Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)- Poema

   
Datilografia

 
 Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano, 
 Firmo o projeto, aqui isolado, 
 Remoto até de quem eu sou.

 Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro, 
 O tique-taque estalado das máquinas de escrever. 
 Que náusea da vida! 
 Que abjeção esta regularidade! 
 Que sono este ser assim!

 Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros 
 (Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância), 
 Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho, 
 Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve, 
 Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.
 
 Outrora.

 Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro, 
 O tique-taque estalado das máquinas de escrever.

 Temos todos duas vidas: 
 A verdadeira, que é a que sonhamos na infância, 
 E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa; 
 A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros, 
 Que é a prática, a útil, 
 Aquela em que acabam por nos meter num caixão.
 
 Na outra não há caixões, nem mortes, 
 Há só ilustrações de infância: 
 Grandes livros coloridos, para ver mas não ler; 
 Grandes páginas de cores para recordar mais tarde. 
 Na outra somos nós, 
 Na outra vivemos; 
 Nesta morremos, que é o que viver quer dizer; 
 Neste momento, pela náusea, vivo na outra ...

 Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro, 
 Ergue a voz o tique-taque estalado das máquinas de escrever.

Imagem retirada da Internet: máquina de escrever

Floriano Martins - Poema

REINO DE VERTIGENS 



Teu corpo e o meu caindo sobre o mundo:
noite saqueada por uma caravana de relâmpagos.
Despojos do tempo foragido de sua fonte,
minando abismos à deriva, perdas flutuantes.
O rosto deformado da beleza que as ruínas cultuam,
linguagem extraviada ao querer entrar em si.
Teu corpo e o meu em sua queda mais secreta.
Um labirinto que fosse um deserto e um deus
ciente que dali não há retorno. Fuga de trevas.
Os disfarces fatais da memória ante o infinito.
Indetíveis sombras caindo sobre o mundo.
Teu corpo e o meu: o que resta de um no outro.

imagem:relâmpagos 

Floriano Martins - Poema

 
VESTES  





 
Os panos nus.
Nenhuma imagem sangrando na pele
de tecidos prontos para o afago.
Recito essa nudez com um par de asas.
Um demônio agachado,
colando os lábios nos meus.
De onde me vês serei um córrego de ossos,
calcinado deleite de tuas almas,
umas poucas, as que não souberam
preservar o horror que as antecipa
e compreende.
Rostos engordurados em cerimônias…
E como te postas, demônio,
mordendo-me os seios, como te postas?
Um olhar a escolher ossos.
Carvões astutos e conhecedores da fábula.
Vê bem o que trago comigo,
este corpo minguado em débeis luas.
Preparas uma pele para mim?
Dá-me tuas facas, esporões, chifres,
a ponta imperfeita de teu falo.
Vês como me faço em mil coxas,
viscosas como iscas, e todas soletram
a queda que anuncias.
Os panos
sobre o vazio, nus.
Equilíbrio voltado para o chão,
rostos desfeitos de vítimas que não alcançam mais ofertório, o pé de um deus encontrado em escavações, por onde me sagras,
puto demônio,
por onde
me despedaças desejosa de tua saúde.
Meu corpo em lascas, santuário decrépito
de tua perversão,
cascos me arranhando o tecido da memória, sim,
uma mínima dor palmilha insuspeitas procedências,
e sabes o quanto me dói tua abundância,
o pote que indicas e ansiosa ponho-me a buscar ali a resposta para o aflito cultivo
de dores
por todo meu corpo.
Carrego comigo todas as formas
com que me atacas.
Quais máscaras perpetuamos, as minhas, as tuas?
Meus lábios te queimam a pele.
Óleos acesos enquanto nos desfazemos.
Os panos como papiros, inscrições invisíveis que ensinam a manter quente a cabeça de um deus morto.
Nus.
Com a medida do inferno de cada dobra
do tecido de que somos feitos.



Fonte: Antônio Miranda
Imagem: papirus

Francisco Soares Feitosa - Poema


Architectura
                                                                                             
Um dia, Ela 
desenhará em chãos longínquos a casa só nossa,
que eu farei com estas mãos.


Os tijolos, eu os amassarei com os meus pés.


Às telhas —
hei de aprontar o barro mais macio,
e as formas serão por mim,
uma a uma, completadas;


Ela as alisará longamente — 
seus dedos molhados de um profundo silêncio:
só os pássaros.

Fortaleza, manhã de 19.11.1998


Imagem retirada da Internet: arquitetura 

Francisco Soares Feitosa - Poema

 
Resíduo de Sal




           “A onda envolve-o,
          pousa-lhe na pele o débil resíduo
          de sal que o sol não tardará a evaporar,
          deixando-a vermelha e a seguir brônzea”
          (Hélio Pólvora, Mar de Azov, Ed. Melhoramentos, 1986)




Como se fosse hoje, o mar,
os olhos e uma gota de sal, que as palavras
se mergulhavam  em até logo...


Vermelha e brônzea foi a ausência,
como se fosse hoje,
o mar,
corríamos aos beirais da espuma
provocativamente entre a risca d’água e os sapatos
molhados e o sal, que as palavras
se afundavam
em silêncios de areia submersa e até logo.


¿ Aonde teríamos chegado
se as ondas se quebrassem daqui-prá-lá ?
Não,
não será possível, ela disse:
veja,
  estas ondas só se-quebram-para-cá,
  que se para-lá se quebrassem,
  haveria de ser
  muito  mais fácil
  embarcar...
  e o vôo cego:
  em que praia acamparíamos ?

Ondas-só-vindo não nos levariam distantes,
já é quase fim da tarde,
será a noite avizinhada muito clara,
lua de luaçal, veja no horizonte,
nos achariam facilmente, sob a lua;
tenho medo,
as ondas-contra... esse clarão,
tenho medo,
desta vez, não...
ainda não.
Inútil um basta,
ineficaz um por-favor,
escusado um não-me-diga-adeus...

——   Não, não, é impossível...
tenho medo,
ela disse.




               E aquela lâmina de sal,
               aqueles riscos de areia nos pés,  ficaram
               presos
               e o perfume, o sal, areia e olho,
               que jamais lavados,
               gavinhas que se lançaram,
               busca
               de não achar.

As praias:  —  como teriam  sido aquel’outras,
do outro lado,
naquela tarde,
se as ondas
se gerassem
doutro vento ?

Ou, a meio caminho,
 entre a praia de cá
  e a praia de lá,
   todas as ondas se cessam
    paradas, espinhaço do mar,
     onde o mar é calmo,
      nem vai nem vem, ao meio,
       melhor dizendo,
        não existe praia nenhuma do outro lado.


 


Salvador, noite alta, 28.09.95


Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: mar

Barros Pinho - Poema


O retrato nas paredes

As casas como as pessoas 
guardam cicatrizes 
expostas no rosto do tempo. 

Às casas sempre voltamos 
nelas a vida anda por trás do que passou 
existem na existência indo embora. 

As casas onde morei para viver 
na afoitosa e lúdica adolescência 
abrem rugas na face branca das paredes. 

De dentro delas saltam sonhos 
que não querem envelhecer 
e o menino açoitando o vento nas curvas do rio 
que se arrasta na carne azul da paixão.




Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: casa envelhecida

Barros Pinho - Poema


Gramática aos olhos da amada

Qual o adjetivo 
para os olhos da amada 
os olhos da amada 
se confundem com o mar 
ora verde ora azul 
na cor do triste 
no salmo da alegria 
semântica da noite 
metáfora da madrugada 
as sílabas do vento 
nos olhos da amada 
o verbo amar edifica 
os acentos da solidão 
olhos do mar olhos do rio 
olhos de serpente sem veneno 
olhos de mulher olhos de sonhos 
que guardei para viver no ponto do luar.




Fonte: Jornal de Poesia
Fonte da imagem: Saúde Verde Limão

Barros Pinho - Poema



Ode ao Amor do Mar


Gosto do mar 
pelo absurdo 
sensual 
de suas sereias 


pelo encrespar 
do vento 
no ventre 
de peixes 
abomináveis 


pelo lésbico 
despudor 
das ondas 
violentando 
as águas 


gosto do mar 
absorvendo 
sol 
na máscara 
de bronze 
dos pescadores 

gosto do mar
mistério azul
das mulheres-marinhas
visivelmente estranguladas

gosto do mar
concupiscente
e paradoxal
em seus horrores.


Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: sereia

Urhacy Faustino - Poema




                               Inventário de safras


I



Ceifar o trigo;
ordenhar a vaca;
moer café.


Beneficiar o pão;
manipular o leite;
extrair a essência.

Preparar a mesa, da manhã.


II



Observar lua propícia,

plantar, na certa colher:

arroz, feijão, hortaliças e flores -
não esquecer: colibri precisa comer.


Tratar bem galo e suas galinhas,
pra ter ovos e despertador.


E rezas para agradecer farturas
no almoço e no jantar.




III



Noite,
piar de coruja, longe.
Um silêncio quase,
não fosse o ruminar dos animais.

                Pirilampo que se perdeu do pasto,
faz-se estrela única,
no teto do quarto escuro.


IV


Cão amigo,
para ladrar estranhos.
Gatos no telhado —
aquecedores de pés em noites de inverno.

Livros, muitos deles,
espalhados nos cantos certos da casa.

E uma avó, cheia de histórias,
na mesa de cabeceira,
para os dias de preguiça.


                                     Imagem retirada da Internet: safra

Tobias Barreto - Poema





O Beija-Flor


Era uma moça franzina,
Bela visão matutina
Daquelas que é raro ver,
Corpo esbelto, colo erguido,
Molhando o branco vestido
No orvalho do amanhecer.

Vede-a lá: tímida, esquiva...
Que boca! é a flor mais viva,
Que agora está no jardim;
Mordendo a polpa dos lábios
Como quem suga o ressábio
Dos beijos de um querubim!

Nem viu que as auras gemeram,
E os ramos estremeceram
Quando um pouco ali se ergueu...
Nos alvos dentes, viçosa,
Parte o talo de uma rosa,
Que docemente colheu.

E a fresca rosa orvalhada,
Que contrasta descorada,
Do seu rosto a nívea tez,
Beijando as mãozinhas suas,
Parece que diz: nós duas!...
E a brisa emenda: nós três! ...

Vai nesse andar descuidoso,
Quando um beija-flor teimoso
Brincar entre os galhos vem,
Sente o aroma da donzela,
Peneira na face dela,
E quer-lhe os lábios também

Treme a virgem de surpresa,
Leva do braço em defesa,
Vai com o braço a flor da mão;
Nas asas d’ave mimosa
Quebra-se a flor melindrosa,
Que rola esparsa no chão.

Não sei o que a virgem fala,
Que abre o peito e mais trescala
Do trescalar de uma flor:
Voa em cima o passarinho...
Vai já tocando o biquinho
Nos beiços de rubra cor.

A moça, que se envergonha
De correr, meio risonha
Procura se desviar;
Neste empenho os seios ambos
Deixa ver; inconhos jambos
De algum celeste pomar! ...

Forte luta, luta incrível
Por um beijo! É impossível
Dizer tudo o que se deu.
Tanta coisa, que se esquece
Na vida!  Mas me parece
Que o passarinho venceu! ...

Conheço a moça franzina
Que a fronte cândida inclina
Ao sopro de casto amor:
Seu rosto fica mais lindo,
Quando ela conta sorrindo
A história do beija-flor.

Fonte: Jorna de Poesia
Imagem retirada da Internet: beija flor

Raimundo Célio Pedreira - Crônica

                                                                                      Foto by Dilton Mascarenhas
VELO



Sempre que o canoeiro pendura o remo na despensa de sua casa, as margens desistem dos ribeirinhos (...) É que escreveram uma sentença de morte quase sem testemunhas, sepultando um rio em seu leito. Planejaram mesmo um suave lago, fizeram-no afogando a memória de uma gente turuna, uma gente que sabia singrar a vida de canoa (...) Meninos-lambaris hoje vigiam carros nos estacionamentos (...) Homens-pintados hoje esperam cesta-básica (...) Mas os caminhões de areia são sistematicamente encomendados para a temporada de praia, onde se deleita meia dúzia de gente-glacial. Todo dia é necessário um exame do líquido aquoso para saber a possibilidade de um simples tibum.

Saudade nada, é indignação. Quem se habilita a organizar um encontro de canoeiros do turuna? Quem vai içar as lendas do funil? Sim, é bem mais fácil trazer as estrelas do vôlei de praia. Elas nunca irão conhecer os assentados do Canela (...) não escutam os gemidos das árvores agonizando logo depois do horizonte que encerra a cidade (...) lá onde uma represa continua prometendo o progresso e a luz se apaga no viés do salário. “ Cadê minha lanterna? “ 

Gláucia Lemos - Poema


Na Hora do Sono





Amar é como andar por entre facas. 
A mão de sal no meu olhar de areia. 
Poder levar à boca um beijo azul, 
sorrir com dentes verdes e morrer. 

Calcino a minha febre primitiva 
na boca esquiva e negra das noturnas. 
Agudo o anseio retalhando o ventre, 
e o vácuo espaço qual o olho do abismo. 

Todos os contos líricos morreram. 
Em ti a esfinge canta um canto branco, 
sereia em barco de um Caronte músico. 

Amar-te é andar incólume entre facas. 
Eros folheia um livro em minha cama 
até rasgar-se a folha derradeira.




Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Eros e Psique

Gláucia Lemos - Poema



Os barcos da tarde


Vede os barcos que ficaram solitários 


quando os ventos passaram 
são como o corpo das mulheres sozinhas 
quando passaram os tempos das esperas. 


Não tocai nessas velas! 
Não tocai! 
São como os seios das mulheres castas 
pulsando inutilmente 
Vão tocai! 
Vede como são mortos esses barcos, 
como morrem em silêncio essas mulheres! 


Imagem retirada da Internet: seios

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