Antônio Carlos Scchin - Poema



Siron Franco


Linguagens


Notei que o vôo negro da hipálage
não tinha o mel dos lábios da metáfora,
e mais notara, se não fora a enálage,
e mais voara, se não fosse a anáfora.

Chorei dois oceanos de hipérbole,
duas velas cortaram a metonímia.
O pé da catacrese já marchava
no compasso toante dessa rima.

Verteu prantos a anímica floresta,
mas entramos dentro do pleonasmo,
‘stamos em pleno oceano da aférese...

Vai-se um expletivo, outro e outro mais...
Os poetas somos muito silépticos;
os poemas, elípticos demais.


Antônio Carlos Scchin - Poema


Siron Franco - Vermelho

Arte 


Poemas são palavras e presságios,
pardais perdidos sem direito a ninho.
Poemas casam nuvens e favelas
e se escondem depois no próprio umbigo.
Poemas são tilápias e besouros,
ar e água à beira de anzóis e riscos.
São begônias e petúnias,
isopor ou mármore nas colunas,
rosas decepadas pelas hélices
de vôos amarrados ao chão.
Cinza do que foi orvalho,
poema é carta fora do baralho,
milharal pegando fogo
pelo berro do espantalho.




Siron Franco - Vermelho - Pintura  óleo sobre cartão - 1999

Rosana Carneiro Tavares - Ensaio curto



Duas importantes causas



Sempre fui afeita às causas dos Direitos Humanos em nossa sociedade. Principalmente, porque vivemos um processo de desintegração do social, em favor do individualismo e da competitividade cruel, na qual muitos não conseguirão nem ao menos estar na condição de competir, haja vista a grande exclusão em que se encontram inseridos (ou incluídos?).

Pois é, agora me vejo diante de duas causas importantes, que coloca em pauta duas categorias sociais, dignas de reivindicação de direitos humanos, que demandam um olhar especial de toda a sociedade: as crianças e os adolescentes; e as pessoas com transtorno mental. A criança e o adolescente já têm garantido em lei o seu pleno desenvolvimento biopsicossocial, sob responsabilização do poder público, bem como de toda a sociedade em geral. As pessoas com transtorno mental, igualmente, têm a garantia de ser tratadas e de circular livremente pela sociedade, com prioridade absoluta para a convivência familiar e participação na comunidade.

E agora? Retomando os acontecidos da semana passada, tendemos a incriminar um sujeito, transtornado mentalmente, culpabilizando-o individualmente pelo seu feito, em defesa (diga-se de passagem, legítima) dos adolescentes vítimas desse ato tão insano. Um sujeito que, ao que tudo indica, foi abandonado pela família desde a morte da mãe, foi alvo de discriminações sociais (não querendo aqui colocá-lo na situação de vítima, pois acredito que em tudo há mão dupla, temos sim responsabilidade e participação na nossa condição social), tem histórico de transtorno mental nos antecedentes familiares, tem uma história de vida indicativa de comportamento inadequado (isolamento social, idéias obsessivas) e que, ainda assim, não teve acesso a um tratamento adequado (hoje há uma gama de medicamentos, na rede pública, que poderiam ter contido a sua atividade delirante, como por exemplo Haldol e Olanzapina).

Por outro lado, há doze adolescentes que não tiveram a oportunidade de se desenvolver plenamente, que tiveram seus planos e projetos interrompidos abruptamente, e cujas famílias agora lutam incessantemente para transformar uma grande ferida em uma cicatriz, tudo por causa de um ato de insanidade: um sujeito que, em sua atividade delirante, se sente na obrigação de cumprir uma missão, de levar adiante um ato "terrorista", em defesa de uma ideologia que não faz sentido a qualquer racionalidade.

Eis a questão: a quem culpar, já que vivemos em uma sociedade em que as culpabilizações são individuais? A família? Por abandonar esse sujeito transtornado e não exigir um tratamento para ele? Aos homens que venderam uma das armas? Pois, pode-se garantir que eles sabiam que a arma poderia ser utilizada para qualquer feito, embora digam que se soubessem que era para cometer uma atrocidade dessas não teriam vendido? À escola? Por ter "permitido" que as discriminações se disseminassem e colocassem esse sujeito já em condição de vulnerabilidade (devido a todo o seu histórico familiar e de vida pessoal), mais vulnerável ainda? À segurança pública? Por não ter criado uma política que pudesse efetivamente proteger o ambiente escolar dos insanos?

O dilema está lançado, mas as possibilidades conclusivas são várias: esse sujeito, que a la Dom Quixote se armou e foi à luta para “cumprir a sua missão” pode suscitar a ira social e mobilizar uma grande parcela da sociedade a exigir transformação; pode promover mudanças nos espaços escolares e na saúde coletiva, e fazer com que estes realmente cumpram a sua função de transformar pessoas, de produzir reflexões; mas pode, igualmente, confundir a transformação necessária com a produção de armaduras invioláveis em defesa da “sociedade do bem” ( O que já se sabe ser improdutivo. Trancafiar os que não se adaptam, isolar os que não conseguem viver adequadamente na sociedade, nunca foi a melhor solução. Retirar do convívio social o desadaptado só cronifica a situação).

A situação criada entre o transtornado e os inocentes mostra a toda a sociedade o quão vulneráveis somos todos, o quanto os processos de mudança social têm que passar por eixos de muito mais profundidade do que até então se tem feito. Não são apenas políticas educacionais, de desarmamento ou de segurança pública. São produções de reflexões acerca de que sociedade queremos, que vínculos sociais queremos reforçar, que humanidade queremos que se perpetue.

A princípio, pensamos que um sujeito, totalmente maluco, que põe uma armadura de cavaleiro e resolve desbravar o mundo e conquistar terrenos só existe mesmo no romance de Cervantes. Mas, quando nos deparamos com um caso, como o da Escola Municipal Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, vemos que muitos Dons Quixotes existem, que estamos vulneráveis e que precisamos fazer algo, pois as armas de hoje não são mais lanças, e nem os alvos um simples moinho de vento, podem ser crianças ou adolescentes.

No entanto, precisamos despir a racionalidade ocidental, a reificação dos processos sociais, para efetivamente propor soluções. São interfaces que precisam se conectar: saúde coletiva, educação, assistência social, segurança pública, todos fundamentalmente estruturados pela garantia dos direitos humanos. Pois, do contrário, o fato pode apenas tornar-se palco de espetacularização da mídia, e virar cinzas, assim como os livros de cavalaria de Dom Quixote foram queimados e ele continuou em sua missão de desbravar o mundo, se machucando, sofrendo, perdendo os dentes e encontrando Sanchos Panças que acreditavam e creditavam as suas fantasias.



Rosana Carneiro Tavares é doutoranda em Psicologia Social pela PUC Goiás, Mestra em Psicologia Social e Bacharel em Psicologia pela mesma Instituição. Coautora do livro "Olhares: experiências de CAPS".

Imagem retirada da Internet: indústria da morte

Francisco Perna Filho - Homenagem ao meu filho João Pedro nos seus quinze anos



Meu filho...




      É manhã e eu me vejo com outros olhos, João Pedro, meu filho. Olhos de quem abrasa o mundo: muitas vezes terno, muitas vezes vil, muitas vezes desumano e cheio de dores. Dores que em nós vêm se fundindo nesses tempos todos para que, de uma forma plena, pudéssemos estabelecer o canto do qual farás parte.
    No princípio era o verbo: “era”, “eras” e agora, a menos de dez meses, a pessoa se transforma e somos “NÓS” – Nós, que modificou o meu coração e o corpo da tua mãe, que de forma iluminada te tem acalentado os sonos e sonhos e que se transforma para receber-te.
     Meu filho, assim posso chamar-te, beijar-te, iluminar-me com a tua luz e chorar com o teu choro, rir com teus gestos e passear com os teus olhos tomados de inocência e inspiração.
       Confesso-te iluminado, João Pedro, meu filho, parte minha, que em ti está o meu simples legado: a alegria das manhãs de sol, a tristeza das partidas e a exaltação poética e idílica dos que lêem a alma do mundo.

BEM VINDO!!!


18 de abril, de 1996.


Antônio Carlos Scchin - Poema

Signo Sagitario
Sagitário


Evite excessos na quarta-feira,
modere a voz, a gula, a ira.
Saturno conjugado a Vênus
abre portas de entrada
e armadilhas de saída.
Evite apostar em si, mas, se quiser,
jogue a ficha em número
próximo do zero. Evite acordar
o incêndio implícito de cada fósforo.
E quando nada mais tiver a evitar
evite todos os horóscopos.



Imagem retirada da Internet: Sagitário

Bertrand Russell - Ensaio curto




MINHA VIDA

Bertrand Russell


Três paixões, simples mas irresistivelmente fortes, governaram minha vida: o desejo imenso do amor, a procura do conhecimento e a insuportável compaixão pelo sofrimento da humanidade. Essas paixões, como os fortes ventos, levaram-me de um lado para outro, em caminhos caprichosos, para além de um profundo oceano de angústias, chegando à beira do verdadeiro desespero.
Primeiro busquei o amor, que traz o êxtase - êxtase tão grande que sacrificaria o resto da minha vida por umas poucas horas dessa alegria. Procurei-o, também, porque abranda a solidão - aquela terrível solidão em que uma consciência horrorizada observa, da margem do mundo, o insondável e frio abismo sem vida. Procurei-o, finalmente, porque na união do amor vi, em mística miniatura, a visão prefigurada do paraíso que santos e poetas imaginaram. Isso foi o que procurei e, embora pudesse parecer bom demais para a vida humana, foi o que encontrei.
Com igual paixão busquei o conhecimento. Desejei compreender os corações dos homens. Desejei saber por que as estrelas brilham. E tentei aprender a força pitagórica pela qual o número se mantém acima do fluxo. Um pouco disso, não muito, encontrei.
Amor e conhecimento, até onde foram possíveis, conduziram-me aos caminhos do paraíso. Mas a compaixão sempre me trouxe de volta à terra. Ecos de gritos de dor reverberam em meu coração. Crianças famintas, vítimas torturadas por opressores, velhos desprotegidos - odiosa carga para seus filhos - e o mundo inteiro de solidão, pobreza e dor transformaram em arremedo o que a vida humana poderia ser.Anseio ardentemente aliviar o mal, mas não posso, e também sofro.
Isso foi a minha vida. Achei-a digna de ser vivida e vivê-la-ia de novo com a maior alegria se a oportunidade me fosse oferecida.

RUSSELL, Bertrand.Revista Mensal de Cultura. Enciclopédia Bloch, n. 53, set. 1971. P.83

Bandeira Tribuzi - Poema




ITINERÁRIO DO CORPO




A Afonso Felix de Sousa


I




O pequeno lugar predestinado:
cama – lençóis, colchão e travesseiro:
objetos banais pousados sobre
a armação de madeira para dois.

Pequeno apartamento de cidade!
Pequenos corpos e cansados despem-se,
despem roupas, sapatos, conveniências
à pequenina luz que afaga as coisas.

Estão nus, lado a lado, sobre o leito
e se entrelaçam para desafogo
de raivas, lutas, ilusões, sentidos.

Talvez não saibam por que assim se prendem,
Já cantam sino pelo novo filho!

II


Entre o campo de neve a vida fende-se
barbaramente, para dar passagem
à colheita que vem sem estações:
bicho da terra que se chama homem.

Nove meses guardado e construído
com silêncio, carne, sangue e esperança,
ei-lo que rasga o ovo e se apresenta
disforme, placentário, precioso.

Ela está como o campo após a ceifa.
De seus peitos já mana o claro líquido
onde a vida se côa como um filtro.

Olha o pequeno corpo que se deita
a seu lado, entre o sonho e a realidade,
e, brandamente, diz apenas: - Filho!

III


Infância triste, tempo de castigos
e doces ilusões mas sem brinquedo
que teus olhos encontram nas vitrines
e tua débil mão jamais alcança.

Porém o corpo vai rompendo elástico
pesar do tempo amargo em que floriste.
Teus olhos já se pousam sobre a vida
embora ignorando-lhe a inocência.

Assim, surgindo vens dos alimentos,
cuidados e remédios e o alicerce
da sapiência que são letra e número.

Assim te formas resumido corpo
que será de homem e continuará
brincando em nova trágica maneira.

IV


Resides entre o sonho e coisas ásperas,
a confusão do trágico e a rosa,
a escola, o emprego, o livro clandestino,
a refeição modesta, o sono limitado.

Teu corpo é apenas máquina de sexo
e coração: toda a razão de ser
está na amada, amada inconsistente:
olhos, cabelos, seios, agressivos

somente, mas tu a colocas lá
bem no centro do mundo e lhe declamas
baladas, vossos corpos se aproximam.

Entre comícios, agressões, revoltas,
pressa, atenção, estudo, devaneio,
estás defronte ao mundo e interrogas.

V


A resposta és tu mesmo: corpo de homem,
o sentimento e pensamento de homem,
passo seguro de homem, ombros de homem,
boca, face, palavra e gestos de homem.

O que sabes do mundo! Gestos mágicos
te multiplicam ao calor dos corpos.
Uma coragem funda, o olhar sábio,
avanças com o tempo e o constróis.

A noite existe – não a das carícias,
de sono leve, corpos repousando –
noite pesando sobre cada coisa.

Avanças bloqueado pela Noite
(há muitos, muitos corpos avançando)
e teus passos vão dar na madrugada.

VI


És fogo que se apaga lentamente.
Folhas que vão tombando despem a árvore.
Árvore a quem a seiva foi faltando,
tua missão se acaba e envelheces.

Teus olhos já cansados de aprender
formas, gestos e a grande cor do mundo.
Tua boca já cansada de alimentos,
de beijos, de palavras, de protesto.

Outros vêm substituir tua coragem
com novos braços para a mesma luta,
e passos fortes para o mesmo fim.

Tua hora vem chegando necessária.
O corpo se dissipa. Tua passagem
não terá vermes para devorá-la.



Imagem retirada da Internet: corpo

Casimiro de Abreu - Poema



Amor e medo


Quando eu te vejo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, ó bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
— "Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!"


Como te enganas! meu amor, é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo...


Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes.
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.


O véu da noite me atormenta em dores
A luz da aurora me enternece os seios,
E ao vento fresco do cair cias tardes,
Eu me estremece de cruéis receios.


É que esse vento que na várzea — ao longe,
Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!


Ai! se abrasado crepitasse o cedro,
Cedendo ao raio que a tormenta envia:
Diz: — que seria da plantinha humilde,
Que à sombra dela tão feliz crescia?


A labareda que se enrosca ao tronco
Torrara a planta qual queimara o galho
E a pobre nunca reviver pudera.
Chovesse embora paternal orvalho!


Ai! se te visse no calor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas! ...


Ai! se eu te visse, Madalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos — palpitante o seio!...


Ai! se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala, a protestar baixinho...
Vermelha a boca, soluçando um beijo!...


Diz: — que seria da pureza de anjo,
Das vestes alvas, do candor das asas?
Tu te queimaras, a pisar descalça,
Criança louca — sobre um chão de brasas!


No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem,
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!


Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço,
Anjo enlodado nos pauis da terra.


Depois... desperta no febril delírio,
— Olhos pisados — como um vão lamento,
Tu perguntaras: que é da minha coroa?...
Eu te diria: desfolhou-a o vento!...


Oh! não me chames coração de gelo!
Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito!
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo!...


Imagem retirada da Internet: mulher

Casimiro de Abreu - Poema



A valsa


Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranqüila,
Serena,
Sem pena
De mim!


Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...


Valsavas:
— Teus belos
Cabelos,
Já soltos,
Revoltos,
Saltavam,
Voavam,
Brincavam
No colo
Que é meu;
E os olhos
Escuros
Tão puros,
Os olhos
Perjuros
Volvias,
Tremias,
Sorrias,
P'ra outro
Não eu!


Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...


Meu Deus!
Eras bela
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem ?!


Quem dera
Que sintas
As dores
De arnores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas,..
— Eu vi!...


Calado,
Sózinho,
Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!


Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos,
Nem voz!


Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!


Quem dera
Que sintas!...
— Não negues
Não mintas...
— Eu vi!


Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida.
No chão!


Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
Eu vi!


Imagem retirada da Internet: valsa

Cruz e Sousa - Poema



DANÇA DO VENTRE





Torva, febril, torcicolosamente,
numa espiral de elétricos volteios,
na cabeça, nos olhos e nos seios
fluíam-lhe os venenos da serpente.

Ah! que agonia tenebrosa e ardente!
que convulsões, que lúbricos anseios,
quanta volúpia e quantos bamboleios,
que brusco e horrível sensualismo quente.

O ventre, em pinchos, empinava todo
como réptil abjecto sobre o lodo,
espolinhando e retorcido em fúria.

Era a dança macabra e multiforme
de um verme estranho, colossal, enorme,
do demônio sangrento da luxúria!




Imagem retirada da Internet: dança ventre

Cassiano Ricardo




Ficaram-me as penas





O pássaro fugiu, ficaram-me as penas
da sua asa, nas mãos encantadas.
Mas, que é a vida, afinal? Um voo, apenas.
Uma lembrança e outros pequenos nadas.


Passou o vento mau, entre açucenas,
deixou-me só corolas arrancadas...
Despedem-se de mim glorias terrenas.
Fica-me aos pés a poeira das estradas.

A água correu veloz, fica-me a espuma.
Só o tempo não me deixa coisa alguma
até que da própria alma me despoje!

Desfolhados os últimos segredos,
quero agarrar a vida, que me foge,
vão-se-me as horas pelos vãos dos dedos.







Imagem retirada da Internet: tempo

Cassiano Ricardo




Rotação





a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
         a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
de novo a esperança
           na esfera

a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
         a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
         na esfera
a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera

a espera me ensina
          a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
          na esfera







Imagem retirada da Internet: rolamento

Ronaldo Costa Fernandes - Poema


Lição de anatomia




Sou coisa.
Algo assemelhado a
lápis ou vela
que para existir se consome
esgrimindo garatujas ou se queimando
no fulgor das palavras ou na luz suicida
que ilumina enquanto se imola.

O bumbo dos solitários é o mesmo dos eufóricos
geme a mesma voz surda
no compasso do tempo das matrizes.

A tarde
com seu invólucro de nuvens
conspira com vozes na liturgia dos alvoroços.

A vida é um erro:
alguns chegam a ser sentenciados
                                     a oitenta anos de vida.






In. Andarilho, Rio, 7Letras, 2000)
Imagem retirada da Internet: vela

Cassiano Ricardo




Desejo




As coisas que não conseguem morrer
Só por isso são chamadas eternas.
As estrelas, dolorosas lanternas
Que não sabem o que é deixar de ser.

Ó força incognoscível que governas
O meu querer, como o meu não-querer.
Quisera estar entre as simples luzernas
Que morrem no primeiro entardecer.

Ser deus — e não as coisas mais ditosas
Quanto mais breves, como são as rosas
É não sonhar, é nada mais obter.

Ó alegria dourada de o não ser
Entre as coisas que são, e as nebulosas,
Que não conseguiu dormir nem morrer.





Imagem retirada da Internet: Nebulosa

Gonçalves Dias - Poema



Louise O´Murphy, de Francois Boucher


Sempre ela

 
Per noctem quaesivi, quam diligit anima
mea et non inveni illam,

Cant.Cant.




Eu amo a doce virgem pensativa,
Em cujo rosto a palidez se pinta,
Como nos céus a matutina estrela!
A dor lhe há desbotado a cor das faces,
E o sorriso que lhe roça os lábios
Murcha ledo sorrir nos lábios doutrem.


Tem um timbre de voz que n'alma ecoa,
Tem expressões d'angélica doçura,
E a mente do que as ouve, se perfuma
De amor profundo e de piedade santa,
E exala eflúvios dum odor suave
De aloés, de mirra ou de mais grato incenso.


E nessas horas, quando a mente aflita,
De dor oculta remordida, anseia
Desabrochar-se em confidência amiga,
"Neste mundo o que sou? — triste clamava;
"Pérsica envolta em pó, entre ruínas,
"Erma e sozinha a resolver-me em pranto!


"Flor desbotada em hástea já roída,
"De cujo tronco as outras amarelas
"Já rojam sobre o pó, já murchas pendem!
"É sentir e sofrer a minha vida!"
Merencória dizia, erguendo os olhos
Aos céus dum claro azul, que lhes sorriam.


Nada o mudo alcion por sobre os mares,
E próximo a seu fim desata o canto;
A rosa do Sarão lá se despenha
Nas águas do Jordão: e como a rosa,
Como o cisne, do mar entre os perfumes,
Aos sons duma Harpa interna ela morria!


E como o partor que avista a linda rosa
Nas águas da corrente, e como o nauta
Que vê, que escuta o cisne ir-se embalado
Sobre as águas do mar, cantando a morte;
Eu também a segui — a rosa, o cisne,
Que lá se foi sumir por clima estranho.


E depois que os meus olhos a perderam,
Como se perde a estrela em céus infindos,
Errei por sobre as ondas do oceano,
Sentei-me à sombra das florestas virgens,
Procurando apagar a imagem dela,
Que tão inteira me ficara n'alma!


Embalde aos céus erguendo os olhos turvos
Meu astro procurei entre os mais astros,
Qu'outrora amiga sina me fadara!
Com brilho embaciado e lua incerta
Nos ares se perdeu antes do ocaso,
Deixando-me sem norte em mar d'angústias.



In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: El Clarin
 

Gonçalves Dias - Poema



Seus olhos


Oh! rouvre tes grands yeux dont la paupière tremble,
Tes yeux pleins de langueur;
Leur regard est si beau quand nous sommes ememble!
Rouvre-les; ce regard manque à ma vie, il semble
Que tufermes ton coeur.
Turquety


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
Estrelas incertas, que as águas dormentes
Do mar vão ferir;


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Têm meiga expressão,
Mais doce que a brisa, — mais doce que o nauta
De noite cantando, — mais doce que a frauta
Quebrando a solidão,


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
São meigos infantes, gentis, engraçados
Brincando a sorrir.


São meigos infantes, brincando, saltando
Em jogo infantil,
Inquietos, travessos; — causando tormento,
Com beijos nos pagam a dor de um momento,
Com modo gentil.


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Às vezes luzindo, serenos, tranqüilos,
Às vezes vulcão!


Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,
Tão frouxo brilhar,
Que a mim me parece que o ar lhes falece,
E os olhos tão meigos, que o pranto umedece
Me fazem chorar.


Assim lindo infante, que dorme tranqüilo,
Desperta a chorar;
E mudo e sisudo, cismando mil coisas,
Não pensa — a pensar.



Imagem retirada da Internet: Olhos Negros

JJ Leandro - Conto


             
O segredo dos hamsters do nazista








Cresci ouvindo todo mundo dizer que o alemão da nossa rua era nazista. Mas só anos depois descobri toda carga de ódio histórico que a palavra carrega. Antes disso o via com olhos indulgentes. Era solitário, e não parecia opção sua. Só isto bastava para eu me encher de pena. Diziam que se isolava porque seus segredos eram tantos e tamanhos que vivia com medo de cometer inconfidências durante o sono que o prejudicassem irremediavelmente. Por isso, diziam também, nem mulher arranjara desde a chegada ao Brasil.
Era criança e pensava na implicância das pessoas como puro despeito por ele viver num belo sobrado ao pé da ladeira entre casas humildes de empregados da fábrica de tecidos que logo cedo acordava o bairro com um apito estridente, descoroçoando os galos nos quintais. Com chuva ou neblina, frio ou calor, os trabalhadores beijavam mulheres e crianças e dirigiam-se pontualmente ao serviço. Ele, no entanto, nunca seguia para trabalho algum. Sua exclusiva ocupação visível era postar-se ao amanhecer no portão de casa qual esfinge, olhos cravados na rua, e uma expressão grave de quem remoía o passado. Ele continuava ali enquanto não passavam todos os trabalhadores de semblantes pesados e soturnos. Em pouco mais de meia hora, o sol mal dissipando a madrugada, a rua voltava ao silêncio. Um ou outro cachorro farejava o magro lixo da gente pobre em busca da primeira refeição do dia. Como não havia mais atrativo ali, o homem voltava a fechar a porta de casa, isolando-se do mundo. Só a abriria novamente quando o apito da fábrica anunciasse o final da jornada. E ficaria à porta, umas vezes sentado em cadeira, outras em pé mesmo, novamente esfinge, não raro sem camisa, os peitos flácidos, a barriga gorda caída sobre o cós da calça escondendo o cinto até quando o último trabalhador passasse. Não permanecia observando o movimento da nova seara de gente que invadia a rua com grande barulho: os estudantes. Durante a movimentação na rua ele não cumprimentava ninguém. Também não reclamava que a contrapartida fosse a indiferença. Tratavam-no como se não existisse, como se fosse a sombra de uma árvore que se alguém acenasse para ela poderia passar por louco.
À porta de casa ou à janela, eu vigiava a sua movimentação, ou melhor, a sua imobilidade com grande interesse. A luz acesa dia e noite no quarto da frente do andar superior também me intrigava. O que tanto fazia trancado naquele ambiente? Achava-o estranho, hábitos misantrópicos em descompasso com a vizinhança acessível e tagarela. Estariam as conversas quase cochichadas dos adultos influenciando meu juízo a seu respeito? Naquele tempo seus hábitos incutiam-me a certeza de que nazista era o mesmo que se enclausurar, esconder-se de tudo e de todos. Certa vez minha mãe criticou a timidez excessiva de minha irmã mais velha, que a mantinha reclusa em casa como uma monja no claustro, e não tive dúvida em vingar-me dela na primeira oportunidade em que me passou raiva: nazista! Levei uma sova e promessas de outras tantas se voltasse a repetir palavrão tão feio.

O nazista saía furtivamente de casa, pude observar, sempre metido no mesmo paletó detweed xadrez, chapéu de feltro na cabeça e olhares desconfiados escrutinando calçadas, becos, cruzamentos das ruas. Não fosse a excessiva desconfiança passaria por um bom velhinho aposentado em roupa comum. O destino de suas saídas era previsível: o banco, o armazém e, com mais frequência, o vendedor de hamsters, que atendia num aviário. Este último destino era o que mais chamava atenção nas redondezas. Inicialmente, o próprio dono do aviário era indiscreto a respeito das visitas do nazista. Falava com português duro de Lisboa que o homem lhe comprava muitos hamsters. E a história da preferência do nazista pelos ratinhos correu a rua de ponta a ponta. Quando ouvi sobre os hamsters do nazista, visitei o desbocado Manuel. E ele não se fez de rogado, vasculhou um livro de vendas e contou os animaizinhos adquiridos pelo homem no último mês: cinquenta, ó miúdo, disse alisando o vasto bigode negro. Mas nem o Manuel, familiarizado no Sudeste Asiático com quem comia cobra e cachorro, sabia o destino dos hamsters do nazista. Disse com pragmatismo sobre a excentricidade: interessa-me que é bom cliente, paga à vista pelos bichinhos e nunca reclama do preço. Que posso querer mais, pá? Virou-me as costas, como a querer reparar o tempo perdido com criança, e pôs muita atenção no desnecessário trabalho de arrumar as já arrumadas gaiolas dos pássaros. Eu voltei intrigado para casa. O que fazia o nazista com tantos hamsters? Um só, dois, vá lá, serviriam de companhia, distração para um homem solitário. Mas um monte deles!? Pior de tudo que o sobrado era um fortim inexpugnável. Outro dia meus pais se deram conta, surpresos, que em dez anos jamais viram vivalma entrar lá. Já que ninguém tinha acesso ao fortim, restou como desforra apelidá-lo de bunker. O segredo dos hamsters era, portanto, indevassável.

Assim a imaginação popular deu asas, ou patas, à fantasia. Havia quem garantisse serem os hamsters o alimento predileto do nazista. Ao ouvir à mesa de refeição meu pai relatar o absurdo que se espalhava pela rua, minha mãe correu ao banheiro aos engulhos. Voltou ainda lívida e furibunda: nunca mais diga coisa tão nojenta à mesa. Ele encolheu os ombros defendendo-se: é o que o povo diz. Meu irmão caçula sublimou a versão nojenta com uma hilária. Para a criançada do colégio, o nazista queria dar continuidade ao desejo megalomaníaco de Hitler de dominar o mundo. Treinava secretamente um exército de hamsters brancos para conquistar países, começando pelo Brasil.

A dificuldade no estabelecimento da verdade e as conjeturas incendiavam as mentes. O mistério em torno dos hamsters crescia como uma bola de neve e naturalmente buscavam-se estratégias para desvendá-lo.

Mas havia os que se negavam a cooperar. O Manuel, arredio afinal, era um deles. Com receio de perder o bom cliente, não se aventurava à mínima especulação junto ao nazista sobre o destino deles. E muitos tinham sido os apelos por ajuda. Defendia-se com a esfarrapada desculpa de que o velhinho e ele trocavam raras palavras. O homem, num português sofrível, que maltratava o clássico ouvido manuelino, mal expressava a quantidade de ratinhos que queria a cada visita; e isso, claro, após sucessivas tentativas mal sucedidas: deizaquinçavintuna, e por aí afora.

Mas como o desfecho de toda história tem a sua hora, a do nazista também chegou. Ninguém o vira viajar, no banco havia dias que não aparecia, no armazém não comprara alimentos nos últimos dias, no Manuel, aonde ia dia sim, dia não, já eram três dias de ausência. Inconformado, o português punha olhos acusadores sobre a clientela: espantaram-me o melhor freguês.

Mas ele não estava com a razão.

Numa manhã em que mais uma vez não abrira a porta para acompanhar o taciturno desfile dos empregados da fábrica de tecidos, a vizinha ao lado, incomodada com o mau cheiro exalado do bunker, acionou os bombeiros. Até eu corri para a massa de gente que rápido se aglomerou diante do sobrado. Antes de escapulir, pus todos em casa em polvorosa: os bombeiros vão arrombar a casa do nazista. Minha mãe gritou da cozinha: Meu Deus é a guerra! Mas eu já estava longe demais para ouvir o que dissera depois, talvez a proibição de ir até lá. Frustração geral. Os bombeiros impediram a aproximação de curiosos. O espanto cresceu quando chegou o rabecão, deu ré e posicionou a traseira colada à porta principal. Por ali retiraram o corpo do velhinho. Bombeiros e rabecão foram embora como chegaram: rápido e com absoluta discrição. Uma coisa era certa: o alemão morrera. E isso virou notícia no bairro.

A tarde reservava mais surpresas. Com a polícia, os repórteres invadiram o bunker em completo alvoroço. Flashs pipocaram na frente da casa, dentro, no quintal, nada escapou às lentes atentas dos fotógrafos. O que havia ali de tão especial a ponto de deixar a imprensa ávida? Havia mais de três décadas que a guerra acabara, os nazistas criminosos, quase sem exceção, haviam sido capturados e julgados, a maioria já estava inclusive morta. Não havia mais peixe graúdo escondido. Não, não havia sido descoberto um nazista importante em minha rua. Os repórteres também se foram menosprezando a ralé operária. Um mais atencioso cifrou resposta a minha súplica: leia amanhã a Tribuna.

No dia seguinte o nazista, de fato, era manchete principal em todos os jornais da cidade. O legista antecipara ataque cardíaco como a causa da morte. Fotos dele jovem com o uniforme da SS e velhinho como o conhecíamos na rua encimavam o seu nome alemão: Hans Grüber. Então despertei para o fato de a rua toda conhecê-lo só por nazista. Um estigma pessoal com que nunca se incomodara. Nem quando surpreendia um resto de conversa à sua aproximação: lá vem o nazista.

Fora guarda no campo de concentração de Treblinka. Mas não pesava sobre ele qualquer acusação de crime de guerra. A página interna, inteirinha, trazia com detalhes o motivo de tanto estardalhaço sobre o homem.

Grüber montara em casa, no grande quarto da frente do andar superior, o mesmo que tinha as luzes constantemente acesas e me chamavam atenção, uma réplica diminuta do campo de concentração de Treblinka. Havia até tabuleta com nome pintado. Em minudências, nada faltava: a locomotiva a pilha que percorria o quarto para deixar as vítimas no campo; os grandes alojamentos como galpões de fábrica; a câmara de gás que, cheia de vítimas, recebia dose letal de monóxido de carbono. Em estrutura paralela, o forno crematório. As anotações de Grüber em livro caixa repetiam a meticulosa organização nazista: nos últimos 10 anos sacrificara mais de cinco mil vítimas. As vítimas, algumas delas libertadas pelos bombeiros raquíticas pela privação de alimentos, pasmem, eram os inofensivos hamsters.


Imagem tirada da Internet: campo de concentração

JJ Leandro - Conto



Garotas, cuba libre e cigarros




Carolina oferecia a noite para diversão de um adolescente de minha idade no final da década de 1970. E só. A partir da sexta-feira, formava um grupo com amigos do colégio e apostava quem beijaria primeiro uma garota na boate Itapuã. Íamos mesmo a pé porque ninguém tinha carro, chutando gorgulho e cachorro nas ruas sem calçamento até a beira do rio. A Itapuã era um quiosque de madeira, grande e redondo, pregado perigosamente no barranco do Tocantins. De longe o ritmo rebolante da dance music excitava nossas libidos. Lá dentro as meninas esperavam o nosso assédio. Convencional, quase um tácito jogo de gato e rato.
Udinei, baixinho falante, cabelos pretos e lisos, adiantava-se ao grupo, fazia-o estacar quase com a autoridade de um comandante que põe o pelotão em ordem antes da batalha, para defender com ares de péssimo filósofo a igualdade entre os sexos:
— Se nós estamos loucos por uns beijos, elas não estão menos.
Um estímulo e tanto para quem era tímido, a maioria em certa medida, pois inexperientes éramos todos com absoluta certeza.
Crisóstomo, magro desengonçado, olhava-o calado enquanto conferenciava. Após longos tragos no cigarro soltava seu desdém com a fumaça:
— De novo não, né, Udinei.
Meu palpite era que o baixinho não convencia nem a si mesmo, pois voltava para casa sempre invicto, esmagado pela gozação geral.
— O que foi Udinei, nenhuma delas te viu? Não olharam para baixo, foi isso?
Encabulado, perdia a loquacidade na volta. Parecia invisível na noite escura. Às vezes Rocha Filho, por pura compaixão, cingia-lhe o pescoço com uma amigável chave de braço, fazia cafunés em seus cabelos, desalinhando-os enquanto o consolava:
— Amigo, darás um excelente contador. És perfeito com os números.
As tremendas gargalhadas do Samuel, moleque alto e esguio, vestido sempre com esmero, pontuavam o trajeto na volta. Tão mais altas quanto mais bêbado estivesse. A gargalhada destoava do conjunto equilibrado. Explodia como petardo na guerra a cada provocação. Impressionava-me arrancar tão poderoso som de um corpo frágil de bailarino. Quem cruzasse na rua conosco esperava surgir como autor da façanha na noite escura um estivador hercúleo, como os dos barcos do rio, não um rapazote franzino que gomalinava os cabelos crespos.
A invasão da pista de dança, um tabuado suspenso no abismo onde as meninas requebravam soltas aos gemidos de gata no cio de Donna Summer em Love to Love You Baby, não era o primeiro destino na chegada. Havia um rito preparatório, menos regra de uma confraria e mais a tácita e inconfessável incapacidade de abordar as meninas com a cara limpa. Sentávamos em mesinhas no pátio dianteiro, uma espécie de bar, único espaço em terra firme na Itapuã. Ali atacávamos de cuba libre, para colocar rápido a coragem à flor da pele. Lá dentro, os tímidos cordeirinhos viravam extrovertidos leões, virgens pesavam os prós e os contras de seus atos; ainda não era a moda pra valer, mas homem também se travestia: metade homem, metade bicho; decididamente, além de tudo isto, com o Zodiac de Roberta Kelly era impossível segurar peixe no aquário. O jogo de luzes cortava a escuridão paralisando os movimentos das pessoas. Mas fora ainda éramos mais estátuas que os lá de dentro. Tinha vontade, conforme o álcool migrava do copo para a cabeça, de entrar logo e ver o que aconteceria. Mas via nos rostos graves dos colegas, entre goles de bebida e tragos de cigarro, que a precaução ainda conseguia frear a audácia que o coquetel de música e álcool aos poucos fazia crescer. Ainda não é hora, acautelava-me. Só levantávamos dali após muita bagana de cigarro no chão e copos vazios. Estimulados, era o triunfo ou o vexame. Valia a máxima: ou vai ou racha.

Em mais uma noite na boate, senti que chegara minha vez de me dar bem. A loirinha, cabelos curtos batidos na nuca à Jean Seberg, que já vira no colégio algumas vezes, sorria para mim. Inseguro ainda mudei de posição na pista para certificar-me de que não estava na direção de quem ela olhava. Rocha Filho que, apesar das muitas cubas libres a mais que eu na cabeça, jamais perdia o faro de caçador me cutucou:
— É você mesmo, poeta. Ela tá parada em você.
Aproximei-me mais, os colegas incentivando e marcando o ritmo de I Feel Love com palmas. Senti-me na berlinda. Tinha a minha chance, ou me dava bem ou fracassava. Depois outro arriscaria com nova garota. O pisca-pisca das luzes e os reflexos do globo espelhando geometrias nos corpos afundavam a realidade num abismo labiríntico comum a quem está perdido em caminho nunca trilhado. Poeta, ouça Udinei: toda senda resulta em labirinto a quem não conhece o caminho. Mas estavam ali, diante de mim, dentes alvos e perfeitos, boca sorridente que merecia beijos, olhos brilhantes e incisivos na escuridão. Guias perfeitos para atingir o amor livre de qualquer contratempo. Era só segui-los. Mas o que fazer para acompanhá-la em Only the Good Die Young? Me enredava em seus bamboleios. Estava mais desnorteado que o rapaz da música de Billy Joel com sua garota católica. Ouvi um eco longínquo dizer, e era o Crisóstomo: está apanhando feio, hein, poeta? Como numa conjura, Samuel estalou uma das suas terríveis gargalhadas. Fora quem mais bebera. Udinei, a autoestima pisada por todos na pista de dança, com certeza tinha olhos somente para seu infortúnio: já pensava que seria novamente o Cristo da turma.
Linda a minha boneca alemã de porcelana, a minha musa da nouvelle vague. Qualquer um embarcaria na sua onda. Magrinha, beleza displicentemente largada na calça capri e na blusa de algodão branco sem mangas. Um conjunto perfeito para uma noite tropical quente. O desejo é uma armadilha que realça, para nos iludir, as qualidades de quem queremos conquistar. A advertência do pobre filósofo Udinei invadiu meus pensamentos: poeta, isso nada mais é que a cegueira do amor. Quer dizer que você foi fisgado. Às favas todos eles. O corpo da minha Jean Seberg pedia carinho. Toques delicados que a minha inexperiência poderia converter em desastres. A indecisão durou minutos. Para o desenlace, teria que fugir dali. Cacei a mão dela na escuridão e a senti gelada, viscosa, apesar da estufa infernal que era a boate cheia e vibrante. Estava aterrorizada, sem dúvida. Minha confiança cresceu, afinal estávamos em pé de igualdade, como pregava o mau filósofo. Arrastei-a dali, sentamo-nos à mesa colada à parede de madeira. Um janelão abria-se para o precípio escuro, o rio estava logo abaixo. Corria vertiginoso, solerte, traiçoeiro como o amor.
Ainda nos apresentávamos quando o garçom nos atendeu. Cuba libre pra mim, Laura pediu guaraná. At Seventeen abriu caminho aos primeiros carinhos. Começaram nos dedos e prontamente subiram à boca. Ela anuiu encostando a cabeça em meu ombro. Lábios carnudos, doces, saliva, suor e batom. Vertigem com Jean Seberg e Janis Ian. Música alta, Nobody Does it Better. Uma pergunta dela: você é o espião que me ama? Completamente, amor. Tornamo-nos o show da noite. Ávidos beijos, mãos atrevidas e incansáveis que o escuro da boate não ocultava.
O garçom voltou.
— Nada por hora, xará — despachei, a cabeça por cima do ombro dela.
Ele sorriu insistente.
—Jovens, o gerente pediu moderação. O ambiente é familiar.
A escuridão foi incapaz de esconder as faces rubras de Laura. Tornaram-se fluorescentes, destacaram-se. Queria ir embora. Prontifiquei-me a levá-la. O meu irmão tá lá fora, pode deixar, desobrigou-me. Vou com você, obstinei-me. Confusa ainda rendeu-se rápido: você que sabe.
Embananei-me, o irmão dela era o Haroldo, colega de aula. Noivo, não integrava a nossa turma dos finais de semana. Tinha um fusquinha. Abriu a boca quando nos viu juntinhos. Desconcertado, alisou o bigodinho ruivo com dedos de nicotina.
— Mano, me leva embora.
— Agora?
— Sim.
Intrometi-me.
— Vou junto.
Haroldo franziu o cenho, alisou os cabelos finos da cor do bigodinho. Tentando disfarçar o incômodo, queixou-se sem muita ênfase:
— Porra, poeta, tanta garota aí e você acerta logo em minha irmã.
Sorri desconcertado, mas fui autêntico:
— Cara, não sabia quem ela era. Nada pessoal, Haroldo. Bom que agora somos cunhados.
— Você é sem-vergonha — disse num quase sorriso.
Entramos no fusquinha. Na frente, Haroldo e a noiva. Atrás, eu e Laura novamente audaciosos. O garçom ficara na Itapuã.

Álvares de Azevedo - Poema


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Quand on te voit, il vient à maints
Une envie dedans les mains
De te tâter, de te tenir...

Clément Marot



Seio de virgem 

 


O que eu sonho noite e dia,
O que me dá poesia
E me torna a vida bela,
O que num brando roçar
Faz meu peito se agitar,
E' o teu seio, donzela!
 

Oh! quem pintara, o cetim
Desses limões de marfim,
Os leves cerúleos veios,
Na brancura deslumbrante
E o tremido de teus seios!
 

Quando os vejo, de paixão
Sinto pruridos na mão
De os apalpar e conter...
Sorriste do meu desejo?
Loucura! bastava um beijo
Para neles se morrer!
 

Minhas ternuras, donzela,
Votei-as à forma bela
Daqueles frutos de neve...
Aí duas cândidas flores
Que o pressentir dos amores
Faz palpitarem de leve.
 

Mimosos seios, mimosos,
Que dizem voluptuosos:
"Amai-nos, poetas, amai!
"Que misteriosas venturas
"Dormem nessas rosas puras
E se acordarão num ai!"
 

Que lírio, que nívea rosa,
Ou camélia cetinosa
Tem uma brancura assim?
Que flor da terra ou do céu,
Que valha do seio teu
Esse morango ou rubim?
 

Quantos encantos sonhados
Sinto estremecer velados
Por teu cândido vestido!
Sem ver teu seio, donzela,
Suas delícias revela
O poeta embevecido!
 

Donzela, feliz do amante
Que teu seio palpitante
Seio d'esposa fizer!
Que dessa forma tão pura
Fizer com mais formosura
Seio de bela mulher!
 

Feliz de mim... porém não!...
Repouse teu coração
Da pureza no rosal!
Tenho eu no peito uma aroma
Que valha a rosa que assoma
No teu seio virginal?...

Álvares de Azevedo - Poema


image de belle femme aux seins nus tirant vers le bas culottes
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À T...





Amoroso palor meu rosto inunda,
Mórbida languidez me banha os olhos,
Ardem sem sono as pálpebras doridas,
Convulsivo tremor meu corpo vibra:
Quanto sofro por ti! Nas longas noites
Adoeço de amor e de desejos
E nos meus olhos desmaiando passa
A imagem voluptuosa da ventura...
Eu sinto-a de paixão encher a brisa,
Embalsamar a noite e o céu sem nuvens,
E ela mesma suave descorando
Os alvacentos véus soltar do colo,
Cheirosas flores desparzir sorrindo
Da mágica cintura.
Sinto na fronte pétalas de flores,
Sinto-as nos lábios e de amor suspiro.
Mas flores e perfumes embriagam,
E no fogo da febre, e em meu delírio
Embebem na minh'alma enamorada
Delicioso veneno
Estrela de mistério! Em tua fronte
Os céus revela, e mostra-me na terra,
Como um anjo que dorme, a tua imagem
E teus encantos onde amor estende
Nessa morena tez a cor de rosa
Meu amor, minha vida, eu sofro tanto!
O fogo de teus olhos me fascina,
O langor de teus olhos me enlanguesce,
Cada suspiro que te abala o seio
Vem no meu peito enlouquecer minh'alma!
Ah! vem, pálida virgem, se tens pena
De quem morre por ti, e morre amando,
Dá vida em teu alento à minha vida,
Une nos lábios meus minh'alma à tua!
Eu quero ao pé de ti sentir o mundo
Na tua alma infantil; na tua fronte
Beijar a luz de Deus; nos teus suspiros
Sentir as vibrações do paraíso;
E a teus pés, de joelhos, crer ainda
Que não mente o amor que um anjo inspira,
Que eu posso na tu'alma ser ditoso,
Beijar-te nos cabelos soluçando
E no teu seio ser feliz morrendo!

Álvares de Azevedo - Poema


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Foto by Ivan Grlic

Amor


    
                                              Quand la mort est si belle,
 Il est doux de mourir. 
V. Hugo



Amemos! Quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!
Na tu'alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos
Suspirar de languidez!
Quero em teus lábio beber
Os teus amores do céu,
Quero em teu seio morrer
No enlevo do seio teu!
Quero viver d'esperança,
Quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança
Quero sonhar e dormir!
Vem, anjo, minha donzela,
Minha'alma, meu coração!
Que noite, que noite bela!
Como é doce a viração!
E entre os suspiros do vento
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!

Olavo Bilac - Poema




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 Foto by Jaime Brum




Deixa o olhar do mundo


X

Deixa que o olhar do mundo enfim devasse
Teu grande amor que é teu maior segredo!
Que terias perdido, se, mais cedo,
Todo o afeto que sentes se mostrasse?

Basta de enganos! Mostra-me sem medo
Aos homens, afrontando-os face a face:
Quero que os homens todos, quando eu passe,
Invejosos, apontem-me com o dedo.

Olha: não posso mais! Ando tão cheio
Deste amor, que minh'alma se consome
De te exaltar aos olhos do universo...

Ouço em tudo teu nome, em tudo o leio:
E, fatigado de calar teu nome,
Quase o revelo no final de um verso.



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