JJ Leandro - Conto


             
O segredo dos hamsters do nazista








Cresci ouvindo todo mundo dizer que o alemão da nossa rua era nazista. Mas só anos depois descobri toda carga de ódio histórico que a palavra carrega. Antes disso o via com olhos indulgentes. Era solitário, e não parecia opção sua. Só isto bastava para eu me encher de pena. Diziam que se isolava porque seus segredos eram tantos e tamanhos que vivia com medo de cometer inconfidências durante o sono que o prejudicassem irremediavelmente. Por isso, diziam também, nem mulher arranjara desde a chegada ao Brasil.
Era criança e pensava na implicância das pessoas como puro despeito por ele viver num belo sobrado ao pé da ladeira entre casas humildes de empregados da fábrica de tecidos que logo cedo acordava o bairro com um apito estridente, descoroçoando os galos nos quintais. Com chuva ou neblina, frio ou calor, os trabalhadores beijavam mulheres e crianças e dirigiam-se pontualmente ao serviço. Ele, no entanto, nunca seguia para trabalho algum. Sua exclusiva ocupação visível era postar-se ao amanhecer no portão de casa qual esfinge, olhos cravados na rua, e uma expressão grave de quem remoía o passado. Ele continuava ali enquanto não passavam todos os trabalhadores de semblantes pesados e soturnos. Em pouco mais de meia hora, o sol mal dissipando a madrugada, a rua voltava ao silêncio. Um ou outro cachorro farejava o magro lixo da gente pobre em busca da primeira refeição do dia. Como não havia mais atrativo ali, o homem voltava a fechar a porta de casa, isolando-se do mundo. Só a abriria novamente quando o apito da fábrica anunciasse o final da jornada. E ficaria à porta, umas vezes sentado em cadeira, outras em pé mesmo, novamente esfinge, não raro sem camisa, os peitos flácidos, a barriga gorda caída sobre o cós da calça escondendo o cinto até quando o último trabalhador passasse. Não permanecia observando o movimento da nova seara de gente que invadia a rua com grande barulho: os estudantes. Durante a movimentação na rua ele não cumprimentava ninguém. Também não reclamava que a contrapartida fosse a indiferença. Tratavam-no como se não existisse, como se fosse a sombra de uma árvore que se alguém acenasse para ela poderia passar por louco.
À porta de casa ou à janela, eu vigiava a sua movimentação, ou melhor, a sua imobilidade com grande interesse. A luz acesa dia e noite no quarto da frente do andar superior também me intrigava. O que tanto fazia trancado naquele ambiente? Achava-o estranho, hábitos misantrópicos em descompasso com a vizinhança acessível e tagarela. Estariam as conversas quase cochichadas dos adultos influenciando meu juízo a seu respeito? Naquele tempo seus hábitos incutiam-me a certeza de que nazista era o mesmo que se enclausurar, esconder-se de tudo e de todos. Certa vez minha mãe criticou a timidez excessiva de minha irmã mais velha, que a mantinha reclusa em casa como uma monja no claustro, e não tive dúvida em vingar-me dela na primeira oportunidade em que me passou raiva: nazista! Levei uma sova e promessas de outras tantas se voltasse a repetir palavrão tão feio.

O nazista saía furtivamente de casa, pude observar, sempre metido no mesmo paletó detweed xadrez, chapéu de feltro na cabeça e olhares desconfiados escrutinando calçadas, becos, cruzamentos das ruas. Não fosse a excessiva desconfiança passaria por um bom velhinho aposentado em roupa comum. O destino de suas saídas era previsível: o banco, o armazém e, com mais frequência, o vendedor de hamsters, que atendia num aviário. Este último destino era o que mais chamava atenção nas redondezas. Inicialmente, o próprio dono do aviário era indiscreto a respeito das visitas do nazista. Falava com português duro de Lisboa que o homem lhe comprava muitos hamsters. E a história da preferência do nazista pelos ratinhos correu a rua de ponta a ponta. Quando ouvi sobre os hamsters do nazista, visitei o desbocado Manuel. E ele não se fez de rogado, vasculhou um livro de vendas e contou os animaizinhos adquiridos pelo homem no último mês: cinquenta, ó miúdo, disse alisando o vasto bigode negro. Mas nem o Manuel, familiarizado no Sudeste Asiático com quem comia cobra e cachorro, sabia o destino dos hamsters do nazista. Disse com pragmatismo sobre a excentricidade: interessa-me que é bom cliente, paga à vista pelos bichinhos e nunca reclama do preço. Que posso querer mais, pá? Virou-me as costas, como a querer reparar o tempo perdido com criança, e pôs muita atenção no desnecessário trabalho de arrumar as já arrumadas gaiolas dos pássaros. Eu voltei intrigado para casa. O que fazia o nazista com tantos hamsters? Um só, dois, vá lá, serviriam de companhia, distração para um homem solitário. Mas um monte deles!? Pior de tudo que o sobrado era um fortim inexpugnável. Outro dia meus pais se deram conta, surpresos, que em dez anos jamais viram vivalma entrar lá. Já que ninguém tinha acesso ao fortim, restou como desforra apelidá-lo de bunker. O segredo dos hamsters era, portanto, indevassável.

Assim a imaginação popular deu asas, ou patas, à fantasia. Havia quem garantisse serem os hamsters o alimento predileto do nazista. Ao ouvir à mesa de refeição meu pai relatar o absurdo que se espalhava pela rua, minha mãe correu ao banheiro aos engulhos. Voltou ainda lívida e furibunda: nunca mais diga coisa tão nojenta à mesa. Ele encolheu os ombros defendendo-se: é o que o povo diz. Meu irmão caçula sublimou a versão nojenta com uma hilária. Para a criançada do colégio, o nazista queria dar continuidade ao desejo megalomaníaco de Hitler de dominar o mundo. Treinava secretamente um exército de hamsters brancos para conquistar países, começando pelo Brasil.

A dificuldade no estabelecimento da verdade e as conjeturas incendiavam as mentes. O mistério em torno dos hamsters crescia como uma bola de neve e naturalmente buscavam-se estratégias para desvendá-lo.

Mas havia os que se negavam a cooperar. O Manuel, arredio afinal, era um deles. Com receio de perder o bom cliente, não se aventurava à mínima especulação junto ao nazista sobre o destino deles. E muitos tinham sido os apelos por ajuda. Defendia-se com a esfarrapada desculpa de que o velhinho e ele trocavam raras palavras. O homem, num português sofrível, que maltratava o clássico ouvido manuelino, mal expressava a quantidade de ratinhos que queria a cada visita; e isso, claro, após sucessivas tentativas mal sucedidas: deizaquinçavintuna, e por aí afora.

Mas como o desfecho de toda história tem a sua hora, a do nazista também chegou. Ninguém o vira viajar, no banco havia dias que não aparecia, no armazém não comprara alimentos nos últimos dias, no Manuel, aonde ia dia sim, dia não, já eram três dias de ausência. Inconformado, o português punha olhos acusadores sobre a clientela: espantaram-me o melhor freguês.

Mas ele não estava com a razão.

Numa manhã em que mais uma vez não abrira a porta para acompanhar o taciturno desfile dos empregados da fábrica de tecidos, a vizinha ao lado, incomodada com o mau cheiro exalado do bunker, acionou os bombeiros. Até eu corri para a massa de gente que rápido se aglomerou diante do sobrado. Antes de escapulir, pus todos em casa em polvorosa: os bombeiros vão arrombar a casa do nazista. Minha mãe gritou da cozinha: Meu Deus é a guerra! Mas eu já estava longe demais para ouvir o que dissera depois, talvez a proibição de ir até lá. Frustração geral. Os bombeiros impediram a aproximação de curiosos. O espanto cresceu quando chegou o rabecão, deu ré e posicionou a traseira colada à porta principal. Por ali retiraram o corpo do velhinho. Bombeiros e rabecão foram embora como chegaram: rápido e com absoluta discrição. Uma coisa era certa: o alemão morrera. E isso virou notícia no bairro.

A tarde reservava mais surpresas. Com a polícia, os repórteres invadiram o bunker em completo alvoroço. Flashs pipocaram na frente da casa, dentro, no quintal, nada escapou às lentes atentas dos fotógrafos. O que havia ali de tão especial a ponto de deixar a imprensa ávida? Havia mais de três décadas que a guerra acabara, os nazistas criminosos, quase sem exceção, haviam sido capturados e julgados, a maioria já estava inclusive morta. Não havia mais peixe graúdo escondido. Não, não havia sido descoberto um nazista importante em minha rua. Os repórteres também se foram menosprezando a ralé operária. Um mais atencioso cifrou resposta a minha súplica: leia amanhã a Tribuna.

No dia seguinte o nazista, de fato, era manchete principal em todos os jornais da cidade. O legista antecipara ataque cardíaco como a causa da morte. Fotos dele jovem com o uniforme da SS e velhinho como o conhecíamos na rua encimavam o seu nome alemão: Hans Grüber. Então despertei para o fato de a rua toda conhecê-lo só por nazista. Um estigma pessoal com que nunca se incomodara. Nem quando surpreendia um resto de conversa à sua aproximação: lá vem o nazista.

Fora guarda no campo de concentração de Treblinka. Mas não pesava sobre ele qualquer acusação de crime de guerra. A página interna, inteirinha, trazia com detalhes o motivo de tanto estardalhaço sobre o homem.

Grüber montara em casa, no grande quarto da frente do andar superior, o mesmo que tinha as luzes constantemente acesas e me chamavam atenção, uma réplica diminuta do campo de concentração de Treblinka. Havia até tabuleta com nome pintado. Em minudências, nada faltava: a locomotiva a pilha que percorria o quarto para deixar as vítimas no campo; os grandes alojamentos como galpões de fábrica; a câmara de gás que, cheia de vítimas, recebia dose letal de monóxido de carbono. Em estrutura paralela, o forno crematório. As anotações de Grüber em livro caixa repetiam a meticulosa organização nazista: nos últimos 10 anos sacrificara mais de cinco mil vítimas. As vítimas, algumas delas libertadas pelos bombeiros raquíticas pela privação de alimentos, pasmem, eram os inofensivos hamsters.


Imagem tirada da Internet: campo de concentração

JJ Leandro - Conto



Garotas, cuba libre e cigarros




Carolina oferecia a noite para diversão de um adolescente de minha idade no final da década de 1970. E só. A partir da sexta-feira, formava um grupo com amigos do colégio e apostava quem beijaria primeiro uma garota na boate Itapuã. Íamos mesmo a pé porque ninguém tinha carro, chutando gorgulho e cachorro nas ruas sem calçamento até a beira do rio. A Itapuã era um quiosque de madeira, grande e redondo, pregado perigosamente no barranco do Tocantins. De longe o ritmo rebolante da dance music excitava nossas libidos. Lá dentro as meninas esperavam o nosso assédio. Convencional, quase um tácito jogo de gato e rato.
Udinei, baixinho falante, cabelos pretos e lisos, adiantava-se ao grupo, fazia-o estacar quase com a autoridade de um comandante que põe o pelotão em ordem antes da batalha, para defender com ares de péssimo filósofo a igualdade entre os sexos:
— Se nós estamos loucos por uns beijos, elas não estão menos.
Um estímulo e tanto para quem era tímido, a maioria em certa medida, pois inexperientes éramos todos com absoluta certeza.
Crisóstomo, magro desengonçado, olhava-o calado enquanto conferenciava. Após longos tragos no cigarro soltava seu desdém com a fumaça:
— De novo não, né, Udinei.
Meu palpite era que o baixinho não convencia nem a si mesmo, pois voltava para casa sempre invicto, esmagado pela gozação geral.
— O que foi Udinei, nenhuma delas te viu? Não olharam para baixo, foi isso?
Encabulado, perdia a loquacidade na volta. Parecia invisível na noite escura. Às vezes Rocha Filho, por pura compaixão, cingia-lhe o pescoço com uma amigável chave de braço, fazia cafunés em seus cabelos, desalinhando-os enquanto o consolava:
— Amigo, darás um excelente contador. És perfeito com os números.
As tremendas gargalhadas do Samuel, moleque alto e esguio, vestido sempre com esmero, pontuavam o trajeto na volta. Tão mais altas quanto mais bêbado estivesse. A gargalhada destoava do conjunto equilibrado. Explodia como petardo na guerra a cada provocação. Impressionava-me arrancar tão poderoso som de um corpo frágil de bailarino. Quem cruzasse na rua conosco esperava surgir como autor da façanha na noite escura um estivador hercúleo, como os dos barcos do rio, não um rapazote franzino que gomalinava os cabelos crespos.
A invasão da pista de dança, um tabuado suspenso no abismo onde as meninas requebravam soltas aos gemidos de gata no cio de Donna Summer em Love to Love You Baby, não era o primeiro destino na chegada. Havia um rito preparatório, menos regra de uma confraria e mais a tácita e inconfessável incapacidade de abordar as meninas com a cara limpa. Sentávamos em mesinhas no pátio dianteiro, uma espécie de bar, único espaço em terra firme na Itapuã. Ali atacávamos de cuba libre, para colocar rápido a coragem à flor da pele. Lá dentro, os tímidos cordeirinhos viravam extrovertidos leões, virgens pesavam os prós e os contras de seus atos; ainda não era a moda pra valer, mas homem também se travestia: metade homem, metade bicho; decididamente, além de tudo isto, com o Zodiac de Roberta Kelly era impossível segurar peixe no aquário. O jogo de luzes cortava a escuridão paralisando os movimentos das pessoas. Mas fora ainda éramos mais estátuas que os lá de dentro. Tinha vontade, conforme o álcool migrava do copo para a cabeça, de entrar logo e ver o que aconteceria. Mas via nos rostos graves dos colegas, entre goles de bebida e tragos de cigarro, que a precaução ainda conseguia frear a audácia que o coquetel de música e álcool aos poucos fazia crescer. Ainda não é hora, acautelava-me. Só levantávamos dali após muita bagana de cigarro no chão e copos vazios. Estimulados, era o triunfo ou o vexame. Valia a máxima: ou vai ou racha.

Em mais uma noite na boate, senti que chegara minha vez de me dar bem. A loirinha, cabelos curtos batidos na nuca à Jean Seberg, que já vira no colégio algumas vezes, sorria para mim. Inseguro ainda mudei de posição na pista para certificar-me de que não estava na direção de quem ela olhava. Rocha Filho que, apesar das muitas cubas libres a mais que eu na cabeça, jamais perdia o faro de caçador me cutucou:
— É você mesmo, poeta. Ela tá parada em você.
Aproximei-me mais, os colegas incentivando e marcando o ritmo de I Feel Love com palmas. Senti-me na berlinda. Tinha a minha chance, ou me dava bem ou fracassava. Depois outro arriscaria com nova garota. O pisca-pisca das luzes e os reflexos do globo espelhando geometrias nos corpos afundavam a realidade num abismo labiríntico comum a quem está perdido em caminho nunca trilhado. Poeta, ouça Udinei: toda senda resulta em labirinto a quem não conhece o caminho. Mas estavam ali, diante de mim, dentes alvos e perfeitos, boca sorridente que merecia beijos, olhos brilhantes e incisivos na escuridão. Guias perfeitos para atingir o amor livre de qualquer contratempo. Era só segui-los. Mas o que fazer para acompanhá-la em Only the Good Die Young? Me enredava em seus bamboleios. Estava mais desnorteado que o rapaz da música de Billy Joel com sua garota católica. Ouvi um eco longínquo dizer, e era o Crisóstomo: está apanhando feio, hein, poeta? Como numa conjura, Samuel estalou uma das suas terríveis gargalhadas. Fora quem mais bebera. Udinei, a autoestima pisada por todos na pista de dança, com certeza tinha olhos somente para seu infortúnio: já pensava que seria novamente o Cristo da turma.
Linda a minha boneca alemã de porcelana, a minha musa da nouvelle vague. Qualquer um embarcaria na sua onda. Magrinha, beleza displicentemente largada na calça capri e na blusa de algodão branco sem mangas. Um conjunto perfeito para uma noite tropical quente. O desejo é uma armadilha que realça, para nos iludir, as qualidades de quem queremos conquistar. A advertência do pobre filósofo Udinei invadiu meus pensamentos: poeta, isso nada mais é que a cegueira do amor. Quer dizer que você foi fisgado. Às favas todos eles. O corpo da minha Jean Seberg pedia carinho. Toques delicados que a minha inexperiência poderia converter em desastres. A indecisão durou minutos. Para o desenlace, teria que fugir dali. Cacei a mão dela na escuridão e a senti gelada, viscosa, apesar da estufa infernal que era a boate cheia e vibrante. Estava aterrorizada, sem dúvida. Minha confiança cresceu, afinal estávamos em pé de igualdade, como pregava o mau filósofo. Arrastei-a dali, sentamo-nos à mesa colada à parede de madeira. Um janelão abria-se para o precípio escuro, o rio estava logo abaixo. Corria vertiginoso, solerte, traiçoeiro como o amor.
Ainda nos apresentávamos quando o garçom nos atendeu. Cuba libre pra mim, Laura pediu guaraná. At Seventeen abriu caminho aos primeiros carinhos. Começaram nos dedos e prontamente subiram à boca. Ela anuiu encostando a cabeça em meu ombro. Lábios carnudos, doces, saliva, suor e batom. Vertigem com Jean Seberg e Janis Ian. Música alta, Nobody Does it Better. Uma pergunta dela: você é o espião que me ama? Completamente, amor. Tornamo-nos o show da noite. Ávidos beijos, mãos atrevidas e incansáveis que o escuro da boate não ocultava.
O garçom voltou.
— Nada por hora, xará — despachei, a cabeça por cima do ombro dela.
Ele sorriu insistente.
—Jovens, o gerente pediu moderação. O ambiente é familiar.
A escuridão foi incapaz de esconder as faces rubras de Laura. Tornaram-se fluorescentes, destacaram-se. Queria ir embora. Prontifiquei-me a levá-la. O meu irmão tá lá fora, pode deixar, desobrigou-me. Vou com você, obstinei-me. Confusa ainda rendeu-se rápido: você que sabe.
Embananei-me, o irmão dela era o Haroldo, colega de aula. Noivo, não integrava a nossa turma dos finais de semana. Tinha um fusquinha. Abriu a boca quando nos viu juntinhos. Desconcertado, alisou o bigodinho ruivo com dedos de nicotina.
— Mano, me leva embora.
— Agora?
— Sim.
Intrometi-me.
— Vou junto.
Haroldo franziu o cenho, alisou os cabelos finos da cor do bigodinho. Tentando disfarçar o incômodo, queixou-se sem muita ênfase:
— Porra, poeta, tanta garota aí e você acerta logo em minha irmã.
Sorri desconcertado, mas fui autêntico:
— Cara, não sabia quem ela era. Nada pessoal, Haroldo. Bom que agora somos cunhados.
— Você é sem-vergonha — disse num quase sorriso.
Entramos no fusquinha. Na frente, Haroldo e a noiva. Atrás, eu e Laura novamente audaciosos. O garçom ficara na Itapuã.

Álvares de Azevedo - Poema


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Quand on te voit, il vient à maints
Une envie dedans les mains
De te tâter, de te tenir...

Clément Marot



Seio de virgem 

 


O que eu sonho noite e dia,
O que me dá poesia
E me torna a vida bela,
O que num brando roçar
Faz meu peito se agitar,
E' o teu seio, donzela!
 

Oh! quem pintara, o cetim
Desses limões de marfim,
Os leves cerúleos veios,
Na brancura deslumbrante
E o tremido de teus seios!
 

Quando os vejo, de paixão
Sinto pruridos na mão
De os apalpar e conter...
Sorriste do meu desejo?
Loucura! bastava um beijo
Para neles se morrer!
 

Minhas ternuras, donzela,
Votei-as à forma bela
Daqueles frutos de neve...
Aí duas cândidas flores
Que o pressentir dos amores
Faz palpitarem de leve.
 

Mimosos seios, mimosos,
Que dizem voluptuosos:
"Amai-nos, poetas, amai!
"Que misteriosas venturas
"Dormem nessas rosas puras
E se acordarão num ai!"
 

Que lírio, que nívea rosa,
Ou camélia cetinosa
Tem uma brancura assim?
Que flor da terra ou do céu,
Que valha do seio teu
Esse morango ou rubim?
 

Quantos encantos sonhados
Sinto estremecer velados
Por teu cândido vestido!
Sem ver teu seio, donzela,
Suas delícias revela
O poeta embevecido!
 

Donzela, feliz do amante
Que teu seio palpitante
Seio d'esposa fizer!
Que dessa forma tão pura
Fizer com mais formosura
Seio de bela mulher!
 

Feliz de mim... porém não!...
Repouse teu coração
Da pureza no rosal!
Tenho eu no peito uma aroma
Que valha a rosa que assoma
No teu seio virginal?...

Álvares de Azevedo - Poema


image de belle femme aux seins nus tirant vers le bas culottes
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À T...





Amoroso palor meu rosto inunda,
Mórbida languidez me banha os olhos,
Ardem sem sono as pálpebras doridas,
Convulsivo tremor meu corpo vibra:
Quanto sofro por ti! Nas longas noites
Adoeço de amor e de desejos
E nos meus olhos desmaiando passa
A imagem voluptuosa da ventura...
Eu sinto-a de paixão encher a brisa,
Embalsamar a noite e o céu sem nuvens,
E ela mesma suave descorando
Os alvacentos véus soltar do colo,
Cheirosas flores desparzir sorrindo
Da mágica cintura.
Sinto na fronte pétalas de flores,
Sinto-as nos lábios e de amor suspiro.
Mas flores e perfumes embriagam,
E no fogo da febre, e em meu delírio
Embebem na minh'alma enamorada
Delicioso veneno
Estrela de mistério! Em tua fronte
Os céus revela, e mostra-me na terra,
Como um anjo que dorme, a tua imagem
E teus encantos onde amor estende
Nessa morena tez a cor de rosa
Meu amor, minha vida, eu sofro tanto!
O fogo de teus olhos me fascina,
O langor de teus olhos me enlanguesce,
Cada suspiro que te abala o seio
Vem no meu peito enlouquecer minh'alma!
Ah! vem, pálida virgem, se tens pena
De quem morre por ti, e morre amando,
Dá vida em teu alento à minha vida,
Une nos lábios meus minh'alma à tua!
Eu quero ao pé de ti sentir o mundo
Na tua alma infantil; na tua fronte
Beijar a luz de Deus; nos teus suspiros
Sentir as vibrações do paraíso;
E a teus pés, de joelhos, crer ainda
Que não mente o amor que um anjo inspira,
Que eu posso na tu'alma ser ditoso,
Beijar-te nos cabelos soluçando
E no teu seio ser feliz morrendo!

Álvares de Azevedo - Poema


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Foto by Ivan Grlic

Amor


    
                                              Quand la mort est si belle,
 Il est doux de mourir. 
V. Hugo



Amemos! Quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!
Na tu'alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos
Suspirar de languidez!
Quero em teus lábio beber
Os teus amores do céu,
Quero em teu seio morrer
No enlevo do seio teu!
Quero viver d'esperança,
Quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança
Quero sonhar e dormir!
Vem, anjo, minha donzela,
Minha'alma, meu coração!
Que noite, que noite bela!
Como é doce a viração!
E entre os suspiros do vento
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!

Olavo Bilac - Poema




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 Foto by Jaime Brum




Deixa o olhar do mundo


X

Deixa que o olhar do mundo enfim devasse
Teu grande amor que é teu maior segredo!
Que terias perdido, se, mais cedo,
Todo o afeto que sentes se mostrasse?

Basta de enganos! Mostra-me sem medo
Aos homens, afrontando-os face a face:
Quero que os homens todos, quando eu passe,
Invejosos, apontem-me com o dedo.

Olha: não posso mais! Ando tão cheio
Deste amor, que minh'alma se consome
De te exaltar aos olhos do universo...

Ouço em tudo teu nome, em tudo o leio:
E, fatigado de calar teu nome,
Quase o revelo no final de um verso.



Olavo Bilac - Poema

e


Tenho frio e ardo em febre!


"E tremo à mezza state, ardendo inverno"
Petrarca




Tenho frio e ardo em febre!
O amor me acalma e endouda! O amor me eleva e abate!
Quem há que os laços, que me prendem, quebre?
Que singular, que desigual combate!

Não sei que ervada flecha
Mão certeira e falaz me cravou com tal jeito,
Que, sem que eu a sentisse, a estreita brecha
Abriu, por onde o amor entrou meu peito.

O amor me entrou tão cauto
O incauto coração, que eu nem cuidei que estava,
Ao recebê-lo, recebendo o arauto
Desta loucura desvairada e brava.

Entrou. E, apenas dentro,
Deu-me a calma do céu e a agitação do inferno...
E hoje... ai de mim!, que dentro em mim concentro
Dores e gostos num lutar eterno!


In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: rosa

Olavo Bilac - Poema




Remorso







Às vezes uma dor me desespera...
Nestas ânsias e dúvidas em que ando,
Cismo e padeço, neste outono, quando
Calculo o que perdi na primavera.

Versos e amores sufoquei calando,
Sem os gozar numa explosão sincera...
Ah ! Mais cem vidas ! com que ardor quisera
Mais viver, mais penar e amar cantando !

Sinto o que desperdicei na juventude;
Choro neste começo de velhice,
Mártir da hipocrisia ou da virtude.

Os beijos que não tive por tolice,
Por timidez o que sofrer não pude,
E por pudor os versos que não disse !











In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet:φθινόπωρο 

Olavo Bilac - Poema




A um poeta



Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha e teima, e lima , e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço: e trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua
Rica mas sóbria, como um templo grego

Não se mostre na fábrica o suplicio
Do mestre. E natural, o efeito agrade
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.







In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Mosteiro de São Bento - SP

Olavo Bilac - Poema

AEROPLANO AA34501 CORGI ESCALA 1/32

"Benedicite"






Bendito o que na terra o fogo fez, e o teto
E o que uniu à charrua o boi paciente e amigo;
E o que encontrou a enxada; e o que do chão abjeto,
Fez aos beijos do sol, o oiro brotar, do trigo;

E o que o ferro forjou; e o piedoso arquiteto
Que ideou, depois do berço e do lar, o jazigo;
E o que os fios urdiu e o que achou o alfabeto;
E o que deu uma esmola ao primeiro mendigo;

E o que soltou ao mar a quilha, e ao vento o pano,
E o que inventou o canto e o que criou a lira,
E o que domou o raio e o que alçou o aeroplano...

Mas bendito entre os mais o que no dó profundo,
Descobriu a Esperança, a divina mentira,
Dando ao homem o dom de suportar o mundo!









In. Jornal de Poesia
Imagemretirada da Internet: aeroplano

Brasigóis Felício - Ensaio curto


Bomba

A burrice da bomba
                                                                                              



Cada um sabe onde é mar ou onde é sertão na paisagem da sua solidão. A memória de ter sido é a mais recôndita e difícil lembrança. O fato de esquecermos passagens de nossa vida tem uma explicação: é que, quando as vivemos, não estivemos conscientes, ou estávamos mergulhados em sono profundo, a dormir pesadamente.

O homem só sabe que não sabia depois que aprendeu. Mas quase nunca aprendemos, pelo simples fato de não saber que não sabemos, ou de não querer saber. Pensar que se tem consciência é o caminho certo para não tê-la. Toda ilusão de nossas vidas se baseia na certeza de que sabemos, podemos fazer tudo o que quisermos, e que temos controle sobre nossos atos, pensamentos e palavras.

Se não fosse tão profundo o sono em que vivemos, poderíamos não ser tão mecânicos, e querer despertar. Mas, não tendo consciência de que estamos adormecidos, precisamos ser despertados por alguém que esteja (ou seja) acordado. Assim como, para sair de uma prisão, primeiro teríamos que ter consciência de que ali estamos como prisioneiros. O que nos mantém prisioneiros dentro de nós mesmos é não saber que não há liberdade sem consciência, nem consciência sem liberdade.
Sair sozinhos seria quase impossível. Teríamos de contar com ferramentas que só poderiam vir de fora. E também da ajuda de outros prisioneiros, que desejassem se libertar.
Sem falar no imprescindível auxílio dos que, tendo sido prisioneiros, quiseram se libertar, e o conseguiram. Conhecem, portanto, os caminhos que tornam possível (mas não certa) a libertação.
*
Distorcemos o princípio mental a ponto de chamar uma bomba de inteligente. Ou de considerar santa uma guerra insana, ou que o acúmulo de bens materiais define a felicidade e a qualidade de vida de um povo, observou Sérgio Moraes. Associamos a felicidade a um determinado estado mental ou emocional, não sabendo que tudo faz o seu caminho e ascensão e de queda. Como bem diz o samba: “O que dá pra rir/dá pra chorar/ Questão só de peso e medida/Problema de hora e lugar/”.
 A visão que compreende é o pensamento (ou a ação) que transforma o sonho em realidade não a que proclama à praça ser dona da verdade, e gerente de consciências. Afinal, uma pandemia acadêmica seria aquela em que a vaidade tomasse de assalto uma cidade, e contaminasse todas as suas possíveis verdades. 

Brasigóis Felício é Poeta e Jornalista, Membro da Academia Goiana de Letras. 



Foto retirada da Internet: Bomba

Castro Alves - Poema



                                                                  Foto by Maldivas




A Tarde




Era a hora em que a tarde se debruça
Lá da crista das serras mais remotas...
E d'araponga o canto, que soluça,
Acorda os ecos nas sombrias grotas;
Quando sobre a lagoa, que s'embuça,
Passa o bando selvagem das gaivotas...
E a onça sobre as lapas salta urrando,
Da cordilheira os visos abalando.

Era a hora em que os cardos rumorejam
Como um abrir de bocas inspiradas,
E os angicos as comas espanejam
Pelos dedos das auras perfumadas...
A hora em que as gardênias, que se beijam,
São tímidas, medrosas desposadas;
E a pedra... a flor... as selvas... os condores
Gaguejam... falam... cantam seus amores!

Hora meiga da Tarde! Como és bela
Quando surges do azul da zona ardente!
,Tu és do céu a pálida donzela ...
Que se banha nas termas do oriente...
Quando é gota do banho cada estrela,
Que te rola da espádua refulgente...
E, — prendendo-te a trança a meia lua,
Te enrolas em neblinas seminua!...

Eu amo-te, ó mimosa do infinito!
Tu me lembras o tempo em que era infante.
Inda adora-te o peito do precito
No meio do martírio excruciante;
E, se não te dá mais da infância o grito
Que menino elevava-te arrogante,
É que agora os martírios foram tantos,
Que mesmo para o riso só tem prantos!...

Mas não m'esqueço nunca dos fraguedos
Onde infante selvagem me guiavas,
E os ninhos do sofrer que entre os silvedos
Da embaíba nos ramos me apontavas;
Nem, mais tarde, dos lânguidos segredos
De amor do nenufar que enamoravas...
E as tranças mulheris da granadilha!...
E os abraços fogosos da baunilha!...

E te amei tanto — cheia de harmonias
A murmurar os cantos da serrana, —
A lustrar o broquel das serranias,
A doirar dos rendeiros a cabana...
E te amei tanto — à flor das águas frias —
Da lagoa agitando a verde cana,
Que sonhava morrer entre os palmares,
Fitando o céu ao tom dos teus cantares!...

Mas hoje, da procela aos estridores,
Sublime, desgrenhada sobre o monte,
Eu quisera fitar-te entre os condores
Das nuvens arruivadas do horizonte...
,Para então, — do relâmpago aos livores ...
Que descobrem do espaço a larga fronte, —
Contemplando o infinito..., na floresta
Rolar ao som da funeral orquestra!!!

In. Domínio Público

Castro Alves - Poema




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A uma estrangeira



Lembrança de uma noite no mar
Sens-tu mon coeur, comme U palpite?
Le tien comme il battait gaiement!
Je m'en vais pourtant, ma petite,
Bien loin, bien vite, Toujours t'aimant.
(Chanson)


Inês! nas terras distantes,
Aonde vives talvez,
Inda lembram-te os instantes
Daquela noite divina?...
Estrangeira, peregrina,

Quem sabes?-Lembras-te, Inês?
Branda noite! A noite imensa
Não era um ninho?-Talvez!...
Do Atlântico a vaga extensa
Não era um berço? — Oh! Se o era...
Berço e ninho... ai, primavera!

O ninho, o berço de Inês.
Às vezes estremecias...
Era de febre? Talvez...
Eu pegava-te as mãos frias
P'ra aquentá-las em meus beijos...
Oh! palidez! Oh! desejos!

Oh! longos cílios de Inês.
Na proa os nautas cantavam;
Eram saudades?... Talvez!
Nossos beijos estalavam
Como estala a castanhola.:.

Lembras-te acaso, espanhola?
Acaso lembras-te, Inês?
Meus olhos nos teus morriam...
Seria vida?-Talvez!
E meus prantos te diziam:
"Tu levas minh'alma, ó filha,
Nas rendas desta mantilha...

Na tua mantilha, Inês!"
De Cadiz o aroma ainda
Tinhas no seio... — Talvez!
De Buenos Aires a linda,
Volvendo aos lares, trazia
As rosas de Andaluzia




In. Domínio Público
Imagem by russian brides

Castro Alves - Poema



A duas flores





São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,

Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...

Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...

Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.

Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!



In. Domínio Público
Imagem: vida sol e mar

Castro Alves - Poema





Amante





"Basta, criança! Não soluces tanto...
Enxuga os olhos, meu amor, enxuga!
Que culpa tem a clícia descaída
Se abelha envenenada o mel lhe suga?

"Basta! Esta faca já contou mil gotas
De lágrimas de dor nos teus olhares.
Sorri, Maria! Ela jurou pagar-tas
No sangue dele em gotas aos milhares.

"Por que volves os olhos desvairados?
Por que tremes assim, frágil criança?
Est'alma é como o braço, o braço é ferro,
E o ferro sabe o trilho da vingança.

"Se a justiça da terra te abandona,
Se a justiça do céu de ti se esquece,
A justiça do escravo está na força...
E quem tem um punhal nada carece!...

"Vamos! Acaba a história... Lança a presa...
Não vês meu coração, que sente fome?
Amanhã chorarás; mas de alegria!
Hoje é preciso me dizer — seu nome!"




In.Domínio Público
Imagem retirada da Internet: flôr

Castro Alves - Poema


Não quero outro amor




"Eu não quero outro amor; não quer a abelha
Um novo cetro se o primeiro cai;
Iramaia viúva nos desertos,
Peregrina chorando — a morte atrai.


Eu não quero outro amor; sou como o cervo
Que a raiz encontrou no jibatã;
Ali se abriga na floresta escura,
Lá viu-o a noite, e vê-lo-á a manhã.


Eu não quero outro amor; não quer a paca
Mais de um caminho, procurando o rio,
Ali a espera o caçador malvado,
Ali ferida, soluçou, caiu.


Eu não quero outro amor — sou como o índio
Que caminha buscando o Taracuá:
Afeito ao fogo da escolhida planta
Vai andando e rejeita o Biribá.


Eu não quero outro amor — não quer a planta
Outra seiva, outro sol, estranho chão:
Não cresce longe, mas definha e prende
Amando o sol que encubara o grão.


Eu não quero outro amor; sou como a seta
Que num vôo somente corta o ar;
Se perde o golpe tomba logo inerte
Entra o índio sem caça o tijupar.


Eu a vítima fui da seta ervada,
De plumas verdes, venenoso fio;
Mas não quero outro amor, ajoelho e beijo
O pó da campa que este amor abriu.


Porque eu sou como a abelha que rejeita
Um novo cetro se o primeiro cai;
Iramaia perdida nos desertos
Peregrina, chorando a morte atrai."





In. Domínio Público
Imagem retirada da Internet: Mal me quer

Castro Alves - Poema



O "adeus" de Teresa




A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus
E amamos juntos E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala


E ela, corando, murmurou-me: "adeus."


Uma noite entreabriu-se um reposteiro. . .
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus
Era eu Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa


E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"


Passaram tempos sec'los de delírio
Prazeres divinais gozos do Empíreo
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse - "Voltarei! descansa!. . . "
Ela, chorando mais que uma criança,


Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"


Quando voltei era o palácio em festa!
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquesta
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei! Ela me olhou branca surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!


E ela arquejando murmurou-me: "adeus!"



In.Poesias completas. São Paulo, Nacional, 1959.
Imagem retirada da Internet: folha seca

Bruno Tolentino - Poema



Via Crucis



A Via Crucis foi uma selvageria,
a Crucifixão uma brutalidade;
mas em três, quatro horas, acabou a agonia,
baixou a eternidade.

Eu vivo aqui, crucificada noite e dia,
carrego da manhã à tarde
o meu lenho de opróbrio e a noite me excrucia,
lenta, fria, covarde.

Ah, como eu preferia
que me crucificassem de uma vez, sem o alarde
de algum terceiro dia!

Mas toca-me seguir nessa monotonia,
a agonia de alçar-me do catre
e abrir de novo os braços, vazia.


In.As Horas de Katharina
Imagem retirada da Internet: Crucificação

Bruno Tolentino - Poema


bruno-tolentino


O Cristo não é
um belo episódio
da história ou da fé:

nem o clavicórdio
nos dedos da luz,
nem o monocórdio

chamado da Cruz.
O crucificado
chamado Jesus

é o encontro marcado
entre a solidão
e o significado

do teu coração:
de um lado teu medo,
teu ódio, teu não;

de outro o segredo
com seu cofre aberto,
onde o teu degredo,

onde o teu deserto,
vão morrer, mas vão
morrer muito perto

da ressurreição.




In. As horas de Katharina. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p.180 
Imagem retirada da Internet: Bruno Tolentino

Bruno Tolentino - Poema





Os Deuses de Hoje




ihil obstat



  
II



É preciso que a música aparente
no vaso harmonizado pelo oleiro
seja perfeitamente consistente
com o gesto interior, seu companheiro

e fazedor. O vaso encerra o cheiro
e os ritmos da terra e da semente
porque antes de ser forma foi primeiro
humildade de barro paciente.

Deus, que concebe o cântaro e o separa
da argila lentamente, foi fazendo
do meu aprendizado o Seu compêndio


de opacidades cada vez mais claras,
e com silêncios sempre mais esplêndidos
foi limando, aguçando o que escutara




In. Plataforma para a poesia
Imagem retirada da Internet: Oleiro

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