Florisvaldo Mattos - Poema


Passos e acenos


Nada tens de ave. Fera lúcida, olho
felino (pantera de Rilke entre grades)
nunca indefesa, à espreita. Além dos olhos,
bebo teu corpo, teu cabelo (franja
dos dias) — o mais dardeja. Também és
elástica e macia: braços, pernas
de roliça cogitação. Vais, vens.
De pé, agitas os vaporo
sos membros,
ao calor da voz que atordoa o vento.
Sentada, as formas se acomodam, urdem
rútilo desenho. É quando, pasmo, ouço
o marulho do sexo, ávido. Bem
que mereço essa onda, ronda de garras
que me acenam, me buscam pela tarde.



Imagem retirada da Internet: fêmea

Florisvaldo Mattos - Poema



Duração do aroma


Não morrem no campo as flores.
Pacíficas continuam
arquiteturas de angústia
dissolvendo-se no chão
amoroso das searas.
Como nuvens distraídas
ficam no solo. Ali somente,
um sofrimento que vem,
uma esperança que vai
da boca dos camponeses
ao chão que abriga silêncio.
Não é pranto nem flor. É vinho.
De amarelo outono e lábios
pranto vinho e flores ficam
incrustados no lamento,


De sangue batendo aos pingos
na superfície das horas
vai seu perfume durando
nas colheitas. Sobrevive
no suor dos músculos tão
sofridos de cicatrizes,
como um hálito de cinza
prenhe de soluço verde.
Prossegue na dor, reunida
à ferrugem dos arados,
a melancolia de olhos,
de pele sacrificada
e ternura corrompida,
de arames e privações.


Que venha o vento brandindo
foices de lua no campo
e corte cercas corte o rio
e das chuvas no caminho
corte horizontes de linho.
Entre abelhas e madeiras,
no coração das florestas
corte as flores e o vizinho
aroma das madrugadas.
Corte pranto dos vaqueiros,
corte rastro dos cavalos
e de quem sofre sozinho
corte voz molhada e fria.
Que venha vento soprando
ferraduras de amargura,
decepe haste das flores
com o alfange da agonia.
Fria lâmina de sombra
inevitável traspasse
o dorso branco do dia.
E o que fica suado na terra
não é pranto nem flor. É vinho.


Sobrevivência do aroma
no lamento desses rostos,
dessas chuvas no caminho,
não morrem no campo as flores:
perduram constituídas
de soluços como o vinho.


Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: vinho

JJ Leandro - Crônica





O revolucionário estádio da Copa


A possibilidade e o temor — não injustificados — de atrasos no cronograma de reformas e construção de estádios para a Copa do Mundo de 2014 têm ofuscado uma observação de fundamental importância e que deveria estar na ordem do dia no país: a capacidade criativa de engenheiros e arquitetos brasileiros. Deveria ser mais observada que os orçamentos dessas obras que se inflacionam da noite para o dia, levantando suspeitas de superfaturamento que em pouco tempo — se confirmadas — podem requerer não tapetes mas gramados para esconder irregularidades. Neste jogo de gato e rato em que se enredam a imprensa, os políticos e os cartolas do futebol, os torcedores em meio ao fogo cruzado com o coração na mão, perde-se a oportunidade de comprovar quão revolucionários e criativos somos. E isso, claro, iria ratificar que Oscar Niemeyer, aplaudido no mundo todo, não foi só um feliz acidente de percurso da engenharia nacional, pouco provável de voltar a acontecer.
Bom que se diga que o frisson da Copa gerou uma onda criativa até em arquitetos de cidades que sequer serão sobrevoadas pelos aviões com delegações nacionais ou turistas. Nem por isso esses profissionais sentem-se excluídos neste mundo que já foi Aldeia Global e hoje é uma Grande Rede. Um amigo meu que o diga.  Arquiteto inquieto, há muito preparava um projeto revolucionário de estádio que ‘não faria feio diante dos rebuscados, caros e ineficientes elefantes brancos de sedes e subsedes da Copa’, como se referia ao abordar o assunto. E eu cá com os meus botões, como é usual dizer aqui no interior, pensava que ele era bem capaz de um disparate iluminado. Seu histórico profissional conspirava a favor de minhas suspeitas. Fora ele que projetara o shopping da cidade — ideia excêntrica abandonada em boa hora — que previa, e aí está o mais fantástico!, uma escada rolante ambulante para acessar o mezanino  deslocando-a para qualquer ponto de sua frente de mais de cem metros. Fiquemos só com esse exemplo porque outros tais são também de tirar o fôlego.
Ostrich, como o chamarei — isso é codinome pois não sou de fazer publicidade grátis —, pôs mãos à obra e me cientificou que trabalhava de forma revolucionária. Até nas folgas entre as sucessivas horas de trabalho em seu escritório, arejando a mente com goles de cerveja, não desviava a atenção de seu projeto. Sonhava: ‘Ah se eu tivesse a oportunidade de vê-lo aprovado como um dos estádios da Copa’. Voltava imediato ao escritório elevando seus sonhos em espirais da fumaça do cigarro.
Belo dia chegou ao bar onde eu estava com um grande sorriso no rosto. Era daqueles que autenticam certeza. O que será?, intriguei-me antes que se expressasse com palavras. Era o projeto de Estádio Revolução, como o batizou. Abriu o papel sobre o feltro verde da mesa de bilhar, para onde me arrastou após arrancar uma grande pasta de dentro do carro.
— É ele, veja! — exultou, quase me exigindo aplausos.
Rasgou ele mesmo elogios ao projeto. Era um arquiteto que odiava tudo que era estático.
— Veja — continuou, apontando o desenho com o dedo marcado pelo sarro do cigarro —, as arquibancadas são móveis. Deslocam-se de um lado a outro do campo. Não é genial?
Engrolei um comentário que ele atribuiu a minha estupefação diante de sua obra-prima.
Manteve por alguns segundos um silencioso suspense, para potencializar o efeito sobre mim da verdadeira revolução por fim revelada com a mesma vibração de um jogador após dar xeque-mate em decisão de título mundial de xadrez.
— O gramado tem inclinação de 45 graus de um gol a outro. Essa é a grande revolução de meu projeto, não a simples e repetitiva modificação das linhas de concreto e aço. Está, pois, no novo conceito de utilização do gramado a grande revolução.
De fato não era para menos, fiquei boquiaberto. Mas não dispensei um comentário que qualquer outro arquiteto tomaria como demolidor de seus devaneios.
— Ostrich, como os times vão jogar? Um vai estar em desvantagem.
O seu sorriso iluminado era a negativa de uma rendição.
— E eu não pensei nisso, então? Pra que temos dois tempos no futebol? Pra que as coisas se equilibrem. No segundo tempo, a vantagem troca de lado, ora.



Imagem retirada da Internet: bola

Ariano Suassuna - Poema


A mulher e o reino


Oh! Romã do pomar, relva esmeralda
Olhos de ouro e azul, minha alazã 
Ária em forma de sol, fruto de prata
Meu chão, meu anel , cor do amanhã

Oh! Meu sangue, meu sono e dor, coragem
Meu candeeiro aceso da miragem
Meu mito e meu poder, minha mulher

Dizem que tudo passa e o tempo duro
tudo esfarela
O sangue há de morrer

Mas quando a luz me diz que esse ouro puro se acaba pôr finar e corromper]
Meu sangue ferve contra a vã razão
E há de pulsar o amor na escuridão




Imagem retirada da Internet: romã

Lua


O silêncio gravita
na luz da vela esmorecida,
quando ela chega.
Quedam os obstáculos,
as intrigas,
os desamores.
Sonham livres os poetas,
os bêbedos,
as prostitutas.



Imagem retirada da Internet: Lua

Francisco Perna Filho - Poema

Intenção


Atravesso o poema
como bala certeira
e não me engasgo.
Já sobrevivi
a outros textos,
pretextos,
e intenções.
Corrompi palavras,
assassinei sentenças,
maquiei imagens,
tolerei hiatos.
Pintei o sete
no inacabado verso
sem saber
de mim.

Imagem retirada da Internet: sem título

Francisco Perna Filho - Poema



FINADOS



O fim de tudo
é o nada que reveste a alma,
que não se acaba,
porque composta de infinito.





Imagem retirada da Internet: alma

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) - Poema



desenho by Almada Negreiros
POEMA EM LINHA RETA


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) - Poema



SAUDAÇÃO A WALT WITHMAN




Portugal Infinito, onze de junho de mil novecentos e quinze...
Hé-lá-á-á-á-á-á-á!
De aqui de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,
Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,
Eu, de monóculo e casaco exageradamente cintado,
Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,
Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser...
Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio,
Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,
E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,
Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.
Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,
Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,
Quer pela Rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a Rua do Ouro,
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,
De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.
Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,
Concubina fogosa do universo disperso,
Grande pederasta roçando-te contra a adversidade das coisas,
Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões,
Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras observações,
Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,
Meu grande herói entrando pela Morte dentro aos pinotes,
E aos urros, e aos guinchos, e aos berros saudando Deus!
Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,
Grande democrata epidérmico, contágio a tudo em corpo e alma,
Carnaval de todas as ações, bacanal de todos os propósitos,
Irmão gêmeo de todos os arrancos,
Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de produzir máquinas,
Homero do insaisissable de flutuante carnal,
Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor,
Milton-Shelley do horizonte da Eletricidade futura! incubo de todos os gestos
Espasmo pra dentro de todos os objetos-força,
Souteneur de todo o Universo,
Rameira de todos os sistemas solares...
Quantas vezes eu beijo o teu retrato!
Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus)
Sentes isto, sei que o sentes, e os meus beijos são mais quentes (em gente)
E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de lá —,
Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu espírito
Uma ereção abstrata e indireta no fundo da minha alma.
Nada do engageant em ti, mas ciclópico e musculoso,
Mas perante o Universo a tua atitude era de mulher,
E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o Universo.
Meu velho Walt, meu grande Camarada, evohé!
Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade,
Sou dos teus, desde a sensação dos meus pés até à náusea em meus sonhos,
Sou dos teus, olha pra mim, de aí desde Deus vês-me ao contrário:
De dentro para fora... Meu corpo é o que adivinhas, vês a minha alma —
Essa vês tu propriamente e através dos olhos dela o meu corpo —
Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro de Campos, engenheiro,
Poeta sensacionista,
Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor,
Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!
Nunca posso ler os teus versos a fio... Há ali sentir demais...
Atravesso os teus versos como a uma multidão aos encontrões a mim,
E cheira-me a suor, a óleos, a atividade humana e mecânica.
Nos teus ver sos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,
Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus versos,
Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural,
Ou de cabeça pra baixo, pendurado numa espécie de estabelecimento,
No teto natural da tua inspiração de tropel,
No centro do teto da tua intensidade inacessível.
Abram-me todas as portas!
Por força que hei de passar!
Minha senha? Walt Whitman!
Mas não dou senha nenhuma...
Passo sem explicações...
Se for preciso meto dentro as portas...
Sim — eu, franzino e civilizado, meto dentro as portas,
Porque neste momento não sou franzino nem civilizado,
Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar,
E que há de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!
Tirem esse lixo da minha frente!
Metam-me em gavetas essas emoções!
Daqui pra fora, políticos, literatos,
Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs,
Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida.
O espírito que dá a vida neste momento sou EU!
Que nenhum filho da... se me atravesse no caminho!
O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!
Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo,
E comigo, com Deus, com o sentido-eu da palavra Infinito...
Pra frente!
Meto esporas!
Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,
Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus,
Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa,
Conforme me der na gana... Ninguém tem nada com isso...
Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar,
De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo,
De me cramponner às rodas dos veículos e meter por baixo,
De me meter adiante do giro do chicote que vai bater,
De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam,
De ser o volante de todas as máquinas e a velocidade tem limite,
De ser o esmagado, o deixado, o deslocado, o acabado,
Dança comigo, Walt, lá do outro mundo, esta fúria,
Salta comigo neste batuque que esbarra com os astros,
Cai comigo sem forças no chão,
Esbarra comigo tonto nas paredes,
Parte-te e esfrangalha-te comigo
Em tudo, por tudo, à roda de tudo, sem tudo,
Raiva abstrata do corpo fazendo maelstroms na alma...
Arre! Vamos lá pra frente!
Se o próprio Deus impede, vamos lá pra frente Não faz diferença
Vamos lá pra frente sem ser para parte nenhuma
Infinito! Universo! Meta sem meta! Que importa?
(Deixa-me tirar a gravata e desabotoar o colarinho.
Não se pode ter muita energia com a civilização à roda do pescoço...)
Agora, sim, partamos, vá lá pra frente.
Numa grande marche aux flabeux-todas-as-cidades-da-Europa,
Numa grande marcha guerreira a indústria, o comércio e ócio,
Numa grande corrida, numa grande subida, numa grande descida
Estrondeando, pulando, e tudo pulando comigo,
Salto a saudar-te,
Berro a saudar-te,
Desencadeio-me a saudar-te, aos pinotes, aos pinos, aos guinos!
Por isso é a ti que endereço
Meus versos saltos, meus versos pulos, meus versos espasmos
Os meus versos-ataques-histéricos,
Os meus versos que arrastam o carro dos meus nervos.
Aos trambolhões me inspiro,
Mal podendo respirar, ter-me de pé me exalto,
E os meus versos são eu não poder estoirar de viver.
Abram-me todas as janelas!
Arranquem-me todas as portas!
Puxem a casa toda para cima de mim!
Quero viver em liberdade no ar,
Quero ter gestos fora do meu corpo,
Quero correr como a chuva pelas paredes abaixo,
Quero ser pisado nas estradas largas como as pedras,
Quero ir, como as coisas pesadas, para o fundo dos mares,
Com uma voluptuosidade que já está longe de mim!
Não quero fechos nas portas!
Não quero fechaduras nos cofres!
Quero intercalar-me, imiscuir-me, ser levado,
Quero que me façam pertença doída de qualquer outro,
Que me despejem dos caixotes,
Que me atirem aos mares,
Que me vão buscar a casa com fins obscenos,
Só para não estar sempre aqui sentado e quieto,
Só para não estar simplesmente escrevendo estes versos!
Não quero intervalos no mundo!
Quero a contigüidade penetrada e material dos objetos!
Quero que os corpos físicos sejam uns dos outros como as almas,
Não só dinamicamente, mas estaticamente também!
Quero voar e cair de muito alto!
Ser arremessado como uma granada!
Ir parar a... Ser levado até...
Abstrato auge no fim cie mim e de tudo!

Clímax a ferro e motores!
Escadaria pela velocidade acima, sem degraus!
Bomba hidráulica desancorando-me as entranhas sentidas!

Ponham-me grilhetas só para eu as partir!
Só para eu as partir com os dentes, e que os dentes sangrem
Gozo masoquista, espasmódico a sangue, da vida!

Os marinheiros levaram-me preso,
As mãos apertaram-me no escuro,
Morri temporariamente de senti-lo,
Seguiu-se a minh'alma a lamber o chão do cárcere privado,
E a cega-rega das impossibilidades contornando o meu acinte.
Pula, salta, toma o freio nos dentes,
Pégaso-ferro-em-brasa das minhas ânsias inquietas,
Paradeiro indeciso do meu destino a motores!
He calls Walt:
Porta pra tudo!
Ponte pra tudo!
Estrada pra tudo!
Tua alma omnívora,
Tua alma ave, peixe, fera, homem, mulher,
Tua alma os dois onde estão dois,
Tua alma o um que são dois quando dois são um,
Tua alma seta, raio, espaço,
Amplexo, nexo, sexo, Texas, Carolina, New York,
Brooklyn Ferry à tarde,
Brooklyn Ferry das idas e dos regressos,
Libertad! Democracy! Século vinte ao longe!
PUM! pum! pum! pum! pum!
PUM!
Tu, o que eras, tu o que vias, tu o que ouvias,
O sujeito e o objeto, o ativo e o passivo,
Aqui e ali, em toda a parte tu,
Círculo fechando todas as possibilidades de sentir,
Marco miliário de todas as coisas que podem ser,
Deus Termo de todos os objetos que se imaginem e és tu!
Tu Hora,
Tu Minuto,
Tu Segundo!
Tu intercalado, liberto, desfraldado, ido,
Intercalamento, libertação, ida, desfraldamento,
Tu intercalador, libertador, desfraldador, remetente,
Carimbo em todas as cartas,
Nome em todos os endereços,
Mercadoria entregue, devolvida, seguindo...
Comboio de sensações a alma-quilômetros à hora,
À hora, ao minuto, ao segundo, PUM!
Agora que estou quase na morte e vejo tudo já claro,
Grande Libertador, volto submisso a ti.
Sem dúvida teve um fim a minha personalidade.
Sem dúvida porque se exprimiu, quis dizer qualquer coisa
Mas hoje, olhando para trás, só uma ânsia me fica —
Não ter tido a tua calma superior a ti-próprio,
A tua libertação constelada de Noite Infinita.
Não tive talvez missão alguma na terra.
Heia que eu vou chamar
Ao privilégio ruidoso e ensurdecedor de saudar-te
Todo o formilhamento humano do Universo,
Todos os modos de todas as emoções
Todos os feitios de todos os pensamentos,
Todas as rodas, todos os volantes, todos os êmbolos da alma.
Heia que eu grito
E num cortejo de Mim até ti estardalhaçam
Com uma algaravia metafisica e real,
Com um chinfrim de coisas passado por dentro sem nexo.
Ave, salve, viva, ó grande bastardo de Apolo,
Amante impotente e fogoso das nove musas e das graças,
Funicular do Olimpo até nós e de nós ao Olimpo.


Imagem retirada da Internet: Whitman

Heleno Godoy - Poema



(germinal)

Difuso e solto
mal nascido
se bem nascido
nem canção ou vértice
que de dúbio pupila e
 gema

Se dolorido construção
e
galho
que tronco parte
pois em vibração provoca

Expressão e arco
(âncora?)
lume e torre
que de corpo e carne
agora e asa que
além reintegra e
dignifica


In. Projeto Praxis 1. Goiânia: Gráfica Elite Ltda., 1968, p.30.
Imagem retirada da Internet: difuso



Francisco Perna Filho - Poema


Foto by Guto Lelo


MARGEM


A canoa
desliza leve,
breve,
costurando sonhos.
A margem terceira
do homem que carrega:
sem remo,
sem bússola,
sem direção.

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