Fernando Py - Poema




Cave Canem


Aviso bem-humorado
na fachada das casas de Pompéia.

Mudam-se os tempos, mudam-se os desígnios
e o aviso permanece
curiosidade arqueológica do pai
na fachada de minha casa.

Porém hoje mais certo seria
poupar os cães desse cuidado
e escrever à entrada
de toda casa toda cidade todo país
mesmo na caixa-alta do itálico latim
CAVE HOMINES





In. Jornal de poesia
Imagem retirada da Internet: cão

Francisco Perna Filho - Poema


Para o meu filho, distante



Cada vez que meu filho se vai
É como um pedaço de mim que se solta,
Como a carne talhada à faca,
Nunca é a mesma.

Cada vez que meu filho se ausenta,
Fico mais limitado no olhar,
É o como se tudo se tornasse distante,
Não me permitindo alcançar a beleza do grito.

Sempre que fico só, sem o meu filho,
Algo em mim se torna frio,
Torno-me silencioso e triste,
Não sabendo recompor-me em tanta ausência.

Sempre que fico assim, só, sem o meu filho,
Passo a buscá-lo no espelho,
Tentando encontrar no meu rosto
Sombras do que se foi.

Imagem retirada da Internet: trilhos

Humberto de Campos - Conto

 
O MONSTRO




Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recém-criadas.

Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a umidade do barro modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra, mal vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água, fitavam mudos, com os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros longínquos, que pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos, sacudindo a cabeça brutal, em que se enrolavam, encharcadas e gotejantes, braçadas de ervas dos charcos, desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na terra mole.

Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os elefantes pastavam em bando, colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui e ali, um alce galopava, célere. E à sua passagem, os outros animais o ficavam olhando, como se perguntassem que focinho, que tromba, ou que bico, havia privado das folhas aquele galho seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas, monotonamente. E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar, num vôo rápido, havia como que uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos.

Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa. Adivinhando, de longe, a marcha dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se, num susto impreciso. Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais alto, e correr mais veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas inimigas da Vida.

Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se a companheira.

Para que mistério - disse, a voz surda, - para que mistério teria Jeová, no capricho da sua onipotência, enfeitado a terra de tanta coisa curiosa?

A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o Deserto, e observou, num sorriso macabro, que fez rugir os leões:

- Para nós ambas, talvez...
- E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivando-lhe o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço... Queres? 

A Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio; onde se acocoraram, sombrias, modelando o seu filho.

- Eu darei a água... - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da corrente.
- Eu darei o barro... - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol endurecera.
E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra que, assim, trabalhava inutilmente.
- Traze mais água! - pedia.
A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este, logo, se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, Os braços, o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve, da escultora silenciosa.
- Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil.

E a Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira.

Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo, embora, nas suas particularidades, uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e trepava, rápido, como os bugios.

O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os uros, que jamais se haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser invadida, naquele instante, por um inimigo inesperado.

Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte. No seu espirito inseguro, surgiam, às vezes, interrogações inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque reconheciam, unânimes, a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em amedrontar as aves, e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem do rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os animais que lhe pareciam mais fracos.

Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na criação do abantesma.

- Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro!
- Fui eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama?
E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria da sua criatura a parte com que havia contribuído.
- Eu dei a água! - tornou a Dor.
- Eu dei o barro! - insistiu a Morte.

Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as tenazes das mãos. A água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e começou a cair, gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu...

In. O MONSTRO E OUTROS CONTOS.

Imagem retirada da Internet: Ancestral

Henriqueta Lisboa - Poema



A menina selvagem 




A menina selvagem veio da aurora
acompanhada de pássaros,
estrelas-marinhas
e seixos.
Traz uma tinta de magnólia escorrida
nas faces.
Seus cabelos, molhados de orvalho e
tocados de musgo,
cascateiam brincando
com o vento.
A menina selvagem carrega punhados
de renda,
sacode soltas espumas.
Alimenta peixes ariscos e renitentes papagaios.
E há de relance, no seu riso,
gume de aço e polpa de amora.


Reis Magos, é tempo!
Oferecei bosques, várzeas e campos
à menina selvagem:
ela veio atrás das libélulas.


Publicado: Lírica (1958)

Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: menina selvagem

Henriqueta Lisboa - Poema



Não a face dos mortos. 


Não a face dos mortos.
Nem a face
dos que não coram
aos açoites
da vida.
Porém a face
lívida
dos que resistem
pelo espanto.


Não a face da madrugada
na exaustão
dos soluços.
Mas a face do lago
sem reflexos
quando as águas
entranha.


Não a face da estátua
fria de lua e zéfiro.
Mas a face do círio
que se consome
lívida
no ardor.


Publicado: A Face Lívida (1945)



Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: círio

Henriqueta Lisboa - Poema



Ciranda de mariposas 


Vamos todos cirandar
ciranda de mariposas.
Mariposas na vidraça
são jóias, são brincos de ouro.


Ai! poeira de ouro translúcida
bailando em torno da lâmpada.
Ai! fulgurantes espelhos
refletindo asas que dançam.


Estrelas são mariposas
(faz tanto frio na rua!)
batem asas de esperança
contra as vidraças da lua.


Publicado: Menino Poeta (1943)

Fonte: Jornal de Poesia

Hélio Pólvora - Os Dez Mandamentos do Conto



 Uma poética do Conto Literário



Horacio Quiroga, autor de Cuentos de la selva, El desierto e Los desterrados, entre outros livros, elaborou em Buenos Aires, 1927, o Decálogo do Perfeito Contista. O contista gaúcho Sérgio Faraco submeteu o decálogo a alguns contistas brasileiros, entre eles Hélio Pólvora, que emitiu os seguintes pareceres:


                                                                 I

Crê num mestre — Poe, Maupassant, Kipling, Tchékhov — como na própria divindade.

Creio em Edgar Poe, que estudou a estrutura da história curta e para ela cunhou o tributo de “singular efeito único”. Poe foi o mestre do gothic appeal — e convenhamos que o leitor gosta de mistérios, sejam os do sobrenatural, sejam os da personalidade. Não creio mais em Maupassant, porque concordo com Sherwood Anderson: não há, na vida, histórias seqüenciadas; há “instantes” que devem atuar como epifanias. O conto maupassantiano tem início, miolo e fim bem elaborados, numa fusão episódica que se sobrepõe a acontecimentos normais da vida. Não divinizo Rudyard Kipling apenas por causa da sobrecarga de exotismo Mas creio no todo-poderoso Anton Pavlovitch Tchékhov, Senhor do Conto, do qual retirou o arcabouço clássico para que pudesse espelhar a vida baça. E creio, também, em Machado de Assis, que escreveu contos funéreos à maneira de Poe, contos anedóticos à feição de Maupassant e contos modernos, tchekhovianos, nos quais os silêncios eloqüentes valem por todo um manual de ambigüidade e apelo à cumplicidade de quem o lê.

                                                                   II

Crê que tua arte é um cume inacessível. Não sonhes dominá-la. Quando puderes fazê-lo, conseguiste sem que tu mesmo o saibas.

Sim, olhemos sempre para o alto, para as distâncias. Mas o conto, tal como a Casa Celestial dos crentes, tem várias mansões e muitos são os caminhos até elas, segundo o ponto de vista (viewpoint) do autor. Os mestres devem ser tomados como referência, não como ídolos onipotentes e inalcançáveis. Dentro de cada contista que se sente maduro ou em vias de amadurecer há, pelo menos, um facho a guiá-lo na noite escura da criação. Quando esse facho crescer a ponto de se transformar em tocha olímpica, então as cordilheiras e os cumes das cordilheiras estarão a seus pés. Para isso não bastam as musas: Hemingway falou em dez por-cento de inspiração e noventa por-cento de transpiração.

                                                                  III

Resiste tanto quanto possível à imitação, mas imita se o impulso for muito forte. Mais do que qualquer coisa, o desenvolvimento da personalidade é uma longa paciência.

Nesta nossa modernidade, ou pós-modernidade, como queiram, predominam temas recorrentes: a literatura de ficção está sempre a reescrever-se. Mas não se trata de remake, porque serão sempre o temperamento e a formação do autor, com o seu ponto de vista, que farão do tema assemelhado um relato novo e original. Quiroga tem razão: há que confiar no desenvolvimento da personalidade. “Meu amigo, façamos contos”, disse Diderot, citado por Machado de Assis como epígrafe a Várias Histórias. “O tempo passa e o conto se completa sem disso darmos conta”. Jorge Luís Borges disse que “o conto, por sua índole sucessiva, corresponde intimamente a nosso ser que se desenvolve no tempo”. Verdade: no conto nada se perde, tudo se completa e se transforma. O conto é para quem o escreve — e quem o lê — meio de busca e averiguação. Brota bem de dentro do autor, tanto quanto o poema. O conto é a maneira de o autor-narrador conviver com os seus conflitos básicos. Por isso o conto há de aprimorar-se, ou simplesmente mudar, na medida em que o autor-narrador muda de conceito, ponto de vista e insight. O conto, ainda que acabado, estará sempre a pulsar, a germinar e a fermentar nos misteriosos meandros das entrelinhas.

                                                                   IV

Nutre uma fé cega não na tua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que o desejas. Ama tua arte como amas tua amada, dando-lhe todo o coração.

Reconheço que é preciso acreditar, embora de desilusão em desilusão estejamos a perder as velhas crenças. Mas a fé no conto literário prevalece nos contistas ardorosos. Estes vêem no conto um enigma, uma esfinge a decifrar — ou então um espelho em que refletir e identificar a própria personalidade. Sem o ardor dessa identidade amorosa, caminha-se com mais vagar e tropeços. E, como disse o poeta António Machado, “el camino se hace al andar”. O contista William Saroyan fez praça de franqueza: quando tivermos fome, devemos comer com vontade, quando sentirmos raiva, devemos estrebuchar de cólera. E, analogamente, quando estivermos a escrever um conto, entreguemo-nos a ele de corpo e alma. Mesmo porque, conforme lembrou Saroyan, “cedo morreremos”. E disse mais: “Do not pay any attention to the tales other people make, I wrote. They make them for their own protection, and to hell with them. (…) Forget Edgar Allan Poe and O. Henry and write the kind of stories you felt like writing. Forget everbody who ever wrote anything”. Palavras da introdução a The Daring Young Man on the Flying Trapeze.

                                                                      V

Não começa a escrever sem saber, desde a primeira palavra, aonde vais. Num conto bem-feito, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância das três últimas.

Há quem comece um conto cegamente, guiado pelo instinto, por uma luz bruxuleante de vaga-lume. Pelo visto, Quiroga não acreditava na intuição. E há, paralelamente, os que estruturam o conto na cabeça, deixando-o sazonar até o instante de deitá-lo no papel em branco. Eu procedi assim com “O Grito da Perdiz”, que ficou germinando uns dez anos, acreditem. São atitudes, jeitos, temperamentos. Quanto à importância do início e do fim, ela foi salientada por Tchékhov, para quem a nota inicial deveria retornar, como mesmo timbre ou timbre parecido, no fecho. Não me refiro àquele final de impacto, maupassantiano, senão a uma impressão ou estado de ânimo, ou pressentido instante revelador, que deveria abrir e fechar-se como um leque, definindo-se em toda a plenitude da onda, ou de um impulso único.

                                                                  VI

Se queres expressar com exatidão essa circunstância – “Desde o rio soprava um vento frio” — não há na língua dos homens mais palavras do que estas para expressá-la. Uma vez senhor de tuas palavras, não te preocupes em avaliar se são consoantes ou dissonantes.

São os instantes, as emoções, as circunstâncias que ditam as palavras. Há palavras (ou seja: formas de dizer) peculiares ao que se deseja exprimir. São únicas, insubstituíveis. Infelizmente, há momentos em que o ficcionista, errando no labirinto, defronta o indizível. Impõe-se, nesse caso, a arte da sugestão, com a qual seria possível, de acordo com Stevenson, transformar um jornal diário em nova Ilíada. A ambivalência é a maior conquista do ficcionismo moderno. Lutemos, pois, com as palavras, que nem sempre a luta será vã. Mas, ao contrário do que recomendou Quiroga, convém que nos preocupemos com o ritmo, a musicalidade da prosa. Devemos ter ouvidos abertos, afiados. A lição é de Flaubert: na solidão de Croisset, ele cantava as sentenças e ia torneando a prosa, livrando-as de nós e rugosidades. Frases sem o fluxo da música interior são típicas de prosadores surdos.

                                                                 VII

Não adjetives sem necessidade, pois serão inúteis as rendas coloridas que venhas a pendurar num substantivo débil. Se dizes o que é preciso, o substantivo, sozinho, terá uma cor incomparável. Mas é preciso achá-lo.

Nada tenho contra o adjetivo. Sem ele, o que seria da prosa gostosa de Eça de Queiroz? Certas categorias gramaticais parecem apegadas a determinados prosadores. Que seria de Monteiro Lobato se lhe retirássemos a força verbo-motora? O adjetivo faz parte intrínseca da prosa retórica, como, por exemplo, a de William Faulkner, que é um dos grandes ficcionistas atuais. Logo, defenda-se o adjetivo, que não é tão ornamental quanto parece: quando bem empregado, tem a sua carga imagética necessária. Nem sempre, mestre Horacio Quiroga, o substantivo é capaz de vibrar sozinho: requer um fundo musical, um acompanhamento de violino ou violoncelo. Quando se fala em escritor adjetivoso, condena-se o mau prosador, aquele prosador artificial e artificioso, que agita águas rasas para parecer profundo. Em mãos do escritor consciente, artesão, carpinteiro, engenheiro e arquiteto de palavras, o adjetivo é argamassa, é adorno sem exagero. Quem tem medo do adjetivo? Tchékhov e Machado dois artistas reticentes, não o temeram.

                                                                VIII

Toma teus personagens pela mão e leva-os firmemente até o final, sem atentar senão para o caminho que traçaste. Não te distraias vendo o que eles não podem ver ou o que não lhes importa. Não abuses do leitor . Um conto é uma novela depurada de excessos. Considera isso uma verdade absoluta, ainda que não o seja.

De quando em quando os personagens se afirmam por conta própria, com um impulso interior de que não suspeitávamos. E, em vez de dar-nos as mãos, nos puxam sem cerimônia pelo braço, arrastam-nos para suas aventuras ou desventuras, seus abismos ou suas planícies rasas. Além disso, conforme já observado, não se abre o caminho inteiro, de ponta a ponta: ele se desdobra na medida em que caminhamos, em que o nosso roteiro prossegue. Quiroga pretende ater-se, naturalmente, ao essencial, ao fulcro, ao ponto ou turning point do relato. Quanto a esse aspecto, de acordo: desvios resultam cansativos. Convém atentar que o conto tem desenvolvimento unicelular, ao contrário do romance, que admite afluentes. Se um conto apresenta subplots, então se desviou para a novela, que, com as suas sobreposições, não passa de um romance curto. O conto independe de extensão: poderá completar-se nas densas “duas polegadas quadradas” de Samuel Rawet ou no latifúndio de Grande Sertão: Veredas. Decerto, Quiroga elaborou o Decálogo tomando por modelo o conto clássico ou imediatamente pós-clássico. De lá para cá, algumas regras foram atiradas pela janela, conforme o conselho de Saroyan.

                                                                   IX

Não escrevas sob o império da emoção. Deixa-a morrer, depois a revive. Se és capaz de revivê-la tal como a viveste, chegaste, na arte, à metade do caminho.

Perfeito, mestre. A emoção, enquanto se escreve, é má conselheira. Não podemos sufocá-la de todo, porque o escritor mergulha na água limpa ou na lama do que escreve, e se conjuga, e se transmite. Mas, deve-se contê-la, sufocá-la o mais possível. Uma vez escrevi um conto em estado de sofreada exaltação, depois o reli e vi que era bom, e deixei a emoção transbordar; ela me inundou, saí pelas ruas em estado de êxtase e comunhão. Mas seria atitude prudente, uma vez concluído o conto, ou considerado acabado, guardá-lo na gaveta durante algum tempo. A gaveta funcionaria como refrigerador. Louise Bogess, americana que escreveu sobre a arte do conto literário, recomendava essa atitude: esfriar o conto, o que significa esfriar a emoção. Graciliano Ramos, depois de concluído Caetés, levou anos cortando uma palavra aqui, outra ali, fazendo substituições. Escrever, para Hemingway, consistia em cortar palavras. Para outros, menos áticos e mais retóricos, significa acrescentar. Joseph Conrad, um dos pais da prosa moderna, advertiu que era preciso esgotar o assunto, sorvê-lo como se extrai o suco da cana-de-açúcar, deixar o bagaço do assunto. Não há regras definitivas, há temperamentos que elaboram regras próprias. Em vez de “assunto” eu deveria dizer “tema” (theme), para sinalizar aquilo que a personagem principal capta e absorve em conseqüência do andamento do conto.

                                                                  X

Ao escrever, não penses em teus amigos, nem na impressão que tua historia causará. Conta, como se teu relato não tivesse interesse senão para o pequeno mundo de teus personagens, e como se tu fosses um deles, pois somente assim obtém-se a vida num conto.

Uma lição valiosa. Literatura de peso se faz em silêncio. Os outros — sejam amigos, sejam, competidores ferrenhos — devem servir de emulação positiva. Escreve sem pensar no que será amanha o teu escrito, se ele terá passaporte para a eternidade ou morrerá despercebido. Os livros fazem seu próprio destino, como observou Terenciano Mauro. Escreve para desabafar, movido por necessidade interior; para calar por algum tempo os teus fantasmas, para consolar-se, para purgar. Os humildes escrevem assim, para se acalmar e se conhecer, sem pensar na glória do tipo pedestal. A verdadeira glória está na escrita, está na capacidade de quem escreve e no que ficou dito. Escreve também sem pensar na crítica. Afinal, para que serve a crítica? Em geral, ela é burra ou caprichosa, ou preconceituosa. A crítica ensinou alguém a escrever bem? Escreve, pois — porque entre os teus valores é na tua escrita que mais confias, e por ela serás absolvido.



Fonte:
Recolhido de Itinerários do Conto. Interfaces críticas e teóricas da moderna Short Story. Editus – Editora da Universidade stadual de Santa Cruz, Ilhéus, Bahia, 2002, 252 p.
In. singrando horizontes


Imagem: Gjol


Flávio Paranhos - Conto




Um senhor distinto



O carro estacionou na porta do saloon. Aquilo me incomodou bastante. Da janela do quarto onde me encontrava, pude ver um senhor de paletó e gravata, aparentemente muito distinto, descer do carro. Senti-me incomodado. Não que eu fosse exigente, afinal, a prostituta que acabara de me servir já recolocava seu espartilho e calçava suas botas. Não. Eu não era assim tão exigente. O que me incomodava era o fato de que estava em pleno velho oeste e hospedava-me naquele velho saloon e não fazia sentido um senhor engravatado descer de um carro ali. Não cabia. O senhor era muito distinto, é verdade. Mas isso não mudava muito as coisas. Preocupado, procurei pelo meu cavalo. Ainda estava ali. Fiel e sempre pronto para me receber de um salto, caso fosse necessário fugir rápido (como tantas vezes já fora). Despachei a prostituta cansada (eu sou terrível) e comecei a me vestir. Precisava descer e conversar com o senhor distinto. Precisava me livrar daquele incômodo (não, eu não o mataria, referia-me realmente ao incômodo, sem duplo sentido). Já pronto, descendo a escada que dava para o salão principal, batia propositadamente com as esporas de meu par de botas contra os degraus. Pareceria determinado. O senhor distinto já estava instalado em uma das mesas, bebendo seu cowboy duplo (sem duplo sentido). Tinha um fáscies absolutamente incaracterístico. Indiferente, mesmo. Também indiferentes estavam todos os demais presentes, como se aquilo fosse absolutamente incaracterístico. E normal. Isso, mais que incomodar, me irritou profundamente. Caminhei em direção à mesa do senhor distinto. Parei em frente a ele. Nada falei. Deveria parecer óbvia (e atrevida) minha intenção de me juntar a ele.
- Gostaria de me acompanhar ? - ele me perguntou com um tom de voz simpático, que me irritou ainda mais.
- Obrigado - tentei parecer o mais indiferente possível.
- Fique à vontade. - Depois, dirigindo-se ao garçom: - Mais um uísque duplo, aqui pro meu amigo. Sem gelo, por favor.
Aquilo já era demais. Pedir por mim e acertar exatamente o que eu queria era demais. Apesar da provocação, contive-me. Ainda não era hora.
- Como sabia que eu queria um cowboy duplo?
- Apenas um palpite.
- E se seu palpite estivesse errado?
- Você me diria e mudaríamos o pedido.
Sua naturalidade estava me desarmando. Precisava me cuidar.
- E se eu aceitasse por educação?
- Não faria isso.
- Por quê? Acha que sou um mal-educado?
- Não. Apenas um palpite.
- Sei...
Silêncio. Não me sentia disposto a quebrá-lo. Não me incomodava. Ele sim.
- Quem é o senhor? - quebrei o silêncio.
- Ninguém em especial. E você?
- Ninguém em especial? Que diabo de resposta é essa?
O garçom trouxe meu uísque. Sua naturalidade me espantou.
- O senhor não é quem diz ser - decidi atacar.
- Como assim?
- Diz que não é ninguém em especial.
- E?
- Acontece que não se chega a um lugar desses em um carro e vestido de paletó e gravata.
- Por que não?
- Porque não é lógico. Aqui é o velho oeste.
- Não vejo problemas.
- Você não cabe aqui.
- Não percebo ninguém, além do senhor, que esteja se importando com isso - ele tirou um cachimbo de uma bolsinha e iniciou o ritual para acendê-lo.
- Isso só piora as coisas. A naturalidade com que o tratam aqui é bastante curiosa. Diria até que é suspeita.
- Suspeita?
- É. Como se estivessem num transe. Incapazes de alcançar o absurdo da situação.
- Mas nada há de absurdo.
- Quer dizer que o absurdo não existe, que tudo é relativo, que depende do referencial?
- Não. Quero dizer apenas que não é absurdo que uma pessoa honesta sente-se em um bar e beba seu uísque enquanto espera a vez para ser atendido por uma prostituta.
- Prostituta? Não vai conseguir. Elas não gostam de estranhos por aqui.
Como para me desmentir, a que acabara de me servir desceu a escada e veio em direção a ele. Parou à sua frente (quase como eu havia feito, minutos atrás) e esperou.
- Pode começar - ele ordenou.
Ela se abaixou, retirou seus sapatos e meias, e começou a lamber-lhe os entrededos dos pés.
- Mas isso é ultrajante! – protestei, levantando-me e me preparando para as vias de fato. - Não pode obrigar a pobrezinha a fazer isso! Nenhum dinheiro vale isso. Quanto ele lhe paga, menina? Eu cubro.
- Meu amigo, não se exalte. Não a estou forçando. Nem sequer estou pagando.
- Não paga?
A surpresa me derrubou de volta à cadeira.
- Não. Esta moça tem enorme prazer em me fazer esse carinho.
- Carinho?
- Não acha? É tão relaxante...
A prostituta terminou seu “carinho”, recolocou as meias e os sapatos metodicamente no sujeito e se levantou, com um sorriso. Ninguém à nossa volta parecia ter notado a cena. Ou se importado com aquilo.
- Escute aqui. Nada que o cerca é natural. O senhor não é natural. Todos agem com naturalidade, mas nada disso é lógico. Não sei o que está acontecendo, mas sei que não estou insano. Não me sinto insano.
- Não está.
- Como sabe?
- Um palpite, apenas.
- Não quero mais saber de seus palpites. Quero saber o que significa tudo isso!
- Nada.
- Como?
- Nada significa. Precisa significar algo?
- É claro que sim. Tudo significa alguma coisa.
- Sendo assim, qual é o significado de sua curiosidade extrema a meu respeito?
- Não inverta as coisas. É uma curiosidade natural.
- A sua curiosidade pode ser natural, mas eu não sou?
- Está tentando me confundir. Não me engana.
- De maneira nenhuma. Gostaria apenas de acalmá-lo.
- Estou calmo.
- Se é assim...
- Mas continuo querendo saber o que o senhor representa aqui.
- Não estou representando. Estou agindo naturalmente.
- Está querendo me irritar?
- Por favor...
Naquele momento senti minhas forças me deixarem. Precisava resistir. Todos haviam sucumbido, menos eu. Precisava resistir.
- O senhor já fez o que queria? – perguntei e, dando-lhe a entender que só havia uma resposta possível, propus: - Pode ir agora.
- Por que o incomodo tanto?
- O senhor não pertence a esse lugar.
- E você pertence?
- Pertenço.
- Quem lhe disse?
- Ninguém. Eu sei.
- Então me dá o direito de também me considerar como pertencendo a esse lugar.
- O senhor não pertence. Eu sei.
- Não vamos mais discutir. Não vale a pena.
Nesse momento fomos interrompidos pelo garçom, que tocou o ombro do sujeito de leve, como a lembrar-lhe de algo.
- Você já quer agora? – o senhor distinto perguntou.
- Se o senhor assim o desejar... – respondeu o garçom.
- Pode ser.
O garçom retirou meias e sapatos dos pés do distinto senhor, que os apoiara em um banquinho, ajoelhou-se e começou a lamber avidamente seus entrededos. Parecia ter muito mais prazer nisso do que a prostituta. Particularmente no hálux
- Ele prefere o hálux – observei.
- Hálux? – o garçom interrompeu momentaneamente o espetáculo para satisfazer sua ignorante curiosidade.
- Dedão – esclareci.
- Ah.
O garçom voltou à sua tarefa com a mesma avidez com que iniciara. Em dez minutos estava terminado. Satisfeito.
- Ele parece satisfeito – observei novamente em voz alta.
- Ele está satisfeito. Você é que não me parece nada satisfeito.
- Não estou. Estou enojado.
- Está assustado. Pode estar até enojado, mas não pelo que pensa estar.
- Não entendo.
- É o único diferente aqui. Penso que o que o enoja é o fato de ser o único diferente.
- Posso ser o único diferente, mas sou normal.
- Seria realmente normal alguém tão diferente? Como pode considerar-se normal se os demais não o consideram assim? Não acha que algo está errado?
- Acho. Está tudo errado. Estão todos loucos. Somente eu estou lúcido.
- Meu amigo, detesto informar-lhe que nós não pensamos assim. Logo, o senhor não pode ser normal.
- Isso é impossível. Não faz sentido.
- Faz sentido o que decidimos que faça. E decidimos que nós fazemos sentido, não você.
O que restava de minhas forças, perdi. Não podia com aquela argumentação (muito lógica, por sinal). Era demais para mim. Sentia que me renderia. Aos poucos, consegui enxergar melhor o que se passava à minha frente. Como tinha sido estúpido! O senhor distinto só podia estar certo.
- Meu senhor - comecei, muito respeitosamente - devo-lhe desculpas. Sinceramente, estou bastante envergonhado. Não consegui enxergar o óbvio. É claro que a razão estava com o senhor este tempo todo. Afinal, um senhor tão distinto...
- Não tem problema.
- Mais uma coisa. Se permite... se não lhe for incômodo...eu adoraria provar o gosto de seus entrededos dos pés. O senhor me permitiria?
- Sinto muito, mas não vai dar. É que tenho que ir embora. Está tarde e minha mulher fica preocupada quando me demoro muito nessas happy hours.
Dizendo isto, o senhor distinto se levantou e caminhou em direção à porta do salloon, que abriu com elegância. Observei sua saída com um aperto no coração. Algo me dizia que jamais saberia o sabor que tinha os entrededos de seus pés.



In. Epitáfio. São Paulo: Nankin, 2003.

Imagem retirada da Internet: saloon

Flávio Paranhos - Conto


Pensando bem



- Vou me matar.

- Eu também.

Soren e Arthur estavam sentados em uma mesa de bar. Conversavam. Pensavam muito antes de dizer cada palavra. Lá pelas tantas, Arthur quebra o silêncio:

- Acho que deveríamos ser mais espontâneos – propõe.

- E não estamos sendo? – estranha Soren.

- Não. Estamos pensando muito antes de falar.

- E o que é que você queria?

- Mais objetividade.

- Tem razão. Mas, pensando bem, para quê, se vamos ambos nos matar?

- Vamos realmente?

- Vamos. Ou você não foi espontâneo?

- Fui espontâneo, mas não absolutamente sincero.

- Isso não é bonito. Ou é?

- Não é. Entretanto, também não é bonito que nos matemos.

- Do ponto de vista religioso?

- De qualquer ponto de vista.

- Mas a existência é fútil.

- Quem está citando?

- Ninguém. Ou a mim mesmo, não sei...Nunca sei se falo o que penso ou o que os outros pensam.

- Todos falamos o que todos pensamos.

- Está citando alguém?

- Não.

Novo silêncio. Arthur, absorto, fita o próprio copo de cerveja.

- Em que está pensando? – pergunta Soren.

- Esta pergunta é perigosa.

- Por quê?

- Poderia lhe dar um livro como resposta.

- É mesmo...Deixa pra lá.

Soren observa para o copo de cerveja de Arthur que, percebendo, lhe oferece:

- Quer um pouco?

- Não, obrigado.

- Se não quer um pouco de minha cerveja, por que está olhando fixamente para ela?

- Estou olhando para sua cerveja da mesma maneira que você.

- Então está olhando com sede.

- Pensei que estava usando seu copo de cerveja apenas como um gancho entre este mundo que podemos observar e algo além.

- Está definindo a metafísica?

- Talvez. De qualquer forma, não estou olhando para sua cerveja com desejo.

Arthur bebe a cerveja de um só gole, esvaziando o copo.

- Parece gostosa - observa Soren.

- A cerveja?

- Sim. Vendo você beber me dá vontade de beber também.

- Então beba.

- Mas aí estragaria minha vontade.

- Vontade de beber cerveja?

- Vontade de me matar.

- Está realmente com vontade de se matar, ou esta é apenas uma representação?

- Acho pernóstico citar a si mesmo.

- Não estou me citando. Quis dizer representando um papel. Quase mentindo.

- Se fosse esse o caso, não mereceria minha atenção.

- Pode ser. Por outro lado, também pode ser que estejamos representando um papel para nós mesmos para que possamos nos livrar da angústia que nos persegue.

- Faz sentido.

- Tudo faz.

- Nem tudo.

- O que não faz?

- A religião.

- Não entremos neste assunto.

Calam-se por alguns minutos. Soren olha a cerveja com um esforço descomunal para enxergar além. Nada. A não ser a imagem deformada de uma mosca pousada sobre a mesa. Seria o bastante? Pouco provável. Com um golpe desastrado, Arthur mata a mosca e derruba metade do conteúdo do copo.

- Que desperdício - diz Soren, e acrescenta em seguida, sem muita convicção: - É... Acho que vou me matar.

- Eu também – concorda Arthur, distraidamente.

- Vontade ou representação?

- Está me citando?

- Não. Quer dizer, estou, mas apenas o que disse há pouco.

- Sendo assim, acho que estamos representando.

- E resolve?

- Deveria.

- Falar sobre a angústia exaustivamente nos livraria dela?

- Penso que sim.

- Pensamos demais...

- Se pensássemos menos...

- Resolveria?

- Se nada pensássemos...

- Aí seríamos como as formigas-operárias.

- Ou os operários homens mesmo.

- Sua existência transcorre sem questionamentos.

- Refere-se à minha existência ou dos operários?

- Dos operários. Sua vida passa sem que se perguntem coisas que sabem que não têm resposta.

- Minha vida? – Arhur não estava em uma boa fase para generalizações..

- Mas será possível!? – irrita-se Soren.

- Está bem. Já entendi. Os operários não pensam.

- É claro que pensam. As formigas é que não pensam. A diferença é que os homens operários pensam apenas o básico. Vêm ao mundo com um pacote básico de pensamentos.

- Determinista?

- Apenas um exemplo. O problema é que os homens operários possuem um cérebro capaz de, num repente, traí-los e pode acabar por mostrar-lhes o que realmente são.

- E o que são, realmente?

- Nada.

- Não está exagerando?

- Nada são. Trabalham de segunda a sábado e no domingo descansam. Pronto, é só o que há.

- Neste caso, seria melhor ser uma formiga.

- Isso.

- E se as formigas também tivessem consciência da própria mediocridade?

- Seria terrível e até pior do que os homens, mas não acredito nisso.

- Também não acredito.

Arthur bebe o resto de cerveja que sobrara. Soren pede uma ao garçom.

- Mudou de idéia?

- A respeito...

- A respeito da cerveja estragar sua vontade de se matar.

- Mudei. Mas vou me matar assim mesmo.

- Eu também.

Novo silêncio, que Arthur quebra tamborilando os dedos na mesa de madeira, sem forro, incomodando bastante Soren, que procura retomar logo o assunto:

- Voltemos ao assunto das formigas.

- Voltemos a elas – assente Arthur, aquietando a mão, para alívio de Soren.

- Não acha que são extremamente felizes e, ainda por cima, têm segurança absoluta nesta felicidade?

- Concordo quanto à felicidade, mas... Segurança absoluta?

- Sim. Os operários homens, apesar de elaborarem em seu dia-a-dia apenas pensamentos básicos necessários à sua subsistência, podem, de uma hora para outra, começar a ter idéias subversivas.

- Subversivas como?

- Como para quê trabalhar tanto e sempre, ininterruptamente, até aposentar de velho ou morrer.

- O que aconteceria?

- Ficariam loucos, angustiados, melancólicos...

- O que, de fato, por vezes acontece.

- Acontece. E aí, como não têm com quem dividir esta melancolia extrema, matam-se.

- Eu também.

- Calma. Ainda não terminei.

- Prossiga.

- Se, ao invés de operários, estes indivíduos pertencessem a uma classe intelectual...

- Como nós?

- Como queira. Se fossem intelectualmente diferenciados, teriam acesso a uma leitura e conversas com pessoas extremamente angustiadas...

- Como nós?

- Como nós. E este acesso à melancolia intelectualizada poderia ser sua salvação.

- Racionalizar a angústia?

- Precisamente.

- E nós?

- Nós não somos apenas medianos com acesso a educação. Nós somos a educação.

- Acho que isso foi pretensioso.

- Totalmente. No entanto, é o que somos. Pretensiosos.

- Sendo assim, vou me matar.

- Eu também.

- Vamos nos matar de que maneira?

- Por enquanto, de maneira nenhuma.

- Estamos representando?

- De certa forma, sim.

- Sabia!

- É uma representação necessária. Afinal, estamos resolvendo os problemas do mundo aqui.

- Estamos?

- Estamos.

- Tem razão. Somos um bocado pretensiosos.

Arthur sinaliza para o garçom, queria mais cerveja. Suspira, enquanto observa algumas crianças brincando na pracinha em frente ao bar.

- Vou me matar.

- Eu também.

O garçom traz mais dois copos cheios.

- E se o sentido da vida fossem os pequenos prazeres? Como esta cerveja, por exemplo? – Arhur levanta o copo e o examina contra a luz do sol, escondido atrás de várias nuvens. O dia estava idealmente cinzento.

- E quem está buscando um sentido para a vida?

- Não estamos?

- Pois não vamos nos matar?

- É verdade. A não ser que estejamos apenas representando.

- Temos que nos matar. Não é possível que saibamos tanto e não nos matemos.

- Por quê?

- Tanto conhecimento tem que levar à loucura completa.

- Ou à completa melancolia.

- Isso.

- Mas se racionalizarmos nossa melancolia?

- Como bons medianos?

- Como bons medianos.

- Não o somos.

- Nada nos impede.

- Racionalizemos, então.

- Já o fazemos.

- É verdade...Mas vou me matar assim mesmo.

- Eu também.


In. Epitáfio. São Paulo: Nankin, 2003.
Imagem retirada da Internet: mesa de bar

Flávio Paranhos - Conto



Epitáfio



Começou seu depoimento assim:

- Não sei do que está falando.

E levou logo um murro. O que chamavam Capitão explicou:

- Estão.

O homem atado à cadeira se corrigiu:

- Não sei do que estão falando...

E levou outro murro. Desta vez o que chamavam Chefe foi quem explicou:

- Não banque o engraçadinho com a gente. Sabe muito bem do que estamos falando.

O homem atado à cadeira nada disse. Ficou esperando outro murro, que o Capitão se apressou em lhe aplicar.

- Não queria deixá-lo esperando – disse, e deu uma gargalhada.

- Cale-se – ordenou o Chefe ao Capitão, que se irritou. Quase discutiram.

O homem atado à cadeira sentiu que aquele era um momento de fraqueza e arriscou:

- Juro que não sei...

Foi interrompido por violento soco, que quase o fez desmaiar.

- Não interprete nossa discussão como eventual fraqueza. Ou eventuais discussões entre nós como fraqueza.

- Entre nós? – repetiu o homem, bastante enfraquecido, levando em seguida outro murro, que desta vez o fez desmaiar pra valer.

- Já disse para não bancar o engraçadinho! – gritou o Chefe, como se justificando para si mesmo ou para o Capitão, já que não fazia sentido falar para alguém desmaiado. Olhou para o Capitão, que se apressou em mostrar que compreendia:

- Compreendo – disse, e foi até o canto da sala buscar um balde  de água com sabão. Atirou todo o conteúdo na cara do homem, que acordou tossindo muito, dizendo, entre estertores:

- Sabão

- É exato, meu amigo. A água tem sabão misturado – informou o Capitão.

- Acontece que sou alérgico a sabão – reagiu o homem, ainda tossindo.

- E daí? – perguntou o Capitão, armando novo golpe, mas foi contido pelo Chefe:

- Quero que ele fale.

Ainda tossindo e tentando se coçar com a língua, o homem disse:

- Não sei do que está falando.

Levou um tapa e se corrigiu:

- Estão. Não sei do que estão falando, eu juro. E sou realmente muito alérgico a sabão.

- Que tipo de sabão? – perguntou o Chefe, quase condescendente.

- Qualquer – respondeu o homem, economizando palavras para poder se coçar.

- Está economizando palavras comigo?

- Não. Estou tentando me coçar.

O Chefe e o Capitão ficaram observando o homem se coçar com a língua.

- Que coisa horrível – disse o Capitão.

- Está se compadecendo dele? – perguntou o Chefe, denunciando ira iminente.

- Estou achando feio. Digno de dó, apesar de não ser o que eu esteja sentindo – explicou o Capitão.

- E o que é digno de dó é indigno – disse o homem, entrando no diálogo de seus algozes e interrompendo sua tentativa de se coçar com a língua.

- Que bonitinho o que acaba de dizer. Daria uma bela epígrafe – ironizou o Chefe.

- É mesmo – concordou o Capitão – uma bela epígrafe para sua própria lápide.

O homem atado à cadeira e o Chefe não se contiveram e explodiram em uma gargalhada diante da cara apalermada do Capitão, acompanhados pelos demais algozes presentes – a sala estava cheia deles. O Chefe dispensou a todos. Continuariam algumas horas depois. No momento não havia mais clima para tortura.


Imagem retirada da Internet: soco
In. Epitáfio. São Paulo: Nankin, 2003.

Luís Antonio Cajazeira Ramos - Poema



O Jogo das Contas de Vidro




Aos poetas que li.



Qual alvo tisne, a lua tinge a noite
em tons argênteos, grises, plúmbeos, brancos.
A escuridão se esquina e cinge os flancos,
mal traçando o recanto em que se acoite.

O luar, com mãos de seda, audácia e zelo,
retira à noite o véu que a cobre espúrio;
e ilumina, de lilás a purpúreo,
tudo o que ao sol vai do azul ao vermelho.

À lua, o chão rural é mais bucólico
e o mundo urbano é um tanto mais insólito
do que revelam ser à luz do sol?

Talvez... Assim, qual lua, sem luz própria,
do corpo da poesia o poeta é cópia
— sinal especulado do farol.




In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Lua

Luiz de Aquino - Poema



A MOÇA CHEGANTE



Vi chegar a moça de preto
e era preto o que mais havia
entre as moças antes vindouras.

A moça chegante
sorria ofegante e dizia o nome
Anamélia
ante a poesia de anestesia
rebrotada ao som dos passos.

Ansiei a alvorada
para não doer mais.


In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: mulher de preto

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