Castro Alves - Poema




russiam women, brides and girls
A uma estrangeira



Lembrança de uma noite no mar
Sens-tu mon coeur, comme U palpite?
Le tien comme il battait gaiement!
Je m'en vais pourtant, ma petite,
Bien loin, bien vite, Toujours t'aimant.
(Chanson)


Inês! nas terras distantes,
Aonde vives talvez,
Inda lembram-te os instantes
Daquela noite divina?...
Estrangeira, peregrina,

Quem sabes?-Lembras-te, Inês?
Branda noite! A noite imensa
Não era um ninho?-Talvez!...
Do Atlântico a vaga extensa
Não era um berço? — Oh! Se o era...
Berço e ninho... ai, primavera!

O ninho, o berço de Inês.
Às vezes estremecias...
Era de febre? Talvez...
Eu pegava-te as mãos frias
P'ra aquentá-las em meus beijos...
Oh! palidez! Oh! desejos!

Oh! longos cílios de Inês.
Na proa os nautas cantavam;
Eram saudades?... Talvez!
Nossos beijos estalavam
Como estala a castanhola.:.

Lembras-te acaso, espanhola?
Acaso lembras-te, Inês?
Meus olhos nos teus morriam...
Seria vida?-Talvez!
E meus prantos te diziam:
"Tu levas minh'alma, ó filha,
Nas rendas desta mantilha...

Na tua mantilha, Inês!"
De Cadiz o aroma ainda
Tinhas no seio... — Talvez!
De Buenos Aires a linda,
Volvendo aos lares, trazia
As rosas de Andaluzia




In. Domínio Público
Imagem by russian brides

Castro Alves - Poema



A duas flores





São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,

Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...

Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...

Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.

Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!



In. Domínio Público
Imagem: vida sol e mar

Castro Alves - Poema





Amante





"Basta, criança! Não soluces tanto...
Enxuga os olhos, meu amor, enxuga!
Que culpa tem a clícia descaída
Se abelha envenenada o mel lhe suga?

"Basta! Esta faca já contou mil gotas
De lágrimas de dor nos teus olhares.
Sorri, Maria! Ela jurou pagar-tas
No sangue dele em gotas aos milhares.

"Por que volves os olhos desvairados?
Por que tremes assim, frágil criança?
Est'alma é como o braço, o braço é ferro,
E o ferro sabe o trilho da vingança.

"Se a justiça da terra te abandona,
Se a justiça do céu de ti se esquece,
A justiça do escravo está na força...
E quem tem um punhal nada carece!...

"Vamos! Acaba a história... Lança a presa...
Não vês meu coração, que sente fome?
Amanhã chorarás; mas de alegria!
Hoje é preciso me dizer — seu nome!"




In.Domínio Público
Imagem retirada da Internet: flôr

Castro Alves - Poema


Não quero outro amor




"Eu não quero outro amor; não quer a abelha
Um novo cetro se o primeiro cai;
Iramaia viúva nos desertos,
Peregrina chorando — a morte atrai.


Eu não quero outro amor; sou como o cervo
Que a raiz encontrou no jibatã;
Ali se abriga na floresta escura,
Lá viu-o a noite, e vê-lo-á a manhã.


Eu não quero outro amor; não quer a paca
Mais de um caminho, procurando o rio,
Ali a espera o caçador malvado,
Ali ferida, soluçou, caiu.


Eu não quero outro amor — sou como o índio
Que caminha buscando o Taracuá:
Afeito ao fogo da escolhida planta
Vai andando e rejeita o Biribá.


Eu não quero outro amor — não quer a planta
Outra seiva, outro sol, estranho chão:
Não cresce longe, mas definha e prende
Amando o sol que encubara o grão.


Eu não quero outro amor; sou como a seta
Que num vôo somente corta o ar;
Se perde o golpe tomba logo inerte
Entra o índio sem caça o tijupar.


Eu a vítima fui da seta ervada,
De plumas verdes, venenoso fio;
Mas não quero outro amor, ajoelho e beijo
O pó da campa que este amor abriu.


Porque eu sou como a abelha que rejeita
Um novo cetro se o primeiro cai;
Iramaia perdida nos desertos
Peregrina, chorando a morte atrai."





In. Domínio Público
Imagem retirada da Internet: Mal me quer

Castro Alves - Poema



O "adeus" de Teresa




A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus
E amamos juntos E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala


E ela, corando, murmurou-me: "adeus."


Uma noite entreabriu-se um reposteiro. . .
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus
Era eu Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa


E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"


Passaram tempos sec'los de delírio
Prazeres divinais gozos do Empíreo
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse - "Voltarei! descansa!. . . "
Ela, chorando mais que uma criança,


Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"


Quando voltei era o palácio em festa!
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquesta
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei! Ela me olhou branca surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!


E ela arquejando murmurou-me: "adeus!"



In.Poesias completas. São Paulo, Nacional, 1959.
Imagem retirada da Internet: folha seca

Bruno Tolentino - Poema



Via Crucis



A Via Crucis foi uma selvageria,
a Crucifixão uma brutalidade;
mas em três, quatro horas, acabou a agonia,
baixou a eternidade.

Eu vivo aqui, crucificada noite e dia,
carrego da manhã à tarde
o meu lenho de opróbrio e a noite me excrucia,
lenta, fria, covarde.

Ah, como eu preferia
que me crucificassem de uma vez, sem o alarde
de algum terceiro dia!

Mas toca-me seguir nessa monotonia,
a agonia de alçar-me do catre
e abrir de novo os braços, vazia.


In.As Horas de Katharina
Imagem retirada da Internet: Crucificação

Bruno Tolentino - Poema


bruno-tolentino


O Cristo não é
um belo episódio
da história ou da fé:

nem o clavicórdio
nos dedos da luz,
nem o monocórdio

chamado da Cruz.
O crucificado
chamado Jesus

é o encontro marcado
entre a solidão
e o significado

do teu coração:
de um lado teu medo,
teu ódio, teu não;

de outro o segredo
com seu cofre aberto,
onde o teu degredo,

onde o teu deserto,
vão morrer, mas vão
morrer muito perto

da ressurreição.




In. As horas de Katharina. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p.180 
Imagem retirada da Internet: Bruno Tolentino

Bruno Tolentino - Poema





Os Deuses de Hoje




ihil obstat



  
II



É preciso que a música aparente
no vaso harmonizado pelo oleiro
seja perfeitamente consistente
com o gesto interior, seu companheiro

e fazedor. O vaso encerra o cheiro
e os ritmos da terra e da semente
porque antes de ser forma foi primeiro
humildade de barro paciente.

Deus, que concebe o cântaro e o separa
da argila lentamente, foi fazendo
do meu aprendizado o Seu compêndio


de opacidades cada vez mais claras,
e com silêncios sempre mais esplêndidos
foi limando, aguçando o que escutara




In. Plataforma para a poesia
Imagem retirada da Internet: Oleiro

Bruno Tolentino - Poema




MECANISMOS




Havia um azul sereno
naquele roxo florindo,
o jardim dava no tempo
e o tempo passava rindo.

É tudo de que me lembro.
Quase nada do que sinto.
Deu-se a flor ao pensamento
entre a memória e o instinto.

O mais é aquilo que invento,
as músicas que mal digo,
orvalhos que ficam sendo
daquele jardim antigo.

Carlos Drummond de Andrade - Poema





A UM AUSENTE





Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste


Imagem retirada da Internet: Saudade

Francisco Soares Feitosa - Poema



Architectura
                                                                                             
Um dia, Ela 
desenhará em chãos longínquos a casa só nossa, 
que eu farei com estas mãos.


Os tijolos, eu os amassarei com os meus pés.


Às telhas —
hei de aprontar o barro mais macio,
e as formas serão por mim,
uma a uma, completadas;


Ela as alisará longamente — 
seus dedos molhados de um profundo silêncio:
só os pássaros.

Fortaleza, manhã de 19.11.1998




Imagem retirada da Internet: mãos

Francisco Soares Feitosa - Poema


Foto by Gustavo Penteado

O que digo entre as flores?


Meus olhos se consomem pela tua promessa"
(Salmo 119, 82)
 
 
O resto foi travo e mel  
que não se disse mais nada —  
em um   
ali: 
rubro o tempo, as faces.
      — Seu Francisco — indagou, aflito,   mestre Antônio (vaqueiro): —  o senhor mandou matar todos os novilhos,  foi assim mesmo que entendi,   e botar a melhor veste nos caminhos?  — Como ficará então esta fazenda?  Sem os bois que morrerem,  o que digo entre as flores? 
Diga nada não, mestre Antônio,  
os novilhos ressurgirão  da terra,  
nos passos largos das minhas sandálias.
E os caminhos ficarão de perfume,  
diga nada não, mestre Antônio,  
que ela estava morta,  
as flores sabem, outra vez,  
agora vive.
 
                                 Salvador, mormaço da tarde, 13.03.96
 
Nota: 
O novilho: in Lucas, 15,23: 
Trazei o novilho cevado e matai-o; comamos e festejemos


In. Jornal de Poesia

JJ Leandro - Poema


O tempo produz poesia 




Se o tempo parasse,
Teria início um inquestionável
Dilema.
O poeta se transformaria em estátua
E nunca terminaria o poema.

Isso jamais acontecerá.
É verdade que o poeta
Reclama do tempo todo dia,
Mas somente para transformar
Seu lamento
Em imorredoura poesia.



Imagem retirada da Internet: Dali

Lygia Fagundes Teles - Conto



As Cerejas 




Aquela gente teria mesmo existido? Madrinha tecendo a cortina de crochê com um anjinho a esvoaçar por entre rosas, a pobre Madrinha sempre afobada, piscando os olhinhos estrábicos, "vocês não viram onde deixei meus óculos?" A preta Dionísia a bater as claras de ovos em ponto de neve, a voz ácida contrastando com a doçura dos cremes, "esta receita é nova..." Tia Olívia enfastiada e lânguida, abanando-se com uma ventarola chinesa, a voz pesada indo e vindo ao embalo da rede, "fico exausta no calor..." Marcelo muito louro - por que não me lembro da voz dele? - agarrado à crina do cavalo, agarrado à cabeleira de tia Olívia, os dois tombando lividamente azuis sobre o divã. "Você levou as velas à tia Olívia?", perguntou Madrinha lá embaixo. O relâmpago apagou-se. E no escuro que se fez, veio como resposta o ruído das cerejas se despencando no chão.

A casa em meio do arvoredo, o rio, as tardes como que suspensas na poeira do ar - desapareceu tudo sem deixar vestígios. Ficaram as cerejas, só elas resistiram com sua vermelhidão de loucura. Basta abrir a gaveta: algumas foram roídas por alguma barata e nessas o algodão estoura, empelotado, não, tia Olívia, não eram de cera, eram de algodão suas cerejas vermelhas.

Ela chegou inesperadamente. Um cavaleiro trouxe o recado do chefe da estação pedindo a charrete para a visita que acabara de desembarcar.

- É Olívia! - exclamou Madrinha. - É a prima! Alberto escreveu dizendo que ela viria, mas não disse quando, ficou de avisar. Eu ia mudar as cortinas, bordar umas fronhas e agora!... Justo Olívia. Vocês não podem fazer idéia, ela é de tanto luxo e a casa aqui é tão simples, não estou preparada, meus céus! O que é que eu faço, Dionísia, me diga agora o que é que eu faço!

Dionísia folheava tranqüilamente um livro de receitas. Tirou um lápis da carapinha tosada e marcou a página com uma cruz.

- Como se já não bastasse esse menino que também chegou sem aviso...

O menino era Marcelo. Tinha apenas dois anos mais do que eu mas era tão alto e parecia tão adulto com suas belas roupas de montaria, que tive vontade de entrar debaixo do armário quando o vi pela primeira vez.

- Um calor na viagem! - gemeu tia Olívia em meio de uma onda de perfumes e malas. - E quem é este rapazinho?

- Pois este é o Marcelo, filho do Romeu - disse Madrinha. - Você não se lembra do Romeu? Primo-irmão do Alberto...

Tia Olívia desprendeu do chapeuzinho preto dois grandes alfinetes de pérola em formado de pêra. O galho de cerejas estremeceu no vértice do decote da blusa transparente. Desabotoou o casaco.

- Ah, minha querida, Alberto tem tantos parentes, uma família enorme! Imagine se vou me lembrar de todos com esta minha memória. Ele veio passar as férias aqui?

Por um breve instante Marcelo deteve em tia Olívia o olhar frio. Chegou a esboçar um sorriso, aquele mesmo sorriso que tivera quando Madrinha, na sua ingênua excitação, nos apresentou a ambos, "pronto, Marcelo, aí está sua priminha, agora vocês poderão brincar juntos". Ele então apertou um pouco os olhos. E sorriu.

- Não estranhe, Olívia, que ele é por demais arisco - segredou Madrinha ao ver que Marcelo saía abruptamente da sala. - Se trocou comigo meia dúzia de palavras, foi muito. Aliás, toda a gente de Romeu é assim mesmo, são todos muito esquisitos. Esquisitíssimos!

Tia Olívia ajeitou com as mãos em concha o farto coque preso na nuca. Umedeceu os lábios com a ponta da língua.

- Tem charme...

Aproximei-me fascinada. Nunca tinha visto ninguém como tia Olívia, ninguém com aqueles olhos pintados de verde e com aquele decote assim fundo.

- É de cera? - perguntei tocando-lhe uma das cerejas.

Ela acariciou-me a cabeça com um gesto distraído. Senti bem de perto seu perfume.

- Acho que sim, querida. Por quê? Você nunca viu cerejas?

- Só na folhinha.

Ela teve um risinho cascateante. No rosto muito branco a boca parecia um largo talho aberto, com o mesmo brilho das cerejas.

- Na Europa são tão carnudas, tão frescas.

Marcelo também tinha estado na Europa com o avô. Seria isso? Seria isso que os fazia infinitamente superiores a nós? Pareciam feitos de outra carne e pertencer a um outro mundo tão acima do nosso, ah! como éramos pobres e feios. Diante de Marcelo e tia Olívia, só diante dos dois é que eu pude avaliar como éramos pequenos: eu, de unhas roídas e vestidos feitos por Dionísia, vestidos que pareciam as camisolas das bonecas de jornal que Simão recortava com a tesoura do jardim. Madrinha, completamente estrábica e tonta em meio das suas rendas e crochês. Dionísia, tão preta quanto enfatuada com as tais receitas secretas.

- Não quero é dar trabalho - murmurou tia Olívia dirigindo-se ao quarto. Falava devagar, andava devagar. Sua voz foi se afastando com a mansidão de um gato subindo a escada. - Cansei-me muito, querida. Preciso apenas de um pouco de sossego...

Agora só se ouvia a voz de Madrinha que tagarelava sem parar: a chácara era modesta, modestíssima, mas ela haveria de gostar, por que não? O clima era uma maravilha e o pomar nessa época do ano estava coalhado de mangas. Ela não gostava de mangas? Não?... Tinha também bons cavalos se quisesse montar, Marcelo poderia acompanhá-la, era um ótimo cavaleiro, vivia galopando dia e noite. Ah, o médico proibira? Bem, os passeios a pé também eram lindos, havia no fim do caminho dos bambus um lugar ideal para piqueniques, ela não achava graça num piquenique?

Fui para a varanda e fiquei vendo as estrelas por entre a folhagem da paineira. Tia Olívia devia estar sorrindo, a umedecer com a ponta da língua os lábios brilhantes. Na Europa eram tão carnudas... Na Europa.

Abri a caixa de sabonete escondida sob o tufo de samambaia. O escorpião foi saindo penosamente de dentro. Deixei-o caminhar um bom pedaço e só quando ele atingiu o centro da varanda é que me decidi a despejar a gasolina. Acendi o fósforo. As chamas azuis subiram num círculo fechado. O escorpião rodou sobre si mesmo, erguendo-se nas patas traseiras, procurando uma saída. A cauda contraiu-se desesperadamente. Encolheu-se. Investiu e recuou em meio das chamas que se apertavam mais.

- Será que você não se envergonha de fazer uma maldade dessas?

Voltei-me. Marcelo cravou em mim o olhar feroz. Em seguida, avançando para o fogo, esmagou o escorpião no tacão da bota.

- Diz que ele se suicida, Marcelo...

- Era capaz mesmo quando descobrisse que o mundo está cheio de gente como você.

Tive vontade de atirar-lhe a gasolina na cara. Tapei o vidro.

- E não adianta ficar furiosa, vamos, olhe para mim! Sua boba. Pare de chorar e prometa que não vai mais judiar dos bichos.

Encarei-o. Através das lágrimas ele pareceu-me naquele instante tão belo quanto um deus, um deus de cabelos dourados e botas, todo banhado de luar. Fechei os olhos. Já não me envergonhava das lágrimas, já não me envergonhava de mais nada. Um dia ele iria embora do mesmo modo imprevisto como chegara, um dia ele sairia sem se despedir e desapareceria para sempre. Mas isso também já não tinha importância. Marcelo, Marcelo! chamei. E só meu coração ouviu.

Quando ele me tomou pelo braço e entrou comigo na sala, parecia completamente esquecido do escorpião e do meu pranto. Voltou-lhe o sorriso.

- Então é essa a famosa tia Olívia? Ah, ah, ah.

Enxuguei depressa os olhos na barra da saia.

- Ela é bonita, não?

Ele bocejou.

- Usa um perfume muito forte. E aquele galho de cerejas dependurado no peito. Tão vulgar.

- Vulgar?

Fiquei chocada. E contestei mas em meio da paixão com que a defendi, senti uma obscura alegria ao perceber que estava sendo derrotada.

- E, além do mais, não é meu tipo - concluiu ele voltando o olhar indiferente para o trabalho de crochê que Madrinha deixara desdobrado na cadeira. Apontou para o anjinho esvoaçando entre grinaldas. - Um anjinho cego.

- Por que cego? - protestou Madrinha descendo a escada. Foi nessa noite que perdeu os óculos. - Cada idéia, Marcelo!

Ele debruçara-se na janela e parecia agora pensar em outra coisa.

- Tem dois buracos em lugar dos olhos.

- Mas crochê é assim mesmo, menino! No lugar de cada olho deve ficar uma casa vazia - esclareceu ela sem muita convicção. Examinou o trabalho. E voltou-se nervosamente para mim. - Por que não vai buscar o dominó para vocês jogarem uma partida? E vê se encontra meus óculos que deixei por aí.

Quando voltei com o dominó, Marcelo já não estava na sala. Fiz um castelo com as pedras. E soprei-o com força. Perdia-o sempre, sempre. Passava as manhãs galopando como louco. Almoçava rapidamente e mal terminava o almoço, fechava-se no quarto e só reaparecia no lanche, pronto para sair outra vez. Restava-me correr ao alpendre para vê-lo seguir em direção à estrada, cavalo e cavaleiro tão colados um ao outro que pareciam formar um corpo só.

Como um só corpo os dois tombaram no divã, tão rápido o relâmpago e tão longa a imagem, ele tão grande, tão poderoso, com aquela mesma expressão com que galopava como que agarrado à crina do cavalo, arfando doloridamente na reta final.

Foram dias de calor atroz os que antecederam à tempestade. A ansiedade estava no ar. Dionísia ficou mais casmurra. Madrinha ficou mais falante, procurando disfarçadamente os óculos nas latas de biscoitos ou nos potes de folhagens, esgotada a busca em gavetas e armários. Marcelo pareceu-me mais esquivo, mais crispado. Só tia Olívia continuava igual, sonolenta e lânguida no seu negligê branco. Estendia-se na rede. Desatava a cabeleira. E com um movimento brando ia se abanando com a ventarola. Às vezes vinha com as cerejas que se esparramavam no colo polvilhado de talco. Uma ou outra cereja resvalava por entre o rego dos seios e era então engolida pelo decote.

- Sofro tanto com o calor...

Madrinha tentava animá-la.

- Chovendo, Olívia, chovendo você verá como vai refrescar.

Ela sorria umedecendo os lábios com a ponta da língua.

- Você acha que vai chover?

- Mas claro, as nuvens estão baixando, a chuva já está aí. E vai ser um temporal daqueles, só tenho medo é que apanhe esse menino lá fora. Você já viu menino mais esquisito, Olívia? Tão fechado, não? E sempre com aquele arzinho de desprezo.

- É da idade, querida. É da idade.

- Parecido com o pai. Romeu também tinha essa mesma mania com cavalo.

- Ele monta tão bem. Tão elegante.

Defendia-o sempre enquanto ele a atacava, mordaz, implacável: "É afetada, esnobe. E como representa, parece que está sempre no palco". Eu contestava, mas de tal forma que o incitava a prosseguir atacando.

Lembro-me de que as primeiras gotas de chuva caíram ao entardecer, mas a tempestade continuava ainda em suspenso, fazendo com que o jantar se desenrolasse numa atmosfera abafada. Densa. Pretextando dor de cabeça, tia Olívia recolheu-se mais cedo. Marcelo, silencioso como de costume, comeu de cabeça baixa. Duas vezes deixou cair o garfo.

- Vou ler um pouco - despediu-se assim que nos levantamos.

Fui com Madrinha para a saleta. Um raio estalou de repente. Como se esperasse por esse sinal, a casa ficou completamente às escuras enquanto a tempestade desabava.

- Queimou o fusível! - gemeu Madrinha. - Vai, filha, vai depressa buscar o maço de velas, mas leva primeiro ao quarto de tia Olívia. E fósforos, não esqueça os fósforos!

Subi a escada. A escuridão era tão viscosa, que se eu estendesse a mão poderia senti-la amoitada como um bicho por entre os degraus. Tentei acender a vela mas o vento me envolveu. Escancarou-se a porta do quarto. E em meio do relâmpago que rasgou a treva, vi os dois corpos completamente azuis, tombando enlaçados no divã.

Afastei-me cambaleando. Agora as cerejas se despencavam sonoras como enormes bagos de chuva caindo de uma goteira. Fechei os olhos. Mas a casa continuava a rodopiar desgrenhada e lívida com os dois corpos rolando na ventania.

- Levou as velas para a tia Olívia? - perguntou Madrinha.

Desabei num canto, fugindo da luz do castiçal aceso em cima da mesa.

- Ninguém respondeu, ela deve estar dormindo.

- E Marcelo?

- Não sei, deve estar dormindo também.

Madrinha aproximou-se com o castiçal.

- Mas que é que você tem, menina? Está doente? Não está com febre? Hem?! Sua testa está queimando... Dionísia, traga uma aspirina, esta menina está com um febrão, olha aí!

Até hoje não sei quantos dias me debati esbraseada, a cara vermelha, os olhos vermelhos, escondendo-me debaixo das cobertas para não ver por entre clarões de fogo milhares de cerejas e escorpiões em brasa, estourando no chão.

- Foi um sarampo tão forte - disse Madrinha ao entrar certa manhã no quarto. - E como você chorava, dava pena ver como você chorava! Nunca vi um sarampo doer tanto assim.

Sentei-me na cama e fiquei olhando uma borboleta branca pousada no pote de avencas da janela. Voltei-me em seguida para o céu limpo. Havia um passarinho cantando na paineira. Madrinha então disse:

- Marcelo foi-se embora ontem à noite, quando vi, já estava de mala pronta, sabe como ele é. Veio até aqui se despedir, mas você estava dormindo tão profundamente.

Dois dias depois, tia Olívia partia também. Trazia o costume preto e o chapeuzinho com os alfinetes de pérola espetados no feltro. Na blusa branca, bem no vértice do decote, o galho de cerejas.

Sentou-se na beirada da minha cama.

- Que susto você nos deu, querida - começou com sua voz pesada. - Pensei que fosse alguma doença grave. Agora está boazinha, não está?

Prendi a respiração para não sentir seu perfume.

- Estou.

- Ótimo! Não te beijo porque ainda não tive sarampo - disse ela calçando as luvas. Riu o risinho cascateante. - E tem graça eu pegar nesta altura doença de criança?

Cravei o olhar nas cerejas que se entrechocavam sonoras, rindo também entre os seios. Ela desprendeu-as rapidamente.

- Já vi que você gosta, pronto, uma lembrança minha.

- Mas ficam tão lindas aí - lamentou Madrinha. - Ela nem vai poder usar, bobagem, Olívia, leve suas cerejas!

- Comprarei outras.

Durante o dia seu perfume ainda pairou pelo quarto. Ao anoitecer, Dionísia abriu as janelas. E só ficou o perfume delicado da noite.

- Tão encantadora a Olívia - suspirou Madrinha sentando-se ao meu lado com sua cesta de costura. - Vou sentir falta dela, um encanto de criatura. O mesmo já não posso dizer daquele menino. Romeu também era assim mesmo, o filho saiu igual. E só às voltas com cavalos, montando em pêlo, feito índio. Eu quase tinha um enfarte quando via ele galopar.

Exatamente um ano depois ela repetiria, num outro tom, esse mesmo comentário ao receber a carta onde Romeu comunicava que Marcelo tinha morrido de uma queda de cavalo.

- Anjinho cego, que ideia! - prosseguiu ela desdobrando o crochê nos joelhos. - Já estou com saudades de Olívia, mas dele?

Sorriu alisando o crochê com as pontas dos dedos. Tinha encontrado os óculos.




In. Oito contos de amor.
Imagem retirada da Internet: cerejas


Dora Ferreira da Silva - Poema




Elegia dos Golfinhos





Viu (porque só ver podia)
sem interferir: eles feriam
o cardume denso dos golfinhos, armadura azulada
protegendo atuns. Eram estes o alvo cobiçado
para as latarias de consumo. Tudo servia
aos velhacos: matemática, um navio branco
— noivo da Morte —, redes atiradas
em círculo perfeito e nefasto perto do cardume.
Tiros ecoavam no ar, encapelando
a ordem bela dos golfinhos no caos turbilhonante.
Aprisionados, eles se contorciam em desespero.

Lamentem-se os coros sagrados de Netuno
acorram Nereidas, Anfitrite em lágrimas com
seus cavalos marinhos em torno das malévolas mandalas
de redes sobre o mar. Ó Nova Idade, não vês tantas
formas desfeitas, não vês que o rei Midas
tudo transforma agora no ouro do negócio?
Os golfinhos tranqüilos começam a morder.
Ah, cascata iridiscente no limiar da morte
em dança fúnebre! É o anti-Cristo no coração dos homens,
o usurpador, o peixe voltado para a esquerda, involutivo.

Mercância vil contaminando cabeças
e corações! Vociferem as pitonisas
de cabelos soltos, pálpebras emaciadas!
São os golfinhos os novos educadores
com sua graça natural, com sua dança
que a morte não detém. Eles propõem música.


Imagem retirada da Internet: Golfinhos 

Francisco Perna Filho - Poema




Comida Caseira




Cansado
de aventuras
extraconjugais,
lembrou-se da mulher
e voltou para casa.


Imagem retirada da Internet: Cinta-liga

Francisco Perna Filho - Poema




Criação



Na quarta,
eu recolho as cinzas,
dissipo as cismas,
enceto a rima,
sem olhar para
trás.

Na quarta,
retomo a messe,
componho a prece,
celebro a vida.


Imagem: Michelângelo: A Criação de Adão

Pio Vargas Abadio Rodrigues - Poema







Aviário de Naus


Nunca fui de vigiar espantos.
Sobrevivo ante a urgência
de cada mínima coisa
imaginando o que pode advir
quando o semáforo
sorrir
O verde e o corpo em disparada
romper o ritmo:
oceano a morrer de sede.


Pequeno
eu inventava demônios
só pelo prazer de os ter
a povoar neurônio.

Pequeno ainda
imaginava abismos
sob os cabelos
penhascos
planícies
novelos
só para vestir
os lugares mais distantes
onde armo duelos
com espelhos.

Hoje
o inquilino que me habita
cintila nos relógios
de praça e pulso
sem reparar no corpo
o dédalo tempero
de um oceano avulso.
sem descobrir
que o equilíbrio
supera o efeito
e se fantasma ou glândula
isso que limita o peito.

Eu sempre soube
que um pedaço de gelo
carrega o fogo
que não lhe coube.

E cresci sem planos
como vão crescendo
os fantasmas
pela noite dos anos.

Agora
fico a moldurar delírios
como se inventasse mundos
planetas
galáxias inteiras
em mínimas letras.

Sei-me de fato
a geração de suicidas
que optou por adiar o ato.
Tenho razões indizíveis
para acreditar em nada
e apenas ficar por perto
por perto, apenas,
como se a vontade
fosse descartável
e isso de insônia
tivesse pouco a ver
com a didática da fome
de memória inadiável.

As gaiolas de agora
Ao meio dia a vida é outra
mas não se encontra jamais
a ilusória porta inicial:

Vive-se muito pelo pouco
já que nascer
foi a mera aula inaugural.

Por isso
dei de sequestrar manhãs
só para modelar os relógios
e tecer
fio a fio
as horas vãs
lás
a costurar vazios pelos cômodos divãs

Aprendi que a vida grassa
mas não passa de rima fácil.

Velho

acho que valho
a idade dos espelhos
o tempero dos sais
a metafísica do cais
e mais
um aviário de naus
que pediu concordatas
e passou pelas datas
usuário do caos.



Poema vencedor do Gremi de 1989, 1º lugar.



In.Historiografia Goiana.
Imagem retirada da Internet: Naus

Noel Rosa - Poema





Pierrô apaixonado


Um Pierrô apaixonado,
Que vivia só cantando,
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando... Acabou chorando...

A Colombina entrou num butiquim,
Bebeu, bebeu, saiu assim, assim
Dizendo: "Pierrô, cacete!
Vai tomar sorvete com o Arlequim!"

Um grande amor tem sempre um triste fim.
Com o Pierrô aconteceu assim.
Levando esse grande chute,
Foi tomar vermute com amendoim.



Imagem retirada da Internet: Máscara

Francisco Perna Filho - Poema


Atrás do curral



Atrás do curral,
mora uma fada,
que se enfeita
de folhas e pimentas
vermelhas.
à noite,
quando se deita,
iludida pelos pássaros,
que passeiam no seu ventre,
entrega-se a rosas e risos,
para, depois,
serenar
adormecida.


Do livro inédito Venerada Veneranda.




Imagem retirada da Internet: pimentas

Francisco Perna Filho - Poema




Passagem




Sob a ponte,
a fonte,
um passado em torrente,
um menino acena para sua mãe.
A água é fria,
a vida larga,
os olhos do menino
devoram o céu imenso.
Ninguém sobrou
para contar a história.
Só a memória,
e é essa
ficção.


Imagem retirada da Internet: ponte

Francisco Perna Filho - Poema




No balanço do vento


                                        Para minha Mãe



Eu choro pela minha mãezinha,
que ficou só.
Ela era tantas,
estampava alegria,
um canto de primaveras,
um olhar para lá do rio.
Assim, como está,
hoje, como a flor solitária na roseira,
indo e vindo,
no balanço do vento,
só, sozinha, somente.
Para onde vão os filhos
depois que crescem?
vão para qualquer lado,
canto, ou país,
não importa.
O que importa
é a porta sempre aberta,
o barulho que levam,
e a certeza de que são muitos.
Eu choro pela minha mãezinha,
Só, sozinha, semente.


Imagem retirada da Internet: borboleta

JJ Leandro - Conto




ELEIÇÕES NA CASA DO SENHOR




Um diálogo possível, pois nestes tempos volúveis só a imprevisibilidade é previsível.


(Pedro um tanto assombrado)
— Senhor, acordai do sono eterno.
(O senhor atarantado após uma eternidade letárgica)
— O que há, Pedro. Como ousas tanto?
— É que os protestos se fazem presentes, pressentis?
(A ignominiosa onipotência falando mais alto)
— Um leve murmúrio... não mais.
(Pedro com um resquício de receio humano)
—  Estais mouco, digo sem medo, que medo maior é depordes. É assim que começa, Senhor. Em pouco é conflagração aberta na praça, como no Egito e na Tunísia.
(Senhor, numa consulta comum aos que pouco se dedicam aos seus sérios assuntos)
— O que fazem meus ministros nas igrejas católicas, dize-me Pedro?
(Pedro sobremaneira contrariado)
—  Dormem, Senhor, é o que fazem. Dormem sobre oferendas, esmolas, donativos e falácias que emprenham pelos ouvidos.
(O Senhor com o ar afetado dos negligentes)
— Não me surpreende que os evangélicos medrem como ervas daninhas por todo lado. E o que querem, Pedro, esses insolentes?
— Eleições, Senhor, eleições.
(O Senhor surpreso sem medida)
— Aqui?
— Ainda não, Senhor, no Vaticano, por hora se bastam com isso.
(Senhor num oportunismo que o iguala em venalidade aos humanos)
— Pois abrevias, homem, prometes eleições.
(Pedro com temor hierárquico)
— Podem ser de 4 em 4 anos, Senhor?
— Sim, mas claro, de 4 em 4 anos.
(Pedro com certo alívio ao saber que a coisa doravante é de homem pra homem)
— E se Bento não gostar?
— Que se dane o Bento, eu é que não me posso danar.
(Pedro com alegria ladina)
— Bem sei, é aquela história: que se vão os anéis e fiquem os dedos.
(O Senhor com a rabugice de sempre)
— Justo, mas larga de filosofice que o momento é crítico, me previne a onisciência. Corre lá e anuncia a boa nova, eleições de 4 em 4 anos, antes que nem os dedos restem. 

O Poeta da Totalidade - Ensaio Crítico





Por Rodrigo Petrônio*


Se o poeta é mesmo um mediador, como queria Platão, aquele que intercede pelos deuses e faz falar em sua voz humana as palavras numinosas e divinas, que encarna na língua dos homens aquela linguagem ancestral de onde não só promana o verbo, mas que possibilita a própria existência da linguagem, poucos poetas deram um testemunho tão arrebatador dessa potência da poesia do que Saint-John Perse. E esse milagre se realiza com tanta pujança que, no seu caso, falar de poesia como se essa fosse um correlato do sagrado chega a ser quase um truísmo. Não só poesia e sagrado são a única e mesma coisa, como a melhor metáfora para o poema seria a de um altar em chamas, onde se consuma o fogo dos deuses e onde o homem se imola, sacrifica-se em sua finitude humana para, assim e somente assim, ingressar no reino da Totalidade que lhe fundamenta em seu ser e aderir ao devir de um tempo finalmente redimido.

Não é por acaso que, tendo-se em mente tal natureza de criação poética e de concepção de arte, o próprio Saint-John Perse comparará o poeta ao sacerdote: é aquele que no mundo moderno mantém aceso o fogo da superação de todos os limites e que força o espírito a transcender toda e qualquer contingência material. É desse impulso vital que emana a sua poesia e nele é que se funda o ímpeto de transgressão sobre o qual toda a verdadeira atividade poética se radica. Transgressão porque faz das balizas que se divisam no mar os pontos flutuantes de uma peregrinação incessante rumo ao Absoluto, e funda sobre a imagem mítica deste mesmo mar um palco onde se desenrola o destino da humanidade rumo ao esplendor e à transitividade, à impermanência e à grandeza épica que este mar encerra, em oposição à derelicção, ao abandono, à amargura e ao espírito de gravidade que aprisiona os homens no Porto, em terra firme, seres feitos exclusivamente para a morte e cativos de sua própria miséria.

Em um paralelismo curioso, é por meio do trabalho incansável de outro sacerdote espiritual, que também exerce função semelhante no mundo das letras, tamanho é o seu empenho e generosidade intelectuais, que o leitor brasileiro agora tem a oportunidade de ter acesso direto a essa poesia. Trata-se da tradução de Amers – Marcas Marinhas, obra fundamental, dir-se-ia uma das grandes obras da língua francesa, que vem a lume sob a esmerada e impecável tradução do Frei Bruno Palma*, que há 30 anos se dedica ao estudo e à tradução minuciosa deste que foi um dos maiores poetas do século XX. Assim, a atividade de Bruno Palma como tradutor é um caso exemplar em nossa vida intelectual. Haja vista o seu currículo invejável: sólida formação humanista e filosófica, conhecimento das línguas clássicas, longa estadia como pesquisador na França, onde foi aluno de ninguém menos que Julien Greimas, e, por fim, condecorado com a alta distinção de Cavaleiro pela Ordem das Artes e Letras do governo francês.

Por sua vez, a trajetória de Saint-John Perse, pseudônimo de Marie-René Aléxis Saint-Leger Leger, é das mais singulares e vale a pena ser comentada. Nascido em 1887, de família francesa, em Pointe-à-Pitre, na ilha de Guadalupe, no arquipélago das Antilhas, logo parte para a França. Cursa a faculdade de Direito e mais tarde, depois de cumpridos os anos de aprendizagem na Escola de Altos Estudos Comerciais, ingressa na carreira diplomática. Viaja pela Espanha, Inglaterra, Alemanha. Cumpre missões na China e retorna à França, onde é nomeado para o alto cargo de chefe de gabinete de Aristide Briand, Ministro de Relações Exteriores. Com a ofensiva alemã e a tomada de Paris, é demitido de suas funções e tem sua cidadania e seus bens confiscados pelo governo de Vichy, em 1940. Exila-se nos  EUA, de onde enceta uma série de novas viagens, podendo regressar ao solo francês apenas no final da década de 50, quando dá início a um novo período de sua vida, repleta de prêmios, condecorações, publicações e traduções de sua obra, vindo falecer em setembro de 1975.

Esses dados biográficos não são gratuitos, tampouco têm função ornamental em relação à sua obra. Se pensarmos, como o fez o crítico Albert Henry, que a obra de Perse se funda em uma poética do movimento e do devir, sua própria situação itinerante pode nos afiançar essa hipótese, bem como corroborar a permanente insatisfação e a profunda insubmissão que movia o poeta, presentes ao longo de seus versos e referidas como sendo a grande virtude da poesia, como diz a famosa (e poética) carta a Dag Hammarskjöld, consultor do tradutor sueco de Perse. Se pensarmos que a tônica de sua poesia é a adoção de uma perspectiva cultural ecumênica, ou seja, uma poesia que pretende dar uma configuração universal de toda a humanidade, na qual não raras vezes somos tomados por uma riqueza vocabular, histórica e geográfica desconcertante, poesia esta que também trata sempre de celebrar a viagem, não só em sua dimensão literal, mas também em seu sentido alegórico, como travessia do homem pela sua existência na Terra, os dados biográficos e poéticos se complementam, formando juntos uma só fisionomia do homem que os compôs.

No caso de Amers, trata-se de obra complexa, que foi publicada em partes, em revistas literárias, e depois reunida em volume, em 1957. Sua estrutura é sinfônica e de difícil redução didática. Subdivide-se em quatro partes: Invocação, Estrofe, Coro e Dedicação. Cada qual conta com uma seqüência de cantos, que vão se inter-cambiando, de modo que temos, se não um enredo, já que não lhe subjaz propriamente uma estória, um itinerário, que se abre às mais variadas interpretações e leituras. Atravessam essas quatro partes uma série de figurações, ou seja, de personagens que representam instâncias do real, indivíduos ou grupos humanos. São elas: Oficiais e Trabalhadores do Porto, Mestre de Astros e de Navegação, as Trágicas, as Patrícias, a Poetisa, as Profetisas, as Jovens e os Amantes, aos quais é dedicado o canto IX, Estreito são os Barcos, um dos mais belos da literatura erótica ocidental moderna e um dos poemas mais famosos de Perse. As remissões ao mundo grego e às tragédias são evidentes e programáticas: não só Perse estabelece um paralelo entre o seu mundo poético e a antiguidade, como usa, para a criação do espaço cênico de Amers, elementos e uma disposição semelhante às dos grandes teatros gregos, sendo o palco o próprio mar, onde se desenreda o fio da trama humana tendo o céu como pano de fundo.

Por seu turno, a pluralidade de sentidos da obra já começa pelo título. Amers, em linguagem técnica da marinha, são marcas, balizes que se fixam no mar para orientar a navegação. Porém, ela tem ressonâncias do verbo amar (aimers) e do vocábulo amares, que quer dizer estar diante do mar. Além disso há uma outra acepção: como notou a poeta Dora Ferreira da Silva em estudo sobre o poema e como ratifica Bruno Palma, amers também se aproxima de amères, que é amargo, e, ao dar a justa dimensão alegórica do percurso da humanidade, compara o desenrolar do nosso destino neste mundo com a amargura das águas que nos presenteiam com sua eterna novidade assim como nos arrojam na mais profunda solidão, finitude e instabilidade. O mar como correlato objetivo do puro movimento, do devir incessante, do ser unívoco e monista dos primeiros filósofos pré-socráticos, como Unidade imanente que corresponde ao próprio universo, tal como foi dito pelo poeta em carta a Roger Caillois, um dos maiores estudiosos de sua obra.

De fato, para Saint-John Perse o mar não é apenas uma entidade mítica, uma metáfora poética de alta carga semântica ou o ideal de uma vida colhida em pleno curso e em seu frêmito vital de expansão. O mar é signo da própria existência, corresponde àquela clareira do ser de que nos fala Martin Heidegger, e é também o Aberto por onde se acede ao Absoluto e onde nos reconduzimos àquela nossa pátria natural alienada: a Totalidade. Se desde o início dos tempos ela nos fôra privada e por ela o homem erra como um eterno exilado, tal como o solitário de Babel e Sião vive exilado da pátria Celeste, como nos diz Camões, e por sua ausência o homem vive preso à rotina da Cidade e da terra firme, entre as sombras do Porto, a poesia é um dos meios privilegiados pelos quais ele pode reconquistá-la e restituí-la. Porque nela se realiza a síntese suprema entre o instante que pulsa e o eterno, entre o movimento das imagens que nos vêm aos olhos, as vagas que quebram e se renovam, o mar que é sempre e sempre outro e sempre recomeçado, e aquela Imobilidade fulminante que só existe para além da percepção e dos conceitos, sede de toda a nossa vida possível e horizonte de toda a nossa liberdade.

Quando diante dela, cabe a destruição do poeta pela luz que exorbita os limites humanos. Aqui entra o mito de Xiva, que tanto atraiu Perse e que tanto marcou sua infância e seu imaginário. Mito pelo qual sua ama indiana, desde criança, lhe instilara a admiração, chegando a compará-lo a ele. E aqui nasce o poeta, como pequeno deus modelador do real, sob o signo de Xiva. Deus da suprema criação que é ao mesmo tempo a suprema destruição, destruição transfiguradora e criação que revolve tudo dentro de si, ímpeto prometeico rumo às origens e destruição da realidade tomada como uma das faces do sonho e da ilusão, véu de Maia, mergulho no sono das criaturas rumo à reorganização da ordem divina. É o poeta tomado pela hybris, emulando o Criador, querendo ser também ele um deus que cria o mundo pela intercessão da palavra poética. Mas também é o poeta em sua mea culpa, em um dos seus últimos livros, chamando-se a si mesmo de “macaco de Deus”. Não adianta a atitude simiesca, a imitação da música, a aspiração à divindade: tudo no mundo sublunar é causa segunda e derivação do primeiro sopro de Deus. Não adianta a atitude megalômana: somos todos ainda mais criados de Deus do que seus criadores. Poesia como meio e fim, essência e origem, sacerdócio e cuidado, contra o niilismo e o materialismo do mundo moderno e contra a vileza de valores de uma sociedade devastada.

Poesia como ciência do ser, porque toda a poesia é uma ontologia, diria Perse em um texto crítico. É um mergulho nas zonas indevassáveis do real e um parti pris do silêncio que institui a própria possibilidade da Palavra. Poesia da liberdade, da liberdade em seu estado puro e de pura latência, liberdade fundadora e original, não como algo perdido no tempo e em uma ancestralidade remota, mas como uma força que irrompe e se projeta no presente, e se oferece como o fundamento mesmo da própria possibilidade de nossas vidas e de nossos atos. Assim é o mar de Perse: instância projetiva do real, realidade fulgurante e ígnea, sempre apontando para a transcendência de si mesmo e do mundo pobre dos fenômenos visíveis e tangíveis. Para lembrar o discurso que o poeta pronunciou em Florença, em 1965, no sétimo centenário de nascimento de Dante, a poesia partilha de um tempo que não é nem histórico nem eterno: é um constante agora. E nesse sentido, Perse, ao falar do grande poeta florentino, falava sim de si mesmo. Dele que ergueu sua voz e fê-la alçar-se à dimensão daquela era plena da linguagem, de que nos fala o poeta, domínio próprio da poesia e sua morada, onde a palavra de Saint-John Perse, a sua precária palavra de homem, transfigurou-se, se susteve e agora permanece e há de se manter, como a de Dante, incólume e inaugural, sobre a lâmina do abismo dos séculos que se sucederão indefinidamente.



* SAINT-JOHN PERSE. Amers – Marcas Marinhas. Tradução, Introdução e Notas de Bruno Palma. São Paulo, Ateliê, 2004.

*Rodrigo Petrônio é um dos mais significativos poetas contemporâneos.




In. Revista Amálgama
Imagem retirada da Internet: Saint-John Perse

Gottfried Benn - Poema


                               


















Ah, o país distante






Ah, o país distante,
onde aquilo que desgarra o coração
sobre seixos redondos
ou sobre juncos, como libélulas frementes
murmura,
e a lua
de luz astuta
      - metade madura, metade branca de espigas –
ergue, tão consoladora,
o duplo fundo da noite –

       ah, o país distante,
onde o fulgor dos lagos
aquece as colinas,
por exemplo Asolo, onde repousa a Duse;
todos os navios de guerra, mesmo os ingleses,
baixaram as bandeiras quando “Duílio” passou por Gibraltar,
trazendo-a de Pittsburg, de volta –

        lá, monólogos
sem relação com o que é próximo,
sentimentos íntimos
precoces mecanismos,
fragmentos de totem
no ar brando –
um pouco de pão doce na jaqueta –
assim passam os dias,
até que depois de um longo voo
os pássaros possam pousar
perto do céu, num ramo



Tradução de Dora Ferreira da Silva


Imagem: Wikipedia

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