homem ainda imperar nas coisas sagradas daquela casa.

Jamais faltou uma flor diariamente renovada próxima ao retrato do homem. Seu semblante de águia. Mas, com o tempo, além de mudar a cor do vestido, antes triste agora sempre vermelho, e alterar o penteado, pois decidira manter os cabelos curtos, aparados rentes à cabeça — decidiu por eliminar o retrato. Não foi fácil a decisão. Durante dias rondava o retrato, sondou os olhos obscuros do homem, ora o condenava, ora o absolvia: porque você precisou da sua rebeldia, eu vivo só, não sei se a guerra tragou você, não sei sequer se devo comemorar sua morte com o sacrifício da minha vida.

Durante a noite, confiando nas sombras, retirou o retrato e o jogou rudemente sobre o armário. Pôde descansar após a atitude assumida. Acreditou deste modo poder provar aos inimigos que ele habitava seu corpo independente da homenagem. Talvez tivesse murmurado a algum dos parentes, entre descuidada e oprimida, que o destino da mulher era olhar o mundo e sonhar com o rei da terra.

Recordava a fala do homem em seus momentos de tensão. Seu rosto então igualava-se à pedra, vigoroso, uma saliência em que se inscreveria uma sentença, para permanecer. Não sabia quem entre os dois era mais sensível à violência. Ele que se havia ido, ela que tivera que ficar. Só com os anos foi compreendendo que se ele ainda vivia tardava a regressar. Mas, se morrera, ela dependia de algum sinal para providenciar seu fim. E repetia temerosa e exaltada: algum sinal para providenciar meu fim. A morte era uma vertente exagerada, pensou ela olhando o pálido brilho das unhas, as cortinas limpas, e começou a sentir que unicamente conservando a vida homenagearia aquele amor mais pungente que búfalo, carne final da sua espécie, embora tivesse conhecido a coroa quando das planícies.

Quando já se tornava penoso em excesso conservar-se dentro dos limites da casa, pois começara a agitar nela uma determinação de amar apenas as coisas venerandas, fossem pó, aranha, tapete rasgado, panela sem cabo, como que adivinhando ele chegou. A aldeia viu o modo de ele bater na porta com a certeza de se avizinhar ao paraíso. Bateu três vezes, ela não respondeu. Mais três e ela, como que tangida à reclusão, não admitia estranhos. Ele ainda herói bateu algumas vezes mais, até que gritou seu nome, sou eu, então não vê, então não sente, ou já não vive mais, serei eu logo o único a cumprir a promessa?

Ela sabia agora que era ele. Não consultou o coração para agitar-se, melhor viver a sua paixão. Abriu a porta e fez da madeira seu escudo. Ele imaginou que escarneciam da sua volta, não restava alegria em quem o recebia. Ainda apurou a verdade: se não for você, nem preciso entrar. Talvez tivesse esquecido que ele mesmo manifestara um dia que seu regresso jamais seria comemorado, odiaria o povo abundante na rua vendo o silêncio dos dois após tanto castigo.

Ela assinalou na madeira a sua resposta. E ele achou que devia surpreendê-la segundo o seu gosto. Fingia a mulher não perceber seu ingresso casa adentro, mais velho sim, a poeira colorindo original as suas vestes. Olharam-se como se ausculta a intrepidez do cristal, seus veios limpos, a calma de perder-se na transparência. Agarrou a mão da mulher, assegurava-se de que seus olhos, apesar do pecado das modificações, ainda o enxergavam com o antigo amor, agora mais provado.

Disse-lhe: voltei. Também poderia ter dito: já não te quero mais. Confiava na mulher; ela saberia organizar as palavras expressas com descuido. Nem a verdade, ou sua imagem contrária, denunciaria seu hino interior. Deveria ser como se ambos conduzindo o amor jamais o tivessem interrompido.


Ela o beijou também com cuidado. Não procurou sua boca e ele se deixou comovido. Quis somente sua testa, alisou-lhe os cabelos. Fez-lhe ver o seu sofrimento, fora tão difícil que nem seu retrato pôde suportar. Onde estive então nesta casa, perguntou ele, procure e em achando haveremos de conversar. O homem se sentiu atingido por tais palavras. Mas as peregrinações lhe haviam ensinado que mesmo para dentro de casa se trazem os desafios.

Debaixo do sofá, da mesa, sobre a cama, entre os lençóis, mesmo no galinheiro, ele procurou, sempre prosseguindo, quase lhe perguntava: estou quente ou frio. A mulher não seguia suas buscas, agasalhada em um longo casaco de lã, agora descascava batatas imitando as mulheres que encontram alegria neste engenho. Esta disposição da mulher como que o confortava. Em vez de conversarem, quando tinham tanto a se dizer, sem querer eles haviam começado a brigar. E procurando ele pensava onde teria estado quando ali não estava, ao menos visivelmente pela casa.

Quase desistindo encontrou o retrato sobre o armário, o vidro da moldura todo quebrado. Ela tivera o cuidado de esconder seu rosto entre cacos de vidro, quem sabe tormentas e outras feridas mais. Ela o trouxe pela mão até a cozinha. Ele não se queria deixar ir. Então, o que queres fazer aqui? Ele respondeu: quero a mulher. Ela consentiu. Depois porém ela falou: agora me siga até a cozinha.

— O que há na cozinha?

Deixou-o sentado na cadeira. Fez a comida, se alimentaram em silêncio. Depois limpou o chão, lavou os pratos, fez a cama recém-desarrumada, tirou o pó da casa, abriu todas as janelas quase sempre fechadas naqueles anos de sua ausência. Procedia como se ele ainda não tivesse chegado, ou como se jamais houvesse abandonado a casa, mas se faziam preparativos sim de festa. Vamos nos falar ao menos agora que eu preciso?, ele disse.

— Tenho tanto a lhe contar. Percorri o mundo, a terra, sabe, e além do mais...

Eu sei, ela foi dizendo depressa, não consentindo que ele dissertasse sobre a variedade da fauna, ou assegurasse a ela que os rincões distantes ainda que apresentem certas particularidades de algum modo são próximos a nossa terra, de onde você nunca se afastou porque você jamais pretendeu a liberdade como eu. Não deixando que lhe contasse, sim que as mulheres, embora louras, pálidas, morenas e de pele de trigo, não ostentavam seu cheiro, a ela, ele a identificaria mesmo de olhos fechados. Não deixando que ela soubesse das suas campanhas: andou a cavalo, trem, veleiro, mesmo helicóptero, a terra era menor do que supunha, visitara a prisão, razão de ter assimilado uma rara concentração de vida que em nenhuma parte senão ali jamais encontrou, pois todos os que ali estavam não tinham outro modo de ser senão atingindo diariamente a expiação.

E ela, não deixando ele contar o que fora o registro da sua vida, ia substituindo com palavras dela então o que ela havia sim vivido. E de tal modo falava como se ela é que houvesse abandonado a aldeia, feito campanhas abolicionistas, inaugurado pontes, vencido domínios marítimos, conhecido mulheres e homens, e entre eles se perdendo pois quem sabe não seria de sua vocação reconhecer pelo amor as criaturas. Só que ela falando dispensava semelhantes assuntos, sua riqueza era enumerar com volúpia os afazeres diários a que estivera confinada desde a sua partida, como limpava a casa, ou inventara um prato talvez de origem dinamarquesa, e o cobriu de verdura, diante dele fingia-se coelho, logo assumindo o estado que lhe trazia graça, alimentava-se com a mão e sentia-se mulher; como também simulava escrever cartas jamais enviadas pois ignorava onde encontrá-lo; o quanto fora penoso decidir-se sobre o destino a dar a seu retrato, pois, ainda que praticasse a violência contra ele, não podia esquecer que o homem sempre estaria presente; seu modo de descascar frutas, tecendo delicadas combinações de desenho sobre a casca, ora pondo em relevo um trecho maior da polpa, ora deixando o fruto revestido apenas de rápidos fiapos de pele; e ainda a solução encontrada para se alimentar sem deixar a fazenda em que sua casa se convertera, cuidara então em admitir unicamente os de seu sangue sob condição da rápida permanência, o tempo suficiente para que eles vissem que apesar da distância do homem ela tudo fazia para homenageá-lo, alguns da aldeia porém, que ele soubesse agora, teimaram em lhe fazer regalos, que, se antes a irritavam, terminaram por agradá-la.

— De outro modo, como vingar-me deles?

Recolhia os donativos, mesmo os poemas, e deixava as coisas permanecerem sobre a mesa por breves instantes, como se assim se comunicasse com a vida. Mas, logo que todas as reservas do mundo que ela pensava existirem nos objetos se esgotavam, ela os atirava à porta dos fundos. Confiava que eles próprios recolhessem o material para não deteriorar em sua porta.

E tanto ela ia relatando os longos anos de sua espera, um cotidiano que em sua boca alcançava vigor, que temia ele interromper um só momento o que ela projetava dentro da casa como se cuspisse pérolas, cachorros miniaturas, e uma grama viçosa, mesmo a pretexto de viver junto com ela as coisas que ele havia vivido sozinho. Pois quanto mais ela adensava a narrativa, mais ele sentia que além de a ter ferido com o seu profundo conhecimento da terra, o seu profundo conhecimento da terra afinal não significava nada. Ela era mais capaz do que ele de atingir a intensidade, e muito mais sensível porque viveu entre grades, mais voluntariosa por ter resistido com bravura os galanteios. A fé que ele com neutralidade dispensara ao mundo a ponto de ser incapaz de recolher de volta para seu corpo o que deixara tombar indolente, ela soubera fazer crescer, e concentrara no domínio da sua vida as suas razões mais intensas.À medida que as virtudes da mulher o sufocavam, as suas vitórias e experiências iam-se transformando em uma massa confusa, desorientada, já não sabendo ele o que fazer dela. Duvidava mesmo se havia partido, se não teria ficado todos estes anos a apenas alguns quilômetros dali, em degredo como ela, mas sem igual poder narrativo.Seguramente ele não lhe apresentava a mesma dignidade, sequer soubera conquistar seu quinhão na terra. Nada fizera senão andar e pensar que aprendeu verdades diante das quais a mulher haveria de capitular. No entanto, ela confessando a jornada dos legumes, a confecção misteriosa de uma sopa, selava sobre ele um penoso silêncio. A vergonha de ter composto uma falsa história o abatia. Sem dúvida estivera ali com a mulher todo o tempo, jamais abandonara a casa, a aldeia, o torpor a que o destinaram desde o nascimento, e cujos limites ele altivo pensou ter rompido.

Ela não cessava de se apoderar das palavras, pela primeira vez em tanto tempo explicava sua vida, tinha prazer de recolher no ventre, como um tumor que coça as paredes íntimas, o som da sua voz. E, enquanto ouvia a mulher, devagar ele foi rasgando o seu retrato, sem ela o impedir, implorasse não, esta é a minha mais fecunda lembrança. Comprazia-se com a nova paixão, o mundo antes obscurecido que ela descobriu ao retorno do homem.

Ele jogou o retrato picado no lixo e seu gesto não sofreu ainda desta vez advertência. Os atos favoreciam a claridade e, para não esgotar as tarefas a que pretendia dedicar-se, ele foi arrumando a casa, passou pano molhado nos armários, fingindo ouvi-Ia ia esquecendo a terra no arrebato da limpeza. E, quando a cozinha se apresentou imaculada, ele recomeçou tudo de novo, então descascando frutas para a compota enquanto ela lhe fornecia histórias indispensáveis ao mundo que precisaria apreender uma vez que a ele pretendia dedicar-se para sempre. Mas de tal modo agora arrebatava-se que parecia distraído, como pudesse dispensar as palavras encantadas da mulher para adotar afinal o seu universo.

Fonte: Contos Brasileiros - In. Sala das Armas, Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 263.

Foto by Tadeu Vilani: Colheita

Pablo Neruda - Poema


Angela Adonica



Hoje deitei-me junto a uma jovem pura
como se na margem de um oceano branco,
como se no centro de uma ardente estrela
de lento espaço.

Do seu olhar largamente verde
a luz caía como uma água seca,
em transparentes e profundos círculos
de fresca força.

Seu peito como um fogo de duas chamas
ardía em duas regiões levantado,
e num duplo rio chegava a seus pés,
grandes e claros.

Um clima de ouro madrugava apenas
as diurnas longitudes do seu corpo
enchendo-o de frutas extendidas
e oculto fogo.


Imagem retirada da Internet: Pura

Mário de Sá-Carneiro - Poema

Como eu não possuo

Olho em volta de mim. Todos possuem --- Um afecto, um sorriso ou um abraço.Só para mim as ânsias se diluem E não possuo mesmo quando enlaço.

Roça por mim, em longe, a teoria Dos espasmos golfados ruivamente; São êxtases da cor que eu fremiria, Mas a minh'alma pára e não os sente!
Quero sentir. Não sei... perco-me todo... Não posso afeiçoar-me nem ser eu: Falta-me egoísmo para ascender ao céu, Falta-me unção pra me afundar no lodo.Não sou amigo de ninguém.
 Pra o ser Forçoso me era antes possuir Quem eu estimasse --- ou homem ou mulher, E eu não logro nunca possuir!...  Castrado de alma e sem saber fixar-me, Tarde a tarde na minha dor me afundo... Serei um emigrado doutro mundo Que nem na minha dor posso encontrar-me?...
 Como eu desejo a que ali vai na rua, Tão ágil, tão agreste, tão de amor... Como eu quisera emaranhá-la nua, Bebê-la em espasmos de harmonia e cor!...
 Desejo errado... Se a tivera um dia, Toda sem véus, a carne estilizada Sob o meu corpo arfando transbordada, Nem mesmo assim --- ó ânsia! --- eu a teria...
 Eu vibraria só agonizante Sobre o seu corpo de êxtases doirados, Se fosse aqueles seios transtornados, Se fosse aquele sexo aglutinante...  De embate ao meu amor todo me ruo, E vejo-me em destroço até vencendo: É que eu teria só, sentindo e sendo Aquilo que estrebucho e não possuo. 

  

In.Users
Imagem retirada da Internet: Possuir

Augusto dos Anjos - Poema


Versos Íntimos



Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!


In. EU
Imagem retirada da Internet: última Quimera

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