Ivan Serguêievitch Turguêniev - Conto


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O ENCONTRO








Um dia de outono, em meados de setembro, eu repousava num bosque de bétulas. O tempo estava in­certo: desde manhã, uma chuva fina alternava com um sol quente. O céu coberto de ligeiras nuvens brancas, clareava por momentos, e deixava entrever uma nesga de azul acariciador como um belo olhar. Imóvel, eu era todo olhos e ouvidos. Por cima de mim as folhas mal se agitavam, e esse pequeno ruído bastaria para precisar a estação. Não era, com efeito, nem a palpitação álacre e risonha da primavera, nem o doce e longo murmúrio do verão, nem o balbucio tímido e frio do outono, mas uma espécie de gorjeio em surdina. Uma brisa ligeira alisava o cimo das árvores. A floresta molhada mudava a todo momento de aspecto, conforme o sol brilhava ou se escondia. Por vezes, ela se iluminava, e tudo então parecia de súbito sorrir: os troncos das bétulas esparsas ganhavam reflexos de cetim branco; as folhas caídas rebrilhavam como ouro rutilante; os altos penachos dos fetos, já cobertos dessa tinta cor de uva madura, que eles adquirem no outono, ofereciam aos olhos, por toda parte, a confusão transparente dos seus ramos entrela­çados. Depois, tudo se escurecia de novo, as cores vivas se amorteciam; as bétulas se tornavam de um branco pálido, desse branco de neve caída há pouco, que os mornos raios do sol de inverno ainda não tocaram; e sorrateira, furtiva, uma pequena chuva chilreante caía sobre o bosque. A folhagem ainda verde começava entretanto a amarelecer; aqui e ali uma folha nova já havia adquirido tons vermelhos ou acobreados; era pre­ciso vê-la flamejar, quando um raio de sol atravessava, matizando-a, a rede cerrada da ramagem lavada pelas gotas cintilantes. Nenhum pássaro se fazia ouvir: todos estavam abrigados e silenciosos; somente o abelharuco lançava com intermitência o seu grito argentino e zombeteiro.

Antes de me deter nesse bosque de bétulas, eu tinha atravessado, em companhia do meu cão, uma mata de faias. Confesso não gostar muito dessa árvore, do seu tronco lilás claro e da sua folhagem verde-acinzentada, de aspecto metálico, que se eleva o mais alto possível e se abre nos ares como um leque palpitante; não posso suportar o contínuo balanço dessas feias folhas redondas, desajeitadamente presas aos seus caules intermináveis.. Ela só é bonita em certas tardes de verão, quando, ele-vando-se solitária por cima dos arbustos, se oferece aos raios abrasados do crepúsculo: brilha, então, e rumoreja sob a púrpura dourada que a inunda totalmente, das frondes às raízes. É bonita, também, quando, por um dia de vento sem nuvens, freme e sussurra sobre o fundo azul do céu, cada uma de suas folhas, arrebatadas por esse movimento, parecendo querer arrancar-se, levantar vôo e perder-se ao longe. Mas, em suma, não gosto dessa árvore: razão pela qual, deixando a sua sombra, tinha escolhido para descansar esse pequeno bosque de bétulas, e tinha-me instalado sob uma delas, cujos ramos muito baixos me podiam abrigar da chuva. Enquanto contem­plava o espetáculo que se oferecia ao meu olhar, o sono me envolveu, um sono doce e profundo, que só os caça­dores conhecem.

Não sei quanto tempo durou o meu sono; mas quando abri os olhos, todo o bosque estava inundado de sol; por toda parte, através das folhas palpitantes, o azul resplandecia; uma borrasca tinha afugentado as nuvens; o tempo ficara outra vez sereno; o ar apresentava essa frescura seca e singular que enche o coração de um sentimento de bem-estar e anuncia quase sempre uma bela noite depois de um dia chuvoso.

Ia-me levantar para tentar a sorte mais uma vez, quando "os meus olhos se detiveram sobre uma forma humana imóvel. Era uma jovem camponesa. Sentada a vinte passos de mim, a cabeça pensativamente inclinada, os braços estendidos sobre os joelhos, tinha, numa das mãos semifechadas, um grande ramalhete de flores cam-pestres; cada vez que ela respirava, o ramalhete se elevava docemente sobre o seu colo. Uma blusa muito branca, fechada no pescoço e nos punhos, caía em pregas curtas e suaves sobre o seu talhe. Uma dupla fileira de pérolas amarelas ornavam o seu busto. Era bonita. Os espessos cabelos louros, de um belo matiz cinzento, se separavam em duas grossas trancas, sob um estreito f ichu vermelho, que emoldurava uma fronte de marfim; o queimado dourado, característico das peles delicadas, se destacava no resto do rosto. Eu não conseguia ver-lhe os olhos, que ela conservava baixos, mas distinguia as sobrancelhas delicadas e finas, os longos cílios úmidos; o traço de uma lágrima brilhava ao sol sobre uma das faces e descia até os lábios pálidos. O nariz, um pouco forte, não enfeava o conjunto de seus traços, que eram muito agradáveis: a sua expressão sobretudo me atraía, de tal modo ela revelava doçura, simplicidade, tristeza ingênua, a tristeza de uma criança esmagada por um sofrimento que não chega a compreender. Visivelmente esperava alguém. Um ramo seco estalou no bosque. Ela levantou imediatamente a cabeça e olhou em redor: na sombra transparente, vi brilharem um instante os seus olhos de corça, puros e medrosos. Um longo momento, sem perder de vista o lugar de onde viera o ruído ela escutou: em seguida, voltou a cabeça suspirando, inclinou-se ainda mais e pôs-se lentamente a escolher as suas flores. Os olhos ficaram vermelhos, os lábios tremeram de cortar o coração, uma nova lágrima nasceu sob os grandes cílios, deixando na face um rastro brilhante. Longos minutos transcorreram; a pobre criança não se mexia: por vezes, agitava ansiosamente as mãos, escutava, escutava sempre. Algo mexeu de novo no bosque: ela estremeceu. O ruído se acentuou, se fez ouvir bem próximo, enfim se percebeu claramente um passo curto e decidido. Ela se soergueu, parecendo intimidada; o seu olhar atento se iluminou de esperança. Saída do mato, uma figura de homem apareceu. Os olhos dela se tornaram fixos, o rosto enrubesceu, um sorriso de satisfação lhe desabrochou nos lábios; quis levantar-se, mas tornou a cair, empalideceu, perdeu o jeito. Foi só quando ele chegou ao seu lado que ela pôde levantar um olhar temeroso e quase suplicante.

Do meu esconderijo, eu examinava o personagem com curiosidade: para dizer a verdade, ele me causou boa impressão. Devia ser o criado de quarto favorito de um jovem rico. A sua maneira de vestir revelava pretensões a bom gosto, a uma elegante displicência; trazia, abotoado até o pescoço, um paletó curto, cor de bronze, sem dúvida herança do patrão, uma pequena gravata rosa de pontas lilases, e um boné de veludo negro com galão de ouro, enterrado até os olhos. Impla­cável, o colarinho da camisa branca subia até as orelhas, ocultando-lhe as faces; os punhos engomados cobriam-lhe as mãos até os dedos, dedos vermelhos e disformes, ornados de anéis de ouro e prata, guarnecidos de miosótis em turquesas. A sua figura vermelha, sadia, insolente, era dessas que, segundo as minhas observações, exaspe­ram quase sempre os homens e — ai de nós! — agradam freqüentemente as mulheres. Ele se esforçava por dar aos seus traços vulgares uma expressão de desprezo e de tédio: franzia continuadamente os olhos cinzento-pálidos, já quase imperceptíveis, fazia caretas, abaixava os cantos da boca, fingia bocejar e, com uma falsa desenvoltura, retificava as ondas avermelhadas dos seus "caça-noivas" ou então torcia os raros fios louros que se eriçavam por cima de seus lábios carnudos: em resumo, "posava" odiosamente. Os seus manejos começaram desde que percebeu a jovem camponesa: aproximando-se dela, num andar descuidado, permaneceu de pé um momento, levan­tou os ombros, meteu as mãos nos bolsos do paletó e, depois de lhe ter lançado um olhar negligente, sentou-se no chão.

— Há muito tempo que estás aí? — perguntou-lhe com os olhos distraídos e distantes, bocejando e balan­çando uma das pernas.

A moça não encontrou logo forças para lhe res­ponder.

—     Sim, há muito tempo — murmurou enfim, com uma voz indistinta.

—     Qual! (Tirou o boné, passou majestosamente a mão pela espessa cabeleira frisada a ferro, e que começava baixo na testa, lançou em torno um olhar cheio de dignidade e em seguida tornou a pôr o boné na sua preciosa cabeça.) Eu tinha-me esquecido com­pletamente. E depois, chove, além do mais. (Bocejou outra vez). Estou sobrecarregado de serviço, não consi­go fazer tudo… E o patrão ainda se zanga! Nós partimos amanhã…

—     Amanhã? — articulou a pobre moça com um olhar cheio de terror.

—     Sim amanhã… Vamos, vamos, eu te peço — acrescentou êle num tom aborrecido, vendo-a estreme­cer e abaixar a cabeça — eu te peço, Akulina, não chores, tu bem sabes que eu detesto isso. (Franziu o nariz chato). Senão vou-me embora imediatamente. Que bobagem, choramingar!

—     Não, não, eu não estou chorando — disse ela bem depressa, esforçando-se por engolir as lágrimas. — Então é amanhã que o senhor parte — recomeçou, depois de um momento de silêncio. — Só Deus sabe quando nos reveremos, Vítor Alexandrytch!

—     Reveremos, reveremos! Se não for no ano que vem, será mais tarde. Eu acho que o patrão tem a intenção de trabalhar em Petersburgo — acrescentou ele num tom negligente e algo fanhoso; a não ser que parta­mos para o estrangeiro.

—     O senhor me esquecerá, Vítor Alexandrytch — suspirou tristemente Akulina.

—     Mas não, por que haveria de esquecer? Eu não te esquecerei. Apenas, não sejas tola, obedece a teu pai.. . É claro que não te esquecerei.

Ele se estendeu e bocejou de novo.

—     Não se esqueça de mim, Vítor Alexandrytch — tornou ela com voz suplicante. — Eu o amei com todas as minhas forças, pelo senhor eu fiz tudo… Diz que obedeça a meu pai, mas como é que o senhor quer que eu faça isso?…

—     Como? — disse ele com voz cavernosa, estendido de costas, as mãos passadas sob a cabeça.

—     Mas seja sensato, Vítor Alexandrytch, o senhor bem sabe…

Ela se calou.

Vítor brincava com a corrente de aço do relógio.

— Tu não és tola, Akulina — disse ele enfim. Não digas bobagens, portanto. Eu quero o teu bem, compreendes? Sim, tu não és tola, não tens nada de bronca, é verdade; tua mãe também nem sempre o foi, o que não impede que tu não tenhas instrução alguma; é por isso que precisas escutar o que te dizem.

— Eu tenho medo, Vítor Alexandrytch!

—     Ora, que bobagem, minha querida, eis uma bela razão para se ter medo!… Que é que tens aí? — acrescentou ele voltando-se para ela. — Flores?

—     Sim, respondeu Akulina, com ar abatido… — Eu colhi tasnas — replicou ela animando-se. — É bom para os bezerros. E isto é cânhamo da água, bom para curar escrófulas. Veja que flor bonita. Nunca vi uma flor tão bonita assim. Aqui estão violetas e miosótis… Colhi isto para o senhor — ajuntou ela apanhando sob as flores amarelas da tasna, um pequeno ramalhete de violetas presas por um laço de relva. — O senhor as quer?

Vítor estendeu uma mão preguiçosa, tomou as flores, cheirou-as com indiferença e se pôs a virá-las entre os dedos, os olhos no céu* o ar digno e sonhador. Akulina o contemplava… e seu olhar triste estava cheio de ternura, de devoção, de submissão, de amor. Com medo de aborrecê-lo, não ousava chorar, mas os seus olhos lhe diziam adeus e se satisfaziam pela última vez; quanto a ele, sempre estendido como um sultão, aceitava a ado­ração com uma condescendência magnânima. Confesso que o seu rosto rubicundo, onde se lia, através de uma despreocupação afetada, o egoísmo satisfeito e fácil, me inspirava uma indignação profunda. Akulina estava deliciosa nesse instante. Toda a sua alma se revelava confiante e apaixonada, voltando-se para êle num impul­so de amor, enquanto ele. .. ele, tendo deixado cair sobre a relva as violetas e tirado do bolso um pedaço de vidro rodeado de bronze, se esforçava, em vão por fixá-lo ao ôljio; franzia inutilmente o sobrolho, contraía a face e mesmo o nariz; o objeto, porém, lhe caía sempre na mão.

— Que é isto? — perguntou Akulina estupefata.

— Uma luneta — respondeu ele cheio de impor­tância.

—     Para que serve?

—     Para se ver melhor.

—     Deixe-me experimentá-la.

Vítor lhe deu a luneta contra a vontade.

— Toma cuidado, não a quebres!

—     Não tenha medo. (Aproximou timidamente o vidro do olho). Não vejo nada — confessou com inge­nuidade.

—     Fecha o olho — respondeu êle com uma voz irritada de chefe.

Ela fechou o olho diante do qual estava o vidro.

— Não esse boba, o outro! — gritou Vítor; e, sem lhe dar tempo para corrigir o engano, tirou-lhe a luneta.

Akulina enrubesceu, riu nervosamente e se afastou.

—     Parece que isso não é feito para nós!

—     Eu o creio realmente!

—     Ah! Vítor Alexandrytch, que vai ser de mim sem o senhor — recomeçou ela de súbito.

Vítor limpou o vidro com a ponta do paletó e reco­locou-o no bolso.

— Sim, não há dúvida — dignou-se ele enfim a responder; — nos primeiros tempos isso te parecerá duro.

Deu-lhe uma palmada nas costas com ar protetor; ela tomou-lhe docemente a mão e beijou-a.

— É claro, tu és uma boa menina — continuou ele com um sorriso satisfeito — mas que se há de fazer? Julga tu mesma; meu patrão e eu não podemos ficar aqui eternamente; o inverno está para chegar; um inver­no no campo é insuportável, tu o sabes bem quanto eu. Em Petersburgo as coisas são diferentes. Lá há mara­vilhas que não serias capaz de imaginar, nem mesmo em sonhos, minha pobre pequena. Que casas! Que ruas! ‘ E a sociedade, a instrução… É extraordinário!

Akulina o escutava com avidez, os lábios entrea-bertos, como uma criança…

—     Aliás — acrescentou ele, virando-se sobre a relva — para que contar tudo isso ? Tu és perfeitamente inca­paz de compreender.

—     Por que razão, Vítor Adexanclrytch? Eu com­preendi, deixe disso, eu compreendi tudo.

— Vejam só!

Akulina baixou a cabeça.

—     Antes, o senhor não me falava assim, Vítor Alexandrytch — disse ela sem levantar os olhos.

—     Antes … antes … — grunhiu ele de mau humor.

Ambos se calaram.

—     Está na hora de partir — disse Vítor, apoiando-se sobre o cotovelo.

—     Espere ainda um pouco — suplicou Akulina.

—     Esperar que?

—     Espere! — repetiu ela.

Vítor se estendeu de novo e se pôs a assobiar. Akuli­na não tirava os olhos dele. Pude perceber que a sua emoção ia num crescendo; um ligeiro tremor lhe agitava os lábios, as faces pálidas se tornaram rosadas…

—     Vítor Alexandrytch — recomeçou ela enfim, com uma voz martelada — eu juro que o que está fazendo não é direito.

—     Que é que não é direito? — perguntou êle levan-tando-se um pouco, a cabeça voltada para ela, de sobrolho carregado.

—     Sim, não é direito, Vítor Alexandrytch. Podia perfeitamente dizer-me uma palavra gentil antes de me abandonar. Pobre abandonada que sou! Só uma peque­na palavra.

—     Que queres tu que eu te diga?

—     Devia sabê-lo melhor do que eu, Vítor Alexan­drytch. O senhor parte sem me dizer uma palavra… Que foi que eu fiz para merecer isso?

—     Como és engraçada! Que é que eu posso fazer?

—     Só uma pequena palavra!

—     É uma verdadeira lengalenga! — resmungou ele, levantando-se.

—     Não se zangue, Vítor Alexandrytch — apressou-se ela a dizer, retendo as lágrimas com dificuldade.

—     Eu não me zango, mas tu és uma boba … Eu não posso casar contigo, não é verdade? Então que é que tu queres? Vejamos que queres tu?

Ele a encarou fixamente como se esperasse uma resposta.

— Nada … eu não quero, nada — balbuciou ela mal ousando estender para êle as mãos trêmulas. — Mas se me dissesse uma única palavra gentil antes de me abandonar…

E começou a chorar.

—     Bom, já começa o choro — exclamou Vítor pu­xando o boné sobre os olhos.

—     Eu não quero nada — continuou ela, por entre soluços, escondendo o rosto nas mãos. — Mas que vai ser de mim agora, que vai ser de mim, pobre desgraçada? Casar-me-ão com um homem que eu não amo! Pobre de mim!

—     Continua, continua! — murmurou Vítor batendo com os pés no chão.

—     Se êle me dissesse ao menos uma palavrinha, antes de partir, só uma palavrinha… "Escuta, Akuli­na, eu…"

Mas os soluços impediram-na de continuar; ela se jogou de cara na relva e chorou, chorou desesperada-mente…

Todo o corpo se sacudia; tremores lhe agitavam a nuca. A sua dor, durante muito tempo contida, explodia enfim. Vítor ficou um momento a olhá-la, deu de ombros, afastou-se e partiu a grandes passos. Alguns instantes transcorreram. Akulina serenou um pouco, levantou a cabeça, pôs-se de pé, passeou o olhar em torno, juntou as mãos; quis correr atrás dele, mas as pernas se recusaram, fazendo-a cair de joelhos… Não me contendo mais, precipitei-me para ela; mas apenas me percebeu, as forças lhe voltaram de súbito: deu um pequeno grito e desapareceu atrás das árvores, abandonando as flores espalhadas no chão.

Permaneci ali um momento; depois, reunindo as violetas, saí do bosque. O sol já estava baixo num céu pálido e puro: seus raios pareciam também pálidos, mais frios, esparzindo-se sem brilho num resplendor suave e transparente. Só meia hora nos separava da noite; no entanto, apenas alguns rubores indecisos anun­ciavam o crepúsculo. Através dos colmos amarelados, ressecados, um vento impetuoso chegava a mim, em raja­das; ao longo do bosque, pequenas folhas encarquilhadas fugiam à sua aproximação, turbilhonando pelo caminho. A parte da floresta que erguia a sua muralha em face da planície fremia inteiramente e brilhava com um res­plendor mortecido. Na relva avermelhada, no menor caule, por toda parte, reluziam inumeráveis filandras.


Detive-me… Uma tristeza me invadiu: através do sorriso álacre, ainda cheio de frescura, da natureza em declínio, percebia-se a angústia do inverno próximo. Num vôo desgracioso e pesado, um corvo circunspecto passou por cima de mim, abaixou a cabeça, para me lançar um olhar de lado, aprumou-se e perdeu-se croci-tando além da floresta. Numerosa revoada de pombos, que chegavam em linha reta dos arredores de uma eira, formou subitamente em coluna, depois se abateu e se dispersou prudentemente sobre o restôlho! prova certa do outono! O rolar de uma carroça vazia se fêz ouvir atrás de uma colina desnuda. 

Voltei para casa. Mas a imagem da pobre Akulina me perseguiu durante muitos anos, e conservo ainda as suas violetas, que há muito tempo já murcharam.


Tradução revista de Lauro Escorei.


Imagem retirada da Internet: Turguêniev

Giovanni Papini - conto




HISTÓRIA COMPLETAMENTE ABSURDA



Há quatro dias, estando a escrever com uma ligeira irritação, algumas das páginas mais falsas das minhas memórias, ouvi bater levemente à porta, mas não me levantei nem respondi. As pancadas eram demasiado fracas e não gosto de lidar com tímidos. 

No dia seguinte, à mesma hora, ouvi novamente bater; desta vez, as pancadas eram mais fortes e decididas. Mas também não quis abrir, pois não aprecio absolutamente nada os que se corrigem com demasiada pressa.

No terceiro dia, sempre à mesma hora, as pancadas foram repetidas de forma violenta e antes que pudesse levantar-me vi a porta abrir-se e entrar a medíocre figura de um homem bastante jovem, com o rosto um tanto afogueado e a cabeça coberta por cabelos ruivos e crespos, inclinando-se canhestramente, sem nada dizer. Mal viu uma cadeira, atirou-se-lhe para cima e como eu continuasse de pé indicou-me o cadeirão para que me sentasse. Tendo-lhe obedecido, julguei-me no direito de lhe perguntar quem era, pedindo-lhe num tom nada delicado, que me dissesse o nome e o motivo que o tinha levado a invadir o meu quarto. Mas o homem não se alterou e fez-me imediatamente compreender que, para já, desejava continuar a ser o que até então fora para mim:. um desconhecido.

- O motivo que me trouxe até ao senhor – continuou, sorrindo – está dentro da minha mala e dar-lho-ei a conhecer imediatamente.

Com efeito, apercebi-me de que trazia na mão uma pequena mala de couro amarelo-sujo, com guarnições de latão desgastado pelo uso, a qual abriu dela tirando um livro.

- Este livro – disse pondo-me diante dos olhos um grosso volume forrado a tela com grandes flores de um vermelho ferruginoso – contém uma história imaginária que criei, inventei, redigi e copiei. Em toda a minha vida, apenas escrevi isto e atrevo-me a supor que não lhe desagradará. Até agora apenas o conhecia de nome e só há uns dias uma mulher que o ama me disse que o senhor é um dos poucos homens que não tem medo de si mesmo e o único que teve a coragem de aconselhar a morte a muitos dos seus semelhantes. Por isso, pensei ler-lhe a minha história, que narra a vida de um homem fantástico ao qual acontecem as mais singulares e insólitas aventuras. Depois de a ter ouvido, dir-me-á o que devo fazer. Se a minha história lhe agradar, prometer-me-á tornar-me célebre no prazo de um ano; se não gostar, matar-me-ei dentro de vinte e quatro horas. Diga-me se aceita estas condições e eu começarei.

Compreendi que nada podia fazer senão manter a atitude passiva que tinha assumido até então e indiquei-lhe, com um gesto que não conseguiu ser amável, que o escutaria e faria tudo o que desejava.

- Quem poderá ser – pensava para comigo – a mulher que me ama e que falou de mim a este homem? 

Nunca tivera conhecimento de que uma mulher me amasse e se assim fosse não o teria tolerado, pois não há situação mais incómoda e ridícula que a dos ídolos de um qualquer animal.” O desconhecido arrancou-me a estes pensamentos com um bater de pés, pouco eloquente, mas claro. O livro estava aberto e a minha atenção era considerada necessária.

O homem começou a leitura. As primeira palavras escaparam-se-me; dei mais atenção às seguintes. Depressa apurei o ouvido e senti um leve calafrio nas costas. Dez ou vinte segundos depois o meu rosto ficou vermelho; as pernas moveram-se-me nervosamente; decorridos mais dez segundos, levantei-me. O desconhecido suspendeu a leitura e fitou-me, interrogando-me humildemente dom os olhos. Olhei-o do mesmo modo e inclusivamente com ar de súplica, mas estava demasiado aturdido para o mandar embora. Disse-lhe simplesmente, como qualquer idiota sociável:

- Faça o favor de continuar.

A extraordinária leitura prosseguiu. Não conseguia estar quieto no cadeirão e os calafrios percorriam-me não só as costas, mas também a cabeça e o corpo inteiro. Se tivesse podido ver o meu rosto no espelho talvez me tivesse rido e tudo tivesse passado, pois provavelmente reflectia um espanto abjecto e um indeciso furor. Tentei, por um momento, não continuar a escutar as palavras do calmo leitor, mas só consegui ficar mais confuso; escutei integralmente, palavra por palavra, pausa após pausa, a história que o homem lia com a sua cabeça ruiva inclinada sobre o bem encadernado volume. O que podia ou devia eu fazer numa circunstância tão especial? Agarra o maldito leitor, morder-lhe e atirá-lo para fora do quarto como um inoportuno fantasma?

Porém, por que motivo iria fazer tal coisa? No entanto, aquela leitura produzia-me um inexprimível aborrecimento, uma penosíssima impressão de sonho absurdo e desagradável, sem esperança de poder acordar. Julguei por momentos ir cair num furor convulsivo e vislumbrei na minha imaginação um enfermeiro de uniforme branco que me punha um colete de forças, com infinitas e excessivas precauções. Contudo, finalmente acabou a leitura. Não me lembro de quantas horas durou, mas, ainda mergulhado na minha confusão, reparei que o leitor tinha a voz rouca e a testa húmida de suor. Depois de ter fechado o livro e de o ter guardado na sua mala, o desconhecido fitou-me com ansiedade, embora o seu olhar não tivesse já a ansiedade do princípio. O meu cansaço era tão grande que ele próprio o adivinhou e o seu pasmo aumentou vendo que esfregava um olho e não sabia o que lhe responder. Parecia-me naquela altura que nunca mais poderia voltar a falar e até mesmo as coisas mais simples que me rodeavam se apresentavam aos meus olhos tão estranhas e hostis que quase experimentei uma sensação de repugnância. Tudo isto parece demasiado vil e vergonhoso; penso o mesmo e não tenho qualquer espécie de indulgência para a minha perturbação. Porém, o motivo do meu desequilíbrio era de muito peso: a história que aquele homem tinha lido era a narração pormenorizada e completa de toda a minha vida íntima, interior e exterior. Durante aquele tempo, escutara a minuciosa narrativa, fiel, inexorável de tudo o que sentira, sonhara e fizera desde que vim ao mundo. Se um ser divino, leitor de corações e testemunha invisível, tivesse estado a meu lado desde o meu nascimento e tivesse escrito o que observou dos meus pensamentos e acções, teria redigido uma história perfeitamente igual à que o leitor desconhecido declarava ser imaginária e por ele inventada. As coisas mais pequenas e secretas eram recordadas e nem sequer um sonho ou um amor ou uma vileza oculta, um calculismo ignóbil, escaparam ao escritor. O terrível livro continha até factos e pensamentos que esquecera e que apenas recordara ao escutá-lo.

A minha confusão e receio provinham desta impecável exactidão e deste inquietante escrúpulo. Nunca vira aquele homem; aquele homem afirmava nunca me ter visto. Eu vivia muito solitário a uma cidade a que ninguém vem se a isso não for forçado pelo destino ou pela necessidade. A nenhum amigo, se é que ainda algum me restava, confiara as minhas aventuras de caçador furtivo, as minhas viagens de salteador de almas, as minhas ambições de pesquisador do inverosímil. Nunca escrever a, nem para mim nem para os outros, uma relação completa e sincera da minha vida e precisamente por aqueles dias estava fabricando fingidas memórias para me ocultar dos homens, inclusivamente após a morte.

Quem, pois, podia ter dito a este visitante tudo o que narrara sem pudor e sem piedade no seu odioso livro forrado de papel antigo de cor ferruginosa? E afirmava ter inventado aquela história e apresentava-me, a mim, a minha vida inteira como se fosse uma história imaginária!

Encontrava-me terrivelmente perturbado e emocionado, mas de uma coisa estava certo: este livro não podia ser divulgado entre os homens. Mesmo que para tal aquele infeliz autor e leitor tivesse que morrer, não podia permitir que a minha vida fosse divulgada e conhecida no mundo, entre todos os meus impessoais inimigos. Esta decisão, que senti firme e sólida, no meu foro íntimo, começou a reanimar-me levemente. O homem continuava a fitar-me com um ar consternado, quase suplicante. Tinham decorrido apenas dois minutos desde que terminara a sua leitura e não parecia compreender o motivo da minha perturbação. Finalmente, consegui falar:

- Desculpe, senhor – perguntei – Assegura que esta história foi verdadeiramente inventada por si?

- Precisamente – respondeu o enigmático leitor, com ar mais tranquilo – pensei-a e imaginei-a durante muitos anos e fui fazendo retoques e alterações na vida do meu herói. No entanto, tudo é fruto da minha imaginação.

As suas palavras incomodavam-me cada vez mais, mas consegui ainda fazer outra pergunta:

- Diga-me, por favor, tem a certeza absoluta de não me ter encontrado antes de hoje? De nunca ter ouvido contar a minha vida a alguém que me conheça?

O desconhecido não pôde conter um sorriso de espanto ao ouvir as minhas palavras.

- Já lhe disse – respondeu – que até há pouco tempo apenas o conhecia de nome e que apenas há uns dias soube que costumava aconselhar a morte, mas nada mais sei sobre o senhor.

A sua condenação estava decidida, sendo necessário que não demorasse a ser executada.

- Continua disposto – perguntei-lhe com solenidade – a manter as condições por si mesmo estabelecidas antes de começar a leitura?

- Sem dúvida – respondeu com um leve tremor na voz -, não tenho outras portas a que bater e esta obra é a minha vida. Sinto que não poderia proceder de outro modo.

- Devo então dizer-lhe – acrescentei com a mesma solenidade, embora temperada por alguma melancolia – que a sua história é estúpida, aborrecida, incoerente e abominável. O seu herói, como lhe chama, não passa de um enfadonho malandrim que entediará qualquer leitor mais requintado. Não quero ser demasiado cruel acrescentando ainda mais pormenores.

Comprovei que o homem não esperava estas palavras e apercebi-me de que as suas pálpebras se fecharam instantaneamente. Porém, ao mesmo tempo reconheci que o seu poder sobre mim era equivalente à sua honestidade. Quase imediatamente reabriu os olhos, fitando-me sem medo e sem ódio.

- Quer acompanhar-me até lá fora? – perguntou-me com uma voz demasiado doce para ser natural.

- Com certeza – respondi, e depois de pôr o chapéu saíamos de casa sem falar.

O desconhecido continuava a levar na mão a sua mala de couro amarelo e segui-o, entorpecido, até à margem do rio que corria caudaloso e ruidosamente entre as negras muralhas de pedra, Olhando em redor e certificando-se de que não via ninguém com aspecto de salvador, voltou-se para mim dizendo:

-Desculpe-me se a minha leitura o aborreceu. Julgo que nunca mais incomodarei um ser vivo. Esqueça-se de mim tão depressa quanto possível.

E estas foram as suas últimas palavras, porque saltando agilmente o parapeito, com um rápido impulso, atirou-se ao rio com a sua mala. Debrucei-me para o ver mais uma vez, mas a água já o tinha recebido e coberto. Uma menina tímida e loura apercebera-se do rápido suicídio, mas não pareceu muito espantada e prosseguiu o seu caminho comendo avelãs. Regressei a casa depois de ter feio algumas tentativas inúteis. Mal entrei no meu quarto, estendi-me sobre a cama e adormeci sem muito esforço, abatido e alquebrado pelo inexplicável acontecimento.

Esta manhã acordei muito tarde e com uma estranha sensação. Parecia-me estar já morto e esperar apenas que me viessem sepultar. Tomei imediatamente providências para o meu funeral, fui pessoalmente à agência funerária para que nenhum pormenor seja esquecido. Espero que a todo o momento me tragam o caixão. Sinto pertencer já a outro mundo e todas as coisas que me rodeiam têm o indizível ar de coisas passadas, acabadas, sem qualquer interesse para mim.

Um amigo trouxe-me flores e disse-lhe que podia esperar para as colocar sobre a minha campa. Pareceu-me que sorria, mas os homens sorriem sempre daquilo que não compreendem.



Tradução de Carlos Loures



 In. Riviere Ligure», 1906 - Fonte: Aventar.eu
Imagem retirada do Blog Ecos do Nada

Álvares de Azevedo - Poema


SOLIDÃO






Nas nuvens cor de cinza do horizonte
A lua amarelada a face embuça;
Parece que tem frio e, no seu leito,
Deitou, para dormir, a carapuça.

Ergueu-se... vem da noite a vagabunda
Sem xale, sem camisa e sem mantilha,
Vem nua e bela procurar amantes...
— É doida por amor da noite a filha.

As nuvens são uns frades de joelhos,
Rezam adormecendo no oratório...
Todos têm o capuz e bons narizes
E parecem sonhar o refeitório.

As árvores prateiam-se na praia,
Qual de uma fada os mágicos retiros...
Ó lua, as doces brisas que sussurram
Coam dos lábios teus como suspiros!

Falando ao coração... que nota aérea
Deste céu, destas águas se desata?
Canta assim algum gênio adormecido
Das ondas mortas no lençol de prata?

Minh'alma tenebrosa se entristece,
É muda como sala mortuária...
Deito-me só e triste sem ter fome
Vendo na mesa a ceia solitária.

Ó lua, ó lua bela dos amores,
Se tu és moça e tens um peito amigo,
Não me deixes assim dormir solteiro,
À meia-noite vem ceiar comigo!





In. Lira dos vinte anos
Imagem retirada da Internet: lua

Paul-Marie Verlaine - Poema





ARTE POÉTICA




Antes de qualquer coisa, música
e, para isso, prefere o Ímpar
mais vago e mais solúvel no ar,
sem nada que pese ou que pouse.

E preciso também que não vás nunca
escolher tuas palavras em ambigüidade:
nada mais caro que a canção cinzenta
onde o Indeciso se junta ao Preciso.

São belos olhos atrás dos véus,
é o grande dia trêmulo de meio-dia,
é, através do céu morno de outono,
o azul desordenado das claras estrelas!

Porque nós ainda queremos o Matiz,
nada de Cor, nada a não ser o matiz!
Oh! O matiz único que liga
o sonho ao sonho e a flauta à trompa.

Foge para longe da Piada assassina,
do Espírito cruel e do Riso impuro
que fazem chorar os olhos do Azul
e todo esse alho de baixa cozinha!

Toma a eloqüência e torce-lhe o pescoço!
Tu farás bem, já que começaste,
em tornar a rima um pouco razoável.
Se não a vigiarmos, até onde ela irá?

Oh! Quem dirá os malefícios da Rima?
Que criança surda ou que negro louco
nos forjou esta jóia barata
que soa oca e falsa sob a lima?

Ainda e sempre, música!
Que teu verso seja a coisa volátil
que sente fugir de uma alma em voo
para outros céus e para outras paixões.

que teu verso seja o bom acontecimento
esparso no vento crispado da manhã
que vai florindo a hortelã e o timo…
E tudo o mais é só literatura.



In. TELES, Gilberto Mendonça Teles. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 1983, p.53.
Imagem retirada da Internet: música

Carlos Drummond de Andrade - Poema



A Castidade com que Abria as Coxas


A castidade com que abria as coxas
e reluzia a sua flora brava.
Na mansuetude das ovelhas mochas,
e tão estrita, como se alargava.

Ah, coito, coito, morte de tão vida,
sepultura na grama, sem dizeres.
Em minha ardente substância esvaída,
eu não era ninguém e era mil seres

em mim ressuscitados. Era Adão,
primeiro gesto nu ante a primeira
negritude de corpo feminino.

Roupa e tempo jaziam pelo chão.
E nem restava mais o mundo, à beira
dessa moita orvalhada, nem destino.


In.O Amor Natural. 1992.
Imagem: Gustav Klimt - Mulher sentada de coxas abertas

Tzvetan Todorov - Entrevista


 
                                   Entrevista originalmente publicada na  Revista Bravo.


Nascido em 1939 em Sófia, na Bulgária, e naturalizado francês, o filósofo e linguista Tzvetan Todorov é um dos mais importantes pensadores do século 20. Traduzida para mais de 25 idiomas, sua obra inspira críticos literários, historiadores e estudiosos do fenômeno cultural do mundo todo. Em seu mais recente livro publicado no Brasil, A Literatura em Perigo, Todorov faz um mea culpa raro entre intelectuais. Ele diz que estudos literários como os seus, cheios de "ismos", afastaram os jovens da leitura de obras originais - dando lugar ao culto estéril da teoria. De Paris, ele falou a BRAVO! por telefone:



BRAVO!: Gostaria que o sr. falasse sobre o seu primeiro contato com a literatura quando criança, e como ela se transformou em uma paixão.

Tzvetan Todorov: Eu cresci na Bulgária durante a Segunda Guerra, quando quase ninguém vivia em Sófia, sob constante bombardeio. A maior parte da população vivia fora da capital, em apartamentos divididos por várias famílias. Dentro da coletividade em que habitávamos, havia um especialista em literatura. Foi ele que me ensinou a ler, antes que eu atingisse a idade escolar. Ele me incentivou a praticar a leitura nos livros infantis, e logo comecei a gostar dos contos populares. Apreciava especialmente as histórias dos irmãos Grimm e As Mil e Uma Noites. Essas obras faziam minha alegria. Eu já tinha um sentimento do enriquecimento pessoal que o contato com a ficção podia proporcionar.

Por que o contato com a ficção é tão importante?
Os livros acumulam a sabedoria que os povos de toda a Terra adquiriram ao longo dos séculos. É improvável que a minha vida individual, em tão poucos anos, possa ter tanta riqueza quanto a soma de vidas representada pelos livros. Não se trata de substituir a experiência pela literatura, mas multiplicar uma pela outra. Não lemos para nos tornar especialistas em teoria literária, mas para aprender mais sobre a existência humana. Quando lemos, nos tornamos antes de qualquer coisa especialistas em vida. Adquirimos uma riqueza que não está apenas no acesso às idéias, mas também no conhecimento do ser humano em toda a sua diversidade.

E como fazer para que as crianças e os jovens tenham acesso a esse conhecimento tão importante?
A escola e a família têm um papel importante. As crianças não têm idéia da riqueza que podem encontrar em um livro, simplesmente porque eles ainda não conhecem os livros. Deveríamos então ser iniciados por professores e pais nessa parte tão essencial de nossa existência, que é o contato com a grande literatura. Infelizmente, não é bem assim que as coisas acontecem.

Por quê? 

Quando nós professores não sabemos muito bem como fazer para despertar o interesse dos alunos pela literatura, recorremos a um método mecânico, que consiste em resumir o que foi elaborado por críticos e teóricos. É mais fácil fazer isso do que exigir a leitura dos livros, que possibilitaria uma compreensão própria das obras. Eu deploro essa atitude de ensinar teoria em vez de ir diretamente aos romances, por que penso que para amar a literatura - e acredito que a escola deveria ensinar os alunos a amar a literatura - o professor deve mostrar aos alunos a que ponto os livros podem ser esclarecedores para eles próprios, ajudando-os a compreender o mundo em que vivem.
Ao comentar esse assunto no livro, o sr. fala em "abuso de autoridade". Poderia explicar melhor?
É um abuso de autoridade na medida em que é o professor quem decide mostrar aos alunos o que é importante, com base em um programa definido previamente pelo Ministério da Educação. E isso é sempre uma decisão arbitrária. Não temos o direito de reduzir a riqueza da literatura. O bom crítico - e também o bom professor - deveria recorrer a toda sorte de ferramentas para desvendar o sentido da obra literária, de maneira ampla. Esses instrumentos são conhecimentos históricos, conhecimentos linguísticos, análise formal, análise do contexto social, teoria psicológica. São todos bem-vindos, desde que obedeçam à condição essencial de estar submetidos à pesquisa do sentido, fugindo da análise gratuita.

Como conciliar esse desejo de liberdade num sistema em que o professor tem que atribuir notas, como ocorre no Brasil e na França?

Acredito que o essencial é escolher obras literárias que sejam, por sua complexidade e temas, acessíveis à faixa etária a que se destinam. Cabe ao professor mostrar o que esses livros têm de enriquecedor para os alunos, levando em consideração a realidade deles. O importante é não ter medo de estabelecer pontos em comum entre o presente dos alunos e do sentido dos livros.

O escritor italiano Umberto Eco fala que o livro, ao lado da cadeira, é o objeto de design mais perfeito criado pela humanidade. Num momento em que se questiona isso, o senhor vê futuro para o livro?

É verdade que hoje lemos muito diante da tela, mas não acho que o livro vá desaparecer. Ele estabelece uma relação de possessão e de interiorização que nós não podemos estabelecer com algo tão imaterial quanto o texto na tela do computador. Claro que eu mesmo, quando busco uma referência, o faço facilmente diante da tela. Mas se eu desejo me embrenhar em um livro, se eu quiser me render a seu interior, é preciso que seja com o objeto "livro". A isso ele se presta maravilhosamente. 

O LIVRO
A Literatura em Perigo, de Tzvetan Todorov. Difel, 96 págs., R$ 25.


Imagem retirada da Internet: Todorov

Hélio Pólvora - Conto

Do Outro Lado do Rio




— Ei, senhor.

Sentado na popa de sua canoa, um remador fazia-me sinais há algum tempo.

— Ei.

— Quer atravessar?

— Não sei ainda. Mais tarde.

— O outro lado do rio é bonito.

— É bonito ou está bonito?

Ele não entendeu, ou então não quis estabelecer diferença. Para que? Miudezas. Olhava-me com ar absorto e com a paciência de quem lida com viajantes indecisos. Vi que uma barba rala e alourada cobria-lhe o rosto, e que tinha o nariz curvo. A cabeça encoberta por um chapéu de palha mostrava apenas a sombra dos olhos. Visto de perfil, parecia velho, mas ainda robusto, e com um jeito afiado de ave de rapina pousada num galho.

Continuei a olhar o rio, que parecia estancado, sem correnteza, mas movimentava de leve as águas, de forma a escorrer de forma quase imperceptível. A água não estava escura ou baça, nem clara. Parecia água nova, trazida das cabeceiras onde decerto chovera. Mas não estava barrenta. Mesmo sem transparência, transmitia uma superfície de espelho.

— Está assim há dias — disse o remador.

— O quê?

— A água do rio. Costuma ser clara, fina. Choveu, o leito subiu e a correnteza parou.

— O senhor é canoeiro há muito tempo?

— Desde menino.

Puxou mais o chapéu sobre os olhos, como a proteger-se de uma luz cegante, e recordou que, antes da ponte, a travessia era feita em canoas chamadas besouros. Alongadas, com duas tábuas atravessadas à guisa de bancos, algumas tinham motor de popa. O motor chiava, por isso deram-lhes o nome de besouros. Atravessava-se o rio recebendo na roupa salpicos de água. Às vezes a superfície do rio rolava grossa, como um tapete sujo a distender-se, e nesse caso as canoas oscilavam, emborcavam. Quem não soubesse nadar, afogava-se.

— O senhor socorreu algum viajante?

— Não fui feito para essas coisas — respondeu em tom seco.

O sol voltara a luzir por entre gotículas da água suspensas. Um arco-íris foi-se delineando do outro lado do rio, ao longo da encosta verdejante que cobria o litoral. Em baixo, numa enseada indistinta, os pilares da ponte. Não se via movimento na ponte, talvez por causa da distância. Apurei os olhos. Nada, sequer um vulto, nenhum automóvel.

— Ninguém atravessa pela ponte? — arrisquei.

— É uma travessia muito direta, que depende da vontade de cada um. No fundo, meu senhor, ninguém gosta de atravessar.

Não entendi então porque as autoridades mandaram construir a ponte, e porque, havendo ponte, canoas e barqueiros ainda aguardassem viajantes fortuitos.

— Há dois caminhos — o remador voltou a falar, como se me adivinhasse os pensamentos. — As pessoas preferem vir para cá, como se não esperassem encontrar este cais antigo, estas canoas, esta solidão. Chegam e, então, já que aqui se encontram, atravessam. O caminho da ponte é uma escolha deliberada, como eu já lhe disse.

Cala-se, olha o marulhar das águas no casco da canoa. O sol aumenta de intensidade, vejo que o arco-íris do outro lado se vai dissipando. Mas a água nada reflete, é um espelho embaciado.

— Deve ser bonito do outro lado — eu digo.

O remador se agita, seus olhos faíscam sob a aba do chapéu.

— Pode ter certeza, senhor. É um espetáculo.

Um espetáculo. Fico a saborear esta palavra, como quem a mastiga. E, estendendo a vista até o outro lado, encho os olhos com uma encosta ligeiramente escarpada. Está verde, varrida pelo sol, e brilha, brilha como se fosse um vitral do qual se coassem muitas cores, as cores do arco-íris, o verde e o amarelo em predomínio. Um bosque extenso e profundo, sem clareiras, de árvores irmanadas que devem formar uma alfombra com a sua copa generosa. No chão, naturalmente folhas secas, imagino que folhas outonais, ferrugentas, a formarem tapete macio. Olhos d´água, troncos secos que se oferecem como bancos, pedras limosas em que descansar os olhos, lagos de água límpida. E suponho que frutos. O vento espalha a fragrância de suas polpas, o odor de seus líquidos. É, o remador tem razão, deve ser convidativo o outro lado. Deve ser bom.

— Muitos viajantes não voltam para o continente — diz o remador. — Preferem ficar naquela ilha comprida. Alguns pedem que eu espere, querem dar um passeio pelas praias desertas e limpas, querem sentir o perfume das trilhas, saber se vão dar em uma aldeia. Outros mais decididos vão logo dizendo, antes que eu encoste a canoa: ”Não me espere, remador. Eu vou ficar”. Estou acostumado a todas as reações. Sou observador, entende?

Sei que é. Ele se antecipa aos meus pensamentos, adivinha o desenrolar lento das minhas idéias. Um interlocutor desses, eu penso, é um bem na vida. Em geral não nos ouvem. As pessoas fingem escutar, mas em verdade escutam a si próprias, e o fazem por educação, a pensar no que vão dizer, no que desejam ouvir, ou no que pretendem induzir o outro a dizer para que tenham afinal a confirmação da resposta. Ah, é preciso saber escutar, é preciso saber ter ouvidos e fazer com que eles se apurem para ouvir nos momentos certos. Aquele remador tem o instinto da conversa mútua, do diálogo. Com ele o monólogo da vida cessaria, a trituração interior que gera angústias se desfaria em pó com que aspergir e esconjurar todos os nossos espaços vagos.

— A ilha tem nome?

— Não. É apenas o Outro Lado.

— O Outro Lado?

— Sim, senhor. O Outro Lado do Rio.

Duas touceiras de erva sumarenta, muito verde, desciam pelo rio, vagarosas. Sem correnteza levariam horas a chegar a alguma praia, porque os rios sempre despejam suas águas no mar, em outro rio ou num lago. Há sempre uma praia, haverá sempre uma margem em que naufragar ou secar ao sol.

— Baronesas — diz o barqueiro.

— Têm um ar distinto.

— E cobras dentro das touceiras — prossegue o barqueiro. Vira-se, dá uma cusparada no rio. A voz trai um tom de desgosto. Olha as baronesas arrancadas de barrancos, rio acima, na estação das chuvas, e completa: — Vai ser uma longa viagem.

— A não ser que vente — eu digo.

— É, a menos que venha vento forte.

— Acha que vai ventar?

— Não. Hoje o dia escurece cedo, mas sem chuva e sem vento.

— Tem certeza?

— Tenho. É a experiência. O cheiro do vento a gente pega no ar.

Dou alguns passos pela margem de terra nua, sem ervas, com pedregulhos. Ninguém mais, somente eu e o canoeiro, que, com sua calma, parece estar ali à minha espera. Melhor, à minha disposição. O tempo não o incomoda, é como se ele tivesse todo o tempo de uma vida galática, de uma eternidade. Não sou dado a enigmas, mas de súbito me vem a impressão de que marcamos um encontro ali naquela margem deserta, e que ele está ali com a sua canoa para me prestar um serviço, para levar-me à outra margem. Mas como saberia que eu, nas minhas andanças às vezes sem rumo, contemplativo, imerso em meditações, iria dar ali, naquele antigo cais de um tempo em que havia uma chusma de canoeiros e viajantes ávidos por escarpas verdes do outro lado do rio turvo?

— Está com medo? —pergunta o canoeiro.

— Medo? De que? De quem?

— Não sei. Talvez medo do senhor mesmo. Ou de mim.

— O senhor não me fez mal.

— Nem farei. Estou aqui somente para levá-lo, se quiser atravessar. Se sentir que chegou a sua hora de atravessar.

— Como vou saber? Nunca tenho certeza de nada. Certeza somente a de estar vivo

— Ainda bem. Tem pelo menos esta, que explica o medo.

— Como assim?

— O senhor sabe que está vivo e isso lhe dá medo. Estar vivo é bom, mas o bem não dura. Nada na vida está em repouso permanente, nem mesmo as pedras, que um dia se transformam em pó.

— E qual seria o estado perfeito, o bem-estar supremo?

— O não-ser. Aquela noite escura, de uma escuridão total, sem desejos, sem necessidades.

— Uhm... Alguém já disse isso com outras palavras. Creio que foi Schopenhauer, um filósofo pessimista. Não se deve temer o não-ser, porque dele viemos. Ao existir, vemos então que o não-ser tem suas vantagens. Estar vivo é um problema. A vida seria, nesse caso, o medo crescente de algo melhor. Estou certo?

— Para mim, está. O maior sinal de cultura consiste em perder o medo. É preciso atravessar, atravessar sempre.

Começo a examinar melhor o remador. Humilde, mal vestido, pés no chão, e, no entanto, idéias profundas. Quem o teria ensinado a filosofar? Quem o teria aproximado de mistérios?

Do outro lado do rio o litoral escarpado adquire uma tonalidade enfermiça de poente. Cores desmaiadas, com a luminosidade mortiça de velas. Mas seriam muitas velas juntas, e todas acesas, e por isso ali não se fazia noite, a luz resistia às trevas, tangia a noite, que já começava a tombar, para o lado de cá, onde estávamos o remador e eu. E a noite, desdobrando a sua capa sobre o rio, enlutava definitivamente os restos de um dia a apagar-se.

O remador protege o pescoço com a gola aberta do casaco. Dou um passo hesitante, talvez movido pela necessidade de fazer um movimento, na direção da canoa. Ainda não sei se vou atravessar o rio.

— Resolveu atravessar ? — pergunta o remador, com um, sorriso que me parece irônico.

— Acho que sim. Afinal, do outro lado há luz.

— Os poentes são sempre longos na Ilha do Outro Lado.

Sento-me na tábua do meio da canoa. O remador entra na água rasa e dirige-se à margem. Com certeza vai impelir a canoa para longe da areia, para o fundo, antes de tomar do remo e iniciar a travessia.

A noite cai depressa, como se alguém no alto soltasse as dobras de uma cortina escura. A canoa oscila, a água bate nos costados e na proa, em baques fofos, um vento morno, com um toque de frio, me percorre o corpo, deixa uma sensação de carícia. As mãos coçam. Estão ocupadas com o remo, na verdade empunham o remo, sou eu, afinal, quem rema nesta canoa — o único a remar. O canoeiro ficou em terra, seu perfil recurvo absorvido pelo silêncio, pelas trevas.

Eu remo de coração leve para o âmago da noite ou para o facho de luz, não sei bem. A luz que me parecia brotar da Ilha do Outro Lado brilha agora no antigo cais onde embarquei. E as trevas do velho cais caem sobre a Ilha, lhe acentuam a silhueta esguia.

Para onde vou? Perdi a minha última certeza. Sei apenas que é preciso remar. Devo estar no meio do rio, o medo vem de novo e me sufoca o peito. Ignoro qual a margem certa, não sei mais como voltar nem aonde ir. Estou remando para a noite definitiva ou para o lívido alvorecer?


In. Contos da Noite Fechada, 2004.

Imagem retirada da Internet: canoa

Antonio Carlos Secchin - Poema





De chumbo eram somente dez soldados



De chumbo eram somente dez soldados,
plantados entre a Pérsia e o sono fundo,
e com certeza o espaço dessa mesa
era maior que o diâmetro do mundo.

Aconchego de montanhas matutinas
com degraus desenhados pelo vento;
mas na lisa planície da alegria
corre o rio feroz do esquecimento.

Meninos e manhãs, densas lembranças
que o tempo contamina até o osso,
fazendo da memória um balde cego

vazando no negrume de um poço.
Pouco a pouco vão sendo derrubados
as manhãs, os meninos e os soldados.


In. Todos os ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
Imagem retirada da Internet: soldadinhos de chumbo

Francisco Perna Filho - Ensaio curto



Via crucis



O ápice do amor é a morte, diz George Bataille no seu livro O Erotismo, pois, segundo ele, para que uns tenham vida, é preciso que outros seres morram, e isso só se dá no paroxismo do amor, aqui entendido como a força de Eros: vida, em oposição a Thanatos, morte.

Se a morte é a única certeza que nós temos com relação ao futuro, o que nos parece óbvio, a ausência que ela provoca pode ser relativa, ou melhor, o que se supõe como fim, pode ser apenas o começo de uma perpetuação.

O corpo é vital para o espírito aqui na terra. A terra é o espelho desse corpo quando tudo se acaba. Viver, sofrer, seguir em frente, eis o que o sentimento de vitalidade nos provoca, já que as paredes são apenas ilusões, barreiras materiais para onde correm os homens.

O que sabemos da vida, a não ser que a possuímos até perdê-la? Melhor dizendo, como encaramos o nosso dia-a-dia e refletimos o nosso modo de existir? Não estaríamos distantes demais daquilo que seria considerado ideal para um ser humano?

Quantas vidas ainda teremos de viver? Quantas catástrofes teremos de presenciar? Quantos pilantras teremos de eleger para que consigamos entender o verdadeiro sentido da nossa existência? Talvez milhares, porquanto o homem parece não querer enxergar o lastro de destruição por ele deixado.

Pensemos nas guerras, na fome, no tráfico de seres humanos. Pensemos do poder de potência dos negociadores de armas, nos obtusos governos que se alastram pelo mundo afora. Pensemos na exploração sexual de crianças e adolescentes, nos desvios do dinheiro público, nas licitações fraudulentas, nos traficantes de drogas, soldados da destruição.

Muita coisa ruim tem tentado se perpetuar no mundo, mas as almas de boa vontade, os anjos da boa nova têm insistido nas ações que valorizam o ser humano, têm buscado a preservação da vida, a valorização da solidariedade, o amor incondicional entre os povos.

Talvez o que tenhamos feito tenha sido pouco, mas não em vão. Cada olhar de apoio, cada palavra de encorajamento, cada gesto de solidariedade, tudo isso tem uma importância imensurável, tudo isso é capaz de transformar vidas, tanto de quem doa quanto de quem recebe. São gestos como esses que nos dão a dimensão do que é ser verdadeiramente humano, a força de Eros em toda sua plenitude, com toda a sua força, para o reaprendizado de existências.


Imagem retirada da Internet: globo da morte

Francisco Perna Filho - Ensaio curto

medo


Medo, um ato de humanidade

                                                                                               

O medo que carregamos é a memória que trazemos das coisas, sem a experiência, não há evocação, por isso é que as crianças são destemidas, carregam apenas o não revelado e obscuro soluço dos deuses. Amedontrar-se é, pois, sentir-se humano e requer coragem para tal.

Há pouco, senti-me totalmente tomado por uma vontade de falar sobre este tema: o medo das coisas, o que buscamos e tememos, o que tememos e não conseguimos buscar, o que, a duras penas, levamos adiante. A necessidade que temos de chegar sempre em primeiro lugar, amedrontando aqueles que nos seguem, que nos acompanham, aqueles a quem dirigimos, aos nossos in-subordinados.

O medo que nos cerca  é, de todo, a arma que temos contra os corajosos, os ousados, os usados. Por que estamos sempre com um pé atrás, prontos para recuar, para dar o grito de alarme e sair correndo e, às vezes, é isso que nos salva, que nos determina como vencedores, como duradouros. O medo é a égide do historiador, ele não participa das guerras, das lutas; não se envolve nas diatribes, por que ele precisa contar os fatos. Alguém tem de contar a história.

O que move os críticos de todas as áreas é, justamente, o medo. Falo daqueles que temem e não se arriscam, jamais, a ousar nas áreas que criticam, preferem ficar na espreita, com um olhar carregado de teoria a mover-se de um lado para outro apenas a falar do que desconhece. Falo empresário que patenteia o invento alheio e, por “medo”, não revela o autor, morre de ganhar dinheiro em cima dele. Do jornalista que se esconde atrás dos fatos, por pura incompetência, valendo-se das agências de notícias e das cópias do alheio. Do professor de Língua Portuguesa, principalmente das universidades, que ensina regras e mais regras do bom falar e escrever e, por medo, fica escondido nas teorias sem nunca se revelar na escrita.

Sentir medo é sentir-se preso e liberto, alegre e triste, fechado e aberto. Sentir medo é ser dúbio, é ser  inconsciente, às vezes inconsequente, porque viver requer pressa e determinação. Uns, aceleram demais e vão-se embora, sem medo, sem ressentimento: “vida louca,vida,vida breve, se eu não posso te levar, quero que você me leve”. Outros, petrificados que estão nas suas prepotências, não enxergam o amanhã, só o agora, o presente que são, para esses, o medo é a força do apego, o delírio da perpetuação.

Quem não tem medo, que atire a primeira bala, o primeiro olhar, como o fazem os pistoleiros que, por medo, atraiçoam; os mandantes que, por covardia, pagam. Os políticos, que seduzem, prometem, e abandonam. Todos medrosos e covardes, revelando o lado pútrido do medo.

Sentir medo é o que nos mantêm calados, é que nos mantêm no emprego, é o que nos faz “ingênuos”, precisamos sentir medo para prosseguir, criar os nossos filhos, conhecer os nossos netos e, se possível protegê-los quando alguém tentar amedrontá-los, como acontece com a minha filhinha, todas as vezes que ela escuta esse grito: oooooolha a  pamonnnnnnnnha!! e corre para os meus braços. É o primeiro exercício de humanidade: sentir medo, um medo instantâneo, infantil, até o próximo e ousado ato. As crianças pertencem aos deuses, nós, ao medo, humanamente ao medo. Até que digam o contrário.


Imagem retirada da Internet: medo

Francisco Perna Filho - Poema




No balanço do vento


Para Adalgisa Nolêto Perna



Eu choro pela minha mãezinha,
que ficou só.
Ela era tantas,
estampava alegria,
um canto de primaveras,
um olhar para lá do rio.
Assim, como está,
hoje, como a flor solitária na roseira,
indo e vindo,
no balanço do vento,
só, sozinha, somente.
Para onde vão os filhos
depois que crescem?
vão para qualquer lado,
canto, ou país,
não importa.
O que importa
é a porta sempre aberta,
o barulho que levam,
e a certeza de que são muitos.
Eu choro pela minha mãezinha,
Só, sozinha, semente.


Imagem retirada da Internet: roseira

Miguel Jorge - Poema



Terra


           
Esta pequena dimensão de vagos horizontes
limita-se à extensão de tua destreza:
tudo está aí guardado
como coisa que nunca existiu
como pedra
como barro
sangue
lei
acontecimentos do dia.

Esta pequena dimensão de vacas paridas
não se dilata com teus braços
nem se torna reino em tua geografia.

Dentro do jogo
é arma poderosa:
um bispo um rei
um peão uma rainha
como qualquer fogo
cercado de novos cruzeiros.
Esta pequena dimensão tem muros
todos sabem por testemunha
e
não lhe foi legada como pertence.
Há procissões de patrões
pálios sem ornamentos
bandeiras sem cores
andores engavetados no tempo.

São de asas estas terras
e voam como o vento
forças que encurtam vidas
tesouro negro
cinturão de balas
dinheiro de coronéis
fedendo a bordéis.

Nesta pequena dimensão
teu corpo de morto é teu trabalho
teu sangue é vinho como regalo
tua sombra armação de espantalho
demônios que bailam nos campos da noite
ombros operários.

Esta pequena dimensão
que se carrega nos olhos
pele dura que o sono cava
entre sonhos
pacto que se cala
viola a morte
campos que semeiam
colheita com gosto de mortalha.


In.Profugus.Goiânia,1990.
Imagem retirada da Internet:sol terra

Miguel Jorge - Poema







Voz


           
Tua voz
minha voz
nossa voz
ó tu divina voz!
Sempre viva quase morta
vigiada falseada
em seu canto primitivo
luminoso som de pétalas
que navega em mar de bocas.
Tua voz
minha voz
nossa voz
ó tu suave voz!
Para os deuses para o nada
fônicas faces moduladas
no silêncio dos cortes
no lamento da esperança
que se faz de espera.

Minha voz
tua voz
nossa voz
sempre viva meio morta
som e sol de puros nós.

Minha voz
                                       (Yes)
Tua voz
   (Non)
nossa voz plastificada
   (Yesnon)
nauseada coqueteada
com
chicletes e outros etes
vinda do fundo da alma
do fundo da calma
pesando por falar
pesando por calar
sem que ninguém
pudesse senti-la:
“As aves que aqui gorjeiam
não gorjeiam como lá.”

Nossa voz
minha voz
esgotada em sua essência
sem clemência
paga dura penitência
de milenar existência.

Tua voz
   (Yes)
Minha voz
   (Non)
Nossa voz
   (Yesnon)


In.Profugus.Goiânia,1990.
Imagem retirada da Internet: voz

Heleno Godoy - Poema


Sem Título



nos espaços de teu corpo
teu nome em todas as pedras
no espanto de teus traços
teu nome em todas as horas
e meu estar incontável
entre pedras por todas as horas
nos pontos de teu corpo
teu fato em todas as tendas
na marca de teus braços
teu fato em todos os lados
e meu estar incontável
entre tendas por todos os lados

nas amarras de teu medo
teu contra em todas as feras
no vazio de teus laços
teu contra em todos os cantos
e meu estar incontável
entre feras por todos os cantos

nos confins de tua fuga
teu normal em todas as vagas
no desejo de tua volta
teu normal em todos os dias
e meu estar incontável
entre vagas por todos os dias



In. Fábula Fingida. Rio de Janeiro, 1985.
Imagem retirada da Internet: Eu e as minhas poetas

Heleno Godoy - Poema



Sem Título



Há uma flor branca no vaso
sobre a mesa da sala.
Há um vaso com violetas, que nunca
brotam, sobre a muralha, a pequena
muralha na cozinha.

Tem brotado alguma coisa
a mais de nós nesta casa.
Tem brotado uma desconfiança
um dia; uma certeza em outro.
Tem brotado amor, sim, tem.
Tem brotado amor também.


 In. A Casa - Goiânia, 1992. 
Imagem retirada da Internet: violetas

Katherine Mansfield - Conto



A casa de bonecas





Quando a boa e velha sra. Hay voltou à cidade, depois de passar uns dias com os Burnells, mandou para as meninas uma casa de bonecas. Era tão grande que o entregador e Pat levaram-na só até o quintal e lá ela ficou, apoiada em dois caixotes de madeira, ao lado da despensa. Não haveria problemas; era verão. E o cheiro de tinta talvez já tivesse desaparecido na hora de levá-la para dentro. Pois, francamente, o cheiro de tinta que vinha da casa de bonecas (“Que gentileza da sra. Hay; extremamente gentil e generosa!”), sim, aquele cheiro de tinta era suficiente para deixar qualquer pessoa seriamente doente, na opinião da tia Beryl. Mesmo antes de tirar a aniagem. E quando isso aconteceu...

Lá estava a casa de bonecas, verde espinafre, escuro e viscoso, com toques de um amarelo brilhante. Suas duas chaminezinhas falsas, coladas no telhado, eram pintadas de vermelho e branco, e a porta, num reluzente verniz amarelo, parecia um pedaço de caramelo. Quatro janelas, janelas de verdade, eram divididas em vidraças por uma larga faixa verde. Havia ainda um pequeno alpendre, pintado de amarelo, com grandes gotas de tinta seca pendentes das bordas. 

Mas era uma casinha perfeita, perfeita! Quem se importaria com o cheiro? Era parte da alegria, parte da novidade.

“Abram depressa!”

O gancho na lateral estava bem preso. Pat forçou-o com seu canivete e toda a fachada da casa se abriu e – pronto, via-se, de uma vez, a sala de estar, a sala de jantar, a cozinha e dois quartos. É assim que uma casa deve abrir! Por que todas as casas não se abrem desse jeito? É muito mais excitante do que ficar espiando por uma fresta da porta um mísero vestíbulo com uma chapeleira e dois guarda-chuvas! É isso – não é mesmo? – que a gente quer saber a respeito de uma casa no momento em que põe a mão na aldrava da porta. Talvez seja assim que Deus abra as casas na calada da noite quando Ele faz Sua ronda tranqüila com um anjo...

“Ooooh!” As meninas Burnell davam a impressão de estar fora de si. Era muito maravilhoso; era demais para elas. Elas nunca tinham visto nada parecido em suas vidas. Todos os cômodos tinham papel de parede. Havia quadros, pintados sobre o papel, até com molduras douradas.

Um tapete vermelho cobria todo o assoalho, com exceção da cozinha; lá havia cadeiras e poltronas forradas de veludo vermelho, na sala de estar, e verde, na sala de jantar; mesas, camas, com roupa de cama de verdade, um berço, uma lareira, um fogão, um armário de cozinha com pratinhos minúsculos e uma grande jarra. Mas o que Kezia gostou mais do que tudo, o que a impressionou demais, foi o lampião. Estava no centro da mesa da sala de jantar, um requintado lampião cor de âmbar, com cúpula branca. Tinha tudo para ser aceso, embora, é claro, não se pudesse fazê-lo. Mas havia alguma coisa dentro que parecia querosene e que mexia quando você chacoalhava.

As bonecas do pai e da mãe, estiradas, duras, como se tivessem desmaiado na sala de estar, e as duas criancinhas dormindo no andar de cima, eram realmente grandes demais para a casa de bonecas. Não combinavam com a casa. Mas o lampião era perfeito. Parecia sorrir para Kezia e dizer: “Eu moro aqui”. O lampião era de verdade.

As meninas Burnell andaram o mais rápido que podiam para chegar à escola na manhã seguinte. Estavam loucas para contar a todas as colegas, para descrever, para – bem – vangloriar-se de sua casa de bonecas antes que o sino tocasse.

“Quem vai contar sou eu”, disse Isabel, “porque sou mais velha. Depois vocês falam. Mas eu falo primeiro”.

Não havia como contestar. Isabel era mandona, mas sempre tinha razão, e Lottie e Kezia sabiam muito bem os poderes da primogenitura. Rasparam pelos canteiros de botões-de-ouro na beira da estrada e não disseram nada.

“E sou eu quem vai escolher as meninas que vão ver primeiro. A mamãe disse que eu posso.”

Pois tinha sido combinado que enquanto a casa de bonecas permanecesse no quintal, elas poderiam convidar as amigas da escola, duas de cada vez, para irem vê-la. Não poderiam ficar para o chá, é claro, nem circular por dentro de casa. Mas só ficar comportadamente no quintal, enquanto Isabel mostrava todas aquelas maravilhas e Lottie e Kezia assumiam um ar de contentamento...

Mas por mais que se apressassem, quando chegaram à cerca do pátio dos meninos o sino tinha começado a tocar. Elas apenas tiveram tempo de tirar o chapéu e entrar na fila antes que sua classe fosse chamada.

Não faz mal. Isabel tentou compensar o fato fazendo-se de importante e misteriosa e, cobrindo a boca com a mão, cochichou para as meninas que estavam perto dela: “Tenho uma coisa para contar no recreio”.

O recreio chegou e Isabel foi cercada. As meninas da classe dela quase brigavam para abraçá-la, para andar com ela, lisonjeá-la, ser sua melhor amiga. Ela juntou em torno de si uma corte e tanto sob os grandes pinheiros ao lado do pátio. Acotovelando-se, rindo ao mesmo tempo, as meninas se amontoavam. E as únicas que não entraram na roda foram as duas que sempre eram excluídas, as pequenas Kelveys. Elas sabiam que não deviam se aproximar das Burnells.

O fato era que a escola freqüentada pelas meninas Burnell não era em absoluto o lugar que seus pais teriam escolhido caso houvesse qualquer outra opção. Mas não havia. Era a única escola num raio de quilômetros. Em conseqüência, todas as crianças da vizinhança, as filhinhas do juiz, as filhas do médico, do dono da mercearia, do leiteiro, eram forçadas a se misturar. Isso para não falar que havia igual número de meninos grosseiros e malcriados. Mas a linha tinha que ser traçada de algum modo. E foi traçada nas Kelveys.

Muitas meninas, incluindo as Burnells, não tinham permissão nem de conversar com elas. Passavam pelas Kelveys com o nariz empinado e, como eram elas que estabeleciam os parâmetros no que se referia a padrões de comportamento, as Kelveys eram repelidas por todo mundo. Até mesmo a professora se dirigia a elas com uma entonação especial e reservava um sorriso especial para as outras meninas quando LilKelvey se aproximava de sua mesa com um ramalhete de flores de aparência lastimavelmente vulgar. Elas eram filhas de uma lavadeira muito enérgica e trabalhadora, que durante o dia ia de casa em casa. Só isso já era terrível. Mas onde estava o sr. Kelvey? Ninguém sabia com certeza. Mas todo mundo dizia que estava preso. Assim, elas eram filhas de uma lavadeira e de um presidiário. Que bela companhia para as outras meninas! Sem falar
na aparência.

Era difícil entender por que a sra. Kelvey as fazia chamar tanto a atenção. A verdade é que elas se vestiam com “trapos” que as pessoas para quem sua mãe trabalhava lhe davam. Lil, por exemplo, que era uma menina robusta, feiosa, sardenta, ia para a escola com um vestido feito com uma toalha de mesa de sarja verde da casa dos Burnells, com mangas de veludo vermelho da cortina dos Logans. Seu chapéu, empoleirado no alto da ampla testa, era um chapéu de mulher adulta, outrora propriedade da srta. Lecky, a funcionária do correio. A aba era revirada, na parte de trás, e era enfeitado com uma grande fita escarlate. Que figura! Era impossível não rir. E sua irmãzinha, Else, usava um vestido branco e comprido, mais parecido com uma camisola, e um par de botas de menino.

Mas qualquer coisa que a nossa Else vestisse ficaria estranho. Era uma pequerrucha com o cabelo cortado rente, de olhos enormes e solenes – uma corujinha branca. Ninguém nunca tinha visto ela sorrir; ela quase nunca falava. Vivia agarrada em Lil, segurando firme na barra da saia da irmã. Onde Lil ia, Else ia atrás. No recreio, na estrada que ia e vinha da escola, Lil ia na frente e Else vinha atrás, grudada nela. Somente quando queria algo ou quando perdia o fôlego, a nossa Else dava um puxão e Lil parava e se virava. As meninas Kelvey sempre se entendiam.

Agora elas rondavam por fora; não se podia impedi-las de ouvir. Quando as meninas se viraram com desdém, Lil, como sempre, deu um sorriso desenxabido, acanhado, mas a nossa Else apenas ficou olhando. E a voz de Isabel, cheia de orgulho, continuou contando. O tapete provocou grande sensação, como também as camas, com roupa de cama de verdade, e o fogão, que tinha até a porta do forno. Quando ela terminou, Kezia começou.

“Você se esqueceu do lampião, Isabel.”

“Ah, sim”, disse Isabel, “e tem também um lampião bem pequeno, feito de vidro amarelo, com uma cúpula branca, em cima da mesa da sala de jantar. Parece um lampião de verdade”.

“O lampião é o melhor de tudo”, exclamou Kezia. Ela achou que Isabel não estava valorizando suficientemente o pequeno lampião. Mas ninguém prestou a mínima atenção. Isabel estava escolhendo as duas que voltariam com elas aquela tarde para ver a casa de bonecas. Escolheu Emmie Cole e Lena Logan. Mas quando as outras ficaram sabendo que todas teriam uma oportunidade, foram só gentilezas para Isabel. Uma a uma, passaram o braço em torno da cintura de Isabel e afastaram-se com ela. Todas tinham um segredo para contar a ela. “Isabel é minha amiga.”

Somente as pequenas Kelvey foram embora esquecidas; não havia mais nada para elas ouvirem. Dias se passaram, e quanto mais meninas viam a casa de bonecas, mais sua fama se espalhava. Virou o assunto do momento, uma febre. A única pergunta que se fazia era: “Você já viu a casa de bonecas das Burnells? Oh, não é uma graça?”, “Você ainda não viu? Oh, é demais!”.

Até a hora do lanche era dedicada a falar da casa. As meninas sentavam-se debaixo dos pinheiros, comendo seus sanduíches de carne de carneiro e grandes fatias de pão de milho com manteiga. Enquanto isso, como sempre, tão perto quanto podiam, lá estavam também as meninas Kelvey, Else agarrada com Lil, ouvindo também, enquanto mastigavam seus sanduíches de geléia, embrulhados em papel de jornal, todo empapado com grandes manchas vermelhas.

“Mamãe”, disse Kezia, “posso convidar as Kelveys só uma vez?”.

“De jeito nenhum, Kezia.”

“Mas por que não?”

“Vamos mudar de assunto, Kezia; você sabe muito bem por que não.”

Finalmente todas viram a casa, com exceção delas. Naquele dia as meninas estavam um tanto sem assunto. Era a hora do lanche. Estavam sentadas sob os pinheiros e de repente, enquanto olhavam as Kelveys comendo seus sanduíches, à parte como sempre, sempre ouvindo, decidiram ser cruéis. Emmie Cole começou a cochichar.

“Quando crescer, Lil Kelvey vai ser uma criada.”

“Oh, que horror!”, exclamou Isabel Burnell, piscando para Emmie.

Emmie retribuiu a piscada de um jeito muito maldoso e concordou com Isabel como vira sua mãe
fazer em ocasiões assim.

“É verdade – é verdade – é verdade”, disse.

Então os olhinhos de Lena Logan brilharam. “Será que pergunto a ela?”, murmurou.

“Duvido”, disse Jessie May.

“Eu não tenho medo”, declarou Lena. De repente ela deu uma risada e se pôs a dançar diante das outras meninas. “Olhem! Olhem! Olhem para mim agora!”, disse Lena. E deslizando, flutuando, puxando um pé, escondendo o riso com a mão, Lena aproximou-se das meninas Kelvey.

Lil ergueu os olhos do lanche. Embrulhou rapidamente o resto. A nossa Else parou de mastigar. E agora?

“É verdade que você vai ser uma criada quando crescer, Lil Kelvey?”, perguntou Lena, com voz
estridente.

Silêncio mortal. Em vez de responder, Lil apenas deu aquele seu sorriso desenxabido e acanhado. Não pareceu se incomodar nem um pouco com a pergunta. Que fiasco para Lena! As meninas começaram a dar risos abafados. Lena não ia engolir aquilo. Pôs as mãos na cintura; e disparou.

“Pois é, seu pai está na cadeia!”, caçoou com desprezo.

Isso foi uma coisa tão espantosa de dizer que as meninas saíram de lá correndo, profundamente excitadas, loucas de alegria. Uma delas encontrou uma corda comprida e elas começaram a pulá-la. E nunca pularam tão alto, nunca correram para cá e para lá com tamanha rapidez, nem fizeram coisas tão ousadas como naquele dia.

No final da tarde Pat veio buscar as meninas Burnell com a charrete e elas se dirigiram para casa. Havia visitas. Isabel e Lottie, que gostavam de visitas, subiram para o quarto a fim de mudar de avental. Mas Kezia encaminhou-se furtivamente para os fundos da casa. Lá não havia ninguém e ela trepou nos grandes portões brancos do quintal e se pôs a balançar. Então, olhando para a estrada, viu dois pequenos pontos, que se tornavam cada vez maiores e caminhavam em sua direção. Agora conseguia perceber que um vinha na frente e o outro logo atrás. Agora dava para ver que eram as meninas Kelvey. Kezia parou de se balançar. Desceu do portão como se fosse sair correndo, mas hesitou. As Kelveys chegaram mais perto; ao lado delas caminhavam suas sombras, muito compridas, estendendo-se através da estrada com as cabeças nos botões-de-ouro. Kezia voltou a trepar no portão; tinha tomado uma decisão; balançou-se.

“Olá”, disse para as meninas Kelveys que passavam.

Elas ficaram tão surpresas que pararam. Lil deu aquele seu sorriso inexpressivo. A nossa Else ficou olhando. “Se quiserem podem entrar e vir olhar nossa casa de bonecas”, disse Kezia, pondo um pé no chão. Mas com isso Lil ficou muito vermelha e sacudiu a cabeça rapidamente.

“Por que não?”, perguntou Kezia.

Lil respirou fundo e disse em seguida: “Sua mãe disse para nossa mãe que você não deve falar com a gente”.

“Ah, bem”, disse Kezia. Não sabia que resposta deveria dar. “Isso não tem importância. Mesmo assim vocês podem entrar e dar uma espiada em nossa casa de bonecas. Venham. Ninguém está olhando.”

Mas Lil balançou a cabeça ainda com vigor. “Então vocês não querem?”, perguntou Kezia.

De repente Lil sentiu que alguém puxava sua saia. Ela voltou-se. A nossa Else a encarava com aqueles seus olhos enormes e quase implorava; ela queria ir. Por um momento Lil olhou para a nossa Elsie, cheia de dúvidas. Mas então a nossa Else voltou a puxar a saia dela. Deu um passoadiante. Kezia foi na frente. Como dois gatos de rua elas seguiram até o quintal onde estava a casa
de bonecas.

“Pronto!”, disse Kezia.

Houve uma pausa. Lil ofegava; sua respiração era quase um ronco; a nossa Else estava petrificada.

“Vou abrir para vocês”, disse Kezia, muito gentil. Ela soltou o gancho e as duas olharam para dentro.

“Aqui está a sala de estar e a sala de jantar; aqui é a...”
“Kezia!”

Oh, que susto elas levaram!

“Kezia!”

Era a voz da tia Beryl. Elas se viraram. Na porta dos fundos, estava a tia Beryl, olhando fixamente, como se não pudesse acreditar no que via.

“Como você se atreve a convidar estas meninas para vir ao quintal?”, disse com frieza, furiosa. “Você sabe, tanto quanto eu, que não tem permissão de falar com elas. Vão embora, meninas, retirem-se. E não voltem mais”, disse a tia Beryl. E andou até o quintal e, com um gesto brusco, espantou as meninas como se fossem galinhas. “Saiam imediatamente!”, disse, fria e orgulhosa.

Elas não precisaram que lhes dissessem duas vezes. Vermelhas de vergonha, encolhidas, Lil com os braços cruzados no peito, num gesto humilde, como sua mãe, a nossa Else, aturdida, atravessaram o grande quintal e esgueiraram-se pelo portão branco.

“Menina desobediente, má!”, disse tia Beryl asperamente para Kezia, fechando com um gesto brusco a casa de bonecas.

A tarde fôra terrível. Chegara uma carta de Willie Brent, aterrorizante, ameaçadora, na qual ele dizia que se ela não fosse encontrá-lo naquela mesma noite em Pulman’s Bush, ele viria até a porta de entrada da casa e perguntaria o motivo! Mas agora que ela assustara as miseráveis das Kelveys e depois de passar um bom pito em Kezia, seu coração estava mais leve. Aquela desagradável pressão desaparecera. Ela voltou para casa cantarolando.

Quando as Kelveys deixaram bem para trás a casa dos Burnells, sentaram- se para descansar em cima de um grande cano vermelho na beira da estrada. O rosto de Lil ainda queimava; ela tirou o chapéu e pousou-o sobre o joelho. As duas contemplaram sonhadoramente os campos de feno, o riacho, o curral, onde as vacas dos Logans esperavam para ser ordenhadas. O que elas estariam pensando?

Então a nossa Else aproximou-se e ficou bem junto de sua irmã. Mas agora já havia se esquecido daquela senhora brava. Esticou um dedo e deslizou-o pelo chapéu da irmã; sorriu seu raro sorriso.

“Eu vi a lampadinha”, ela disse, suavemente.

Então ficaram em silêncio outra vez.



In. Contos. Trad.:  Alexandre Barbosa, Carlos Eugênio Marcondes de MouraSão Paulo: Cosac Nayf, 2005.

Octavio Paz - Poema


                    
  
               ENTRE IR E FICAR


                       Entre ir e ficar hesita o dia,
                       de sua transparência enamorado.
                       
                       A tarde circular é já baía:
                       em seu quieto vaivém se mexe o mundo.
                       
                       Tudo é visível e tudo elusivo,
                       tudo está perto e tudo é intocável.

                       O lápis, os papéis, o livro, o vaso
                       abrigam-se na sombra de seus nomes.

                       Pulsar do tempo, latejar-me à fonte,
                       teimosa, a mesma sílaba de sangue.

                       A luz tece no muro indiferente
                       um espectral teatro de reflexos.
                       
                       Bem no centro de um olho me descubro:
                       não me fita, me fito em seu olhar.
                       
                       O instante se dissipa. Sem mover-me,
                       eu me quedo e me vou: sou uma pausa.


 Tradução de Anderson Braga Horta

Octavio Paz - Poema





ARCOS

         A Silvina Ocampo



Quem canta nas ourelas do papel?
De bruços, inclinado sobre o rio
de imagens, me vejo, lento e só,
ao longe de mim mesmo: ó letras puras,
constelação de signos, incisões
na carne do tempo, ó escritura,
risca na água!

         Vou entre verdores
enlaçados, adentro transparências,
entre ilhas avanço pelo rio,
pelo rio feliz que se desliza
e não transcorre, liso pensamento.
Me afasto de mim mesmo, me detenho
sem deter-me nessa margem, sigo
rio abaixo, entre arcos de enlaçadas
imagens, o rio pensativo.

Sigo, me espero além, vou-me ao encontro,
rio feliz que enlaça e desenlaça
um momento de sol entre dois olmos,
sobre a polida pedra se demora
e se desprende de si mesmo e segue,
rio abaixo, ao encontro de si mesmo.

1947

Tradução de Haroldo de Campos

Imagem retirada da Internet: homem

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