Marja Perna - Conto

A ALMA DA MINHA MÁQUINA DE LAVAR






Quando a mulher se casa, ela traz consigo vários desejos, guardados a sete chaves, os quais lhe proporcionarão muitas felicidades, além da economia de seu tempo para usufruir das pequenas futilidades femininas.

Talvez não seja do conhecimento de todos, mas a mulher só adquiriu sua independência quando surgiu a máquina de lavar, e é nesse contexto que o fato se desenrola: a história de uma mulher de meia idade e sua máquina de lavar, que tinha alma.

Há alguns anos, mais ou menos cinco anos, uma jovem esposa, trabalhadora de instituição pública,  durante seis horas, e, no restante do dia, mãe, doméstica, lavadeira, amante, cozinheira, dentre várias outras profissões inerentes às mães, resolveu, para economizar tempo nas tarefas domésticas,  adquirir uma máquina de lavar, comprada via internet, em 10 prestações, com um prazo de vinte dias para entrega.

Finalmente, a grande aquisição chega ao domicílio. Um misto de alegria e tristeza  toma conta do ambiente. Alegria, por que tudo era lavado, sem muito esforço (só da máquina, claro!); tristeza, por que  a conta de água aumentou assustadoramente. Nem isso tirou a felicidade daquela mulher.

O tempo foi passando, um, dois, três, quatro...cinco anos,  quando a grande companheira começou a mostrar-se cansada, e, num belo dia, de repente, parou sem avisar à sua dona, deixando-a muito aflita, o que a fez, imediatamente, procura  um técnico, que deu o seguinte diagnóstico:

- O  coração da máquina queimou!
-Coração?
- Ah, desculpe-me,  a placa da máquina.
Após o diagnóstico, a facada:
-  Para eu consertá-la, a senhora terá de pagar R$ 120 reais!
- Nossa!, não faz mais barato?
- Infelizmente, não!

E assim foi feito, Cobrou cento e vinte reais, arrumou algumas peças, e a grande companheira voltou a funcionar, a passos bem mais lentos, mas sempre na ativa.

Após três meses de um relacionamento alegre, de confiança mútua, a estimada amiga, mais uma vez, deu sinal de cansaço. Mais uma vez, chama  o técnico. Diagnóstico? O mesmo, só que, desta vez, R$ 60 reais mais caro, com garantia de três meses.

Os meses se passaram, e a grande amiga continuava firme e forte, lavando tudo, desencardindo o mundo dos tecidos. Num dado momento, num dia como outro qualquer, fora tomada pelo desânimo,  vira o seu  ritmo diminuir, e já não mais respondia ao comando de sua dona, que impacientemente bradou:

- Da próxima vez,  não lhe mando mais para o conserto, vou comprar uma novinha, pelo menos terei certeza de que ela não me trará  surpresas desagradáveis.

Dito e feito, o grande dia chegou! A velha máquina, depois de bufar repetidas vezes, parou. Várias tentativas para reanimá-la, foram em vão. Por cinco dias as roupas  se  acumularam, ficaram encarunchadas, mas, mesmo assim,  a dona, sem querer trocá-la, insistia em ligá-la várias vezes por dia, até que, no quinto,  desistiu de vez, e saiu para comprar uma nova companheira. E isto realmente se concretizou. Comprou uma mais potente, 10 quilos, turbo, todo o sonho de uma dona de casa. Quando chegou em casa, com a nova aquisição, foi até à velha amiga, alisou o seu vidro, e falou:

- Minha velha amiga, tentei tantas vezes, pedi para você não parar e você me deixou na mão, com o cesto cheio de roupas sujas e uma conta bem salgadinha para pagar, tudo culpa sua; mas, agora, não tem mais jeito, você dançou, pois já adquiri uma nova companheira, linda e  branquinha. 

Neste momento,  num último gesto de amizade e gratidão, a dona, bem devagar, passa o dedo no botão “liga/desliga” e, num último sentimento de amor à velha companheira,  aperta o botão verde:  de repente,  acende-se uma luzinha, a morta renasce depois de cinco dias, começa a funcionar, jorrando água, com toda a força, com todo amor à sua companheira de velhos tempos.


A jovem senhora deixa cair uma lágrima, grita de felicidade, coloca a roupa suja na máquina, deixando-a trabalhar mais uma vez. A Máquina nova, na sua imponência, a tudo assistia, mas de nada adiantou, valeu a experiência da mais velha, a amizade devotada. A sua dona, com o coração apertado,  esqueceu a máquina nova em um canto, coberta, e continua com sua grande companheira, em uma estreita relação de amor:  homem e máquina. Toda vez que pensa em deixá-la, ou melhor, aposentá-la, o seu coração  dói. 

José Fernandes - Artigo Literário

IDENTIDADE ÔNTICA E ONTOLÓGICA DO SER HOMEM NA LINGUAGEM DE           GRANDE SERTÃO: VEREDAS



Escritório de João Guimarães Rosa - Foto: Acervo Familia Tess


INTRODUÇÃO

O estado de lançado do homem no mundo compreende a existência da identidade ôntica, social, e da identidade ontológica. A primeira ocorre, quase sempre, de forma inconsciente, pois se realiza, à medida que o homem, obrigatoriamente, tem de se relacionar com o outro e com o sistema, para sobreviver. A segunda, entretanto, exige que o ser tenha plena consciência de seu estado de lançado e da conseqüente necessidade de conquistar sua essência, a substância do humano. A identidade ontológica, mormente dentro do texto artístico, materializa-se em linguagem, que pode assumir diversas faces e funções, à proporção que a personagem de ficção se pensa e dispõe da consciência do ser e do estar no mundo. No caso de Grande sertão: veredas, o protagonista, ao pôr-se em viagem física e metafísica, sob a perspectiva do bem, em que tem de acreditar, e do mal, a que tem de vencer, para ascender ao humano, converte-se em linguagem, por-quanto é através dela que ele revela sua existência em narrativa. Mas, ao mesmo tempo que ele se erige e empreende a viagem metafísica, também elabora uma linguagem e uma língua individual e original, e que é regional e universal, porque imagem de seu ser e de seu estar no mundo e no sertão, que é o de dentro dele.  É exatamente essa perspectiva metafísica da linguagem que pretendemos perscrutar nesse estudo, uma vez que a linguagem da narrativa de Grande sertão: veredas transubstancia-se, também, em lin-guagem de nação e, portanto, de falantes da Língua Portuguesa, porque reflexo de um falar típico do sertão, que ainda conserva resquícios verbais e fonológicos do português falado à época do Brasil colônia, recriado em bases estéticas e ontológicas.


1 – IDENTIDADE ÔNTICA E ONTOLÓGICA


João Guimarães Rosa e os vaqueiros, na viagem, em 1952.Foto: Eugênio Silva - O Cruzeiro


A identidade, entendida sob uma ótica filosófica, compreende o ser e o estar do homem no mundo. Quando ela se prende ao estar, temos a chamada identidade ôntica, relacionada ao ente, ensentis, referente ao homem que não ascende à essência, vez que não empreende aquela busca e, consequentemente, não luta para conquistar a substância do humano. Essa identidade diz respeito à vida social do indivíduo, em sua relação direta com o outro, entendido como ser social, que pode lhe complementar, à medi-da que o conjuga ao todo, como ocorre com Riobaldo, ainda jovem, ao conhecer o me-nino. Diadorim chamou-lhe tanto a atenção pelo saber e pelo comportamento, que Rio-baldo queria-o sempre junto de si, pois constituiu verdadeira lição de sociabilidade, co-mo constatamos nesse excerto do romance:

Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversazinha adulta e antiga. (1970, 81)

Embora Riobaldo não fale de outras amizades de infância, a descoberta desse ser revela-lhe a verdadeira identidade ôntica, identidade da persona, sobretudo por se sentir completo como ser social. Não sem motivo, esse mesmo menino vai iniciá-lo em outra faceta da identidade, a relativa ao ser, esse, identidade ontológica, que compreende a busca da substância do humano de forma consciente, a fim de o homem ultrapassar os próprios limites, mormente aqueles relacionados à condição humana. Identidade entendida como processo, porquanto envolve a existência em toda a sua extensão metafísica. No caso de Grande sertão: veredas, Riobaldo, como soe acontecer no comum dos ho-mens que ascendem à transcendência do existir, passa pelos dois momentos, porquanto a conquista da identidade ôntica ocorre, quase toda, em conjunto com a identidade ontológica. Assim, ainda em estado de ente, marcado pelo medo, pela desconfiança e pela ingenuidade, empreende a travessia do Rio São Francisco, juntamente com o menino. Essa travessia marca o início das transformações que o processo imposto pela passagem do estado de ente ao estado de ser lhe impõe, porquanto, ao retornar, Riobaldo não será mais o mesmo. Dispõe, agora, de uma qualidade indispensável ao enfrentamento dos percalços indispensáveis à conquista da essência: a coragem, a ousadia.
O resultado da travessia implicou forte modificação na essência de Riobaldo, a ponto de ele, que era chamado simplesmente de Baldo, uma vez que houvera a síncope da sílaba Rio, passa a chamar-se Riobaldo. Ora, conforme já postulara Platão, no Crátilo, o nome confere essência ao ser nomeado. Exatamente por isso, aquele que era Baldo, desprovido, carente, ou a partir do alemão, bald, que significa em breve, mudou rapidamente para Riobaldo, Ribald, ainda do alemão, o irreverente, ou o rio audacioso. Não o fosse, e fortes relações não se estabeleceriam entre Riobaldo, protagonista de Grande sertão: veredas, e Ribaldo, personagem da novela El caballeroZifar, do início do século XIV, em que, certamente, Guimarães Rosa se inspirou para criar a personagem. Mas, a prova maior de que ele realmente assumiu outra faceta metafisica de sua identidade é constatada nas reflexões metafísicas e teosóficas que marcarão sua existên-cia ao longo da narrativa, uma vez que se converte, também, em rio irreverente, cristalizado em um relato que segue o percurso do rio, em seu constante distanciar-se e tangenciar-se, e em seu perpétuo ir-e-vir:
A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data.

Não sem motivo, o processo de formação da identidade de Riobaldo obedece a verdadeiros rituais que implicam passagens para outro estágio do ser em relação direta com sua essência. Assim, após a travessia do rio, aprende as lições de que é filho de um paidrinho e foge de casa, começando de fato o seu êxodo físico e, sobretudo, o êxodo metafísico. Mas, ao aprendizado do rio acresceu-se-lhe, também, a lição de mestre Lucas que lhe propicia tornar-se professor, marca de sua ascensão ôntica e a consequente preparação para o ingresso na jagunçagem, vez que já se formara no manuseio das armas, sob orientação de Selorico Mendes. Além disso, o fato de ser professor, mesmo sem relatar o que realmente aprendera, possibilita-lhe ingressar em conhecimentos de ordem metafísica e teosófica, necessários à conquista da identidade ontológica.

A conquista integral da identidade, no entanto, impõe-lhe percorrer um longo caminho pelo sertão, a fim de ser tão ele mesmo. Assim, passa por verdadeiros ritos de passagem que implicarão acúmulo de experiências e transformações metafísicas mani-festas em faces diversas de sua essência. Assim, ao revelar suas qualidades de atirador, conforme ele mesmo relata, Hermógenes lhe confere o codinome de Tatarana, lagarta de fogo:
Por jeito? Com o que se deu, que eu não contava. O Hermógenes me chamou. Aí ─ as cintas e cartucheiras, mochilão, rede passada e  um cobertor por tudo cobrir ─ ele estava parecendo até um homem gordo. ─ "Riobaldo, Tatarana, tu vem. Lugar nosso vai ser o mais perigoso; Careço de três homens bons, no próximo de meu cochicho." Para que vou mentir ao senhor? Com ele me apartar assim, me conferindo valia, um certo aprazimento me deu. Natureza da gente bebe de águas pretas, agarra gosma. Quem sabe? Eu gostei. Mesmo com a aversão, que digo, que foi, que forte era, como um escrúpulo. (155)

Sintomaticamente, Tatarana, do tupi, tatá, fogo; rana, semelhante, parecido, tra-duz a essência mesma de Riobaldo, à medida que, ao ligar-se à lagarta que queima, re-vela o seu lado ambíguo, correlacionado tanto ao bem quanto ao mal, além da capacidade de minar os adversários. Já a semântica de fogo, além de revelar sua instabilidade, materializa as certezas que lhe permitem partir de um ponto fixo e imóvel ─ "Deus existe mesmo quando não há." ─ para minorar as dúvidas que o atormentam durante todo o existir. Por outro lado, considerando o veneno que o animal inocula, através de suas cerdas, ao ser  tocado, Tatarana se conecta também ao sentido duplo de bem e  mal, que afligem o protagonista do romance, além, é claro, de constituir uma de suas qualidades, sobretudo ao verificarmos que esse epíteto lhe foi outorgado em decorrência de suas habilidades no manuseio das armas. Não fosse isso suficiente, o veneno da tatarana ainda lhe serve de defesa, numa tradução perfeita do duplo Riobaldo, aquele que se defende, como na prevenção revelada contra Hermógenes e Ricardão, e que ataca, quando a ocasião o requer, como ocorrera quando liquidara o próprio Ricardão, em defesa de Diadorim.

Ao atribuir-lhe o epíteto de Tatarana, não sabia Hermógenes que estava confirmando a essência de bom atirador, pois, conforme Wupes já afirmara, Riobaldo atirava com o espírito:  

Mas estava lá o Vupes, Alemão Vupes, que eu disse - seo Emílio Wusp, que o senhor diz. Das vezes que viera a passar pelo Curralinho, ele ia era meu conhecido. Tresdobrado homem. Sendo que entendia tudo de manejar com ar mas, mas viajava sem cano nenhum; dizia: -"Níquites! Desarmado eu completo, eu assim, eles todos mesmo vão muito mais me respeitar, oh, no sertão". Ele me viu afinar mira, uma vez, e me louvou, por eu, de nascença, saber tão bem, na horinha, segurar de não respirar. Mesmo dizia: -"Senhor atira bem, porque atira com o espírito. Sempre o espírito é que acerta..." (1998, 86)

Nas circunstâncias do discurso roseano, o espírito, consoante a perspectiva meta-física que perpassa a narrativa, se confunde com a essência e revela o lado verdadeira-mente humano do homem. Não sem razão essa afirmação é pronunciada por uma personagem experimentada em armas, capaz de ver além da ação de atirar e além da prática do tiro, uma vez que Sempre o espírito é que acerta..., como se o ser físico fosse guiado pelo metafísico, o ôntico, pelo ontológico. Não o fosse, e o atirador Riobaldo não seguraria o ar, como se aprisionasse o espírito no momento do atirar, pois é exatamente o ar, o sopro, que lhe confere a substância, a essência do fogo que dispara não somente da arma, mas, sobretudo, dele mesmo.

É consoante essa substância inerente ao narrador-personagem que a verdadeira transformação de Riobaldo se opera a partir do suposto pacto, quando o ritual a que se submeteu, permitiu-lhe incorporar o nome de Urutu Branco, com todo caráter viperino que a serpente assim denominada encerra. Se Riobaldo já carregava em si o espírito do mal, impresso na capacidade incomum de atirar e de expelir chamas, como o faz a tatu-rana, agora, o fogo, a necessidade de queimar a quem lhe contrariasse, advém de sua interação com as artes do Sujo que, mesmo não tendo aparecido nas veredas mortas, pareceu-lhe incorporar e, portanto, a fazer parte integrante de sua essência. Não o fosse, e não teria se transformado em um ser sanguinário, como o requer o comportamento e o espírito de um verdadeiro jagunço.

Mas, se observarmos bem, a incorporação do mal por Riobaldo, a despeito de constituir um processo, não tem como finalidade absoluta tornar-se mau, mas provar que ele não se encontra em uma entidade fora do homem, mas é inerente ao homem. Exatamente por isso, a personagem se submete a vários rituais, a várias viagens que o transformam não somente em sentido ôntico, físico; mas, sobretudo, em sentido ontológico, à medida que as viagens repercutem, antes de tudo, no conhecimento de si mesmo, em seu espírito. É justamente o espírito, o sopro, que lhe imprime, sem dúvida, o nome mais importante, Cerzidor, que, na conjuntura do romance, não apenas intertextualiza inúmeras narrativas, como El caballero Zifar e Le roman de silence, remendando histórias, mas cose a narrativa, emendando fatos em linguagem. A despeito de fazê-lo somente no crepúsculo da existência, esse apelido é que lhe confere a verdadeira substância de homem, à medida que é a linguagem que lhe permite revelar-se enquanto ser e, notadamente, concluir-se humano.

A percepção do narrar, na perspectiva do Cerzidor, daquele que permeia, inter-cala, mistura e conforma acontecimentos, tal como o vemos no discurso de Riobaldo, imprime à linguagem uma dimensão ontológica que eleva o nome e o substantivo à es-fera do metafísico, a fim de revelar o espírito, a substância do ser que fala e que, em decorrência, utiliza a linguagem autêntica do ser, entendido como aquele que é, que possui a consciência de que está se revelando enquanto ser.

   
2 – IDENTIDADE ONTOLÓGICA NA LINGUAGEM 

Foto: Eugênio Silva - revista O Cruzeiro


O processo de identidade ontológica de Riobaldo passa, sem dúvida, pela linguagem, sobretudo se a entendermos, com Heidegger, como a manifestação do ser. Em seu caso, certamente em decorrência de sua experiência do mistério que envolve a existência, marcada intrinsecamente pelo mal, além do nome em si, a sua transformação em linguagem converte essa personagem em um ser singular. Assim, a peregrinação a que o protagonista se submete, a fim de descobrir-se humano, obedece a um processo profundo, impossível de ser desvelado sem a participação da linguagem e, sobretudo, sem a submissão a um ritual, em que o simbólico e o metafísico se imbricam para a per-feita materialização de um estado de ser, revelado de forma substancial pelo próprio narrador-personagem.

Assim entendido, os rituais de passagem, a que Riobaldo se submeteu, implicaram mudanças metafísicas profundas em sua essência, a ponto de, a cada etapa de sua existência, atribuírem-lhe um novo nome, expressão de um novo ser preparado para exercer funções sociais impossíveis de desempenhar sem que passasse por esse processo. Mas, no momento que Riobaldo se propõe cristalizar a existência em linguagem, além de reviver os ritos por que passou, assume a perfeita acepção ontológica de ser, porque passa por verdadeira logofania, uma vez que a linguagem, para ele, torna-se instrumento de existência e de essência, de substância de homem e de humano.

Aqui impõe-nos observar que se Riobaldo se mantivesse apenas no nível ôntico do existir, ele se revelaria apenas como homem pertencente à humanidade e, portanto, situado no nível do ente. Mas, como foi além e se instituiu como humano, à medida que empreendeu viagem ao interior de si mesmo e elevou-se à condição de ser, conquistou aquele substância responsável pela definição de um estado ontologicamente diferencia-do de quem apenas vive em humanidade. Essa situação de ser, entendido como essência do humano, requer, para se revelar, uma linguagem igualmente diferenciada, a ponto de também assumir feições metafísicas.  

Assim, de nada lhe adiantaria partir de um princípio filosófico-teológico profundo que envolve a existência do bem e do mal para chegar à conclusão de que o mal é inerente ao homem, se não houvesse se convertido em linguagem. É exatamente essa consciência de estar se transformando em linguagem que faz de Riobaldo uma persona-gem singular. Exatamente por isso, sabe que narrar a profundidade da existência requer, também, uma linguagem original, como se fosse a palavra primeira do ser, pois, como ele mesmo o diz,

A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros, acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância.

Esse narrar desalinhavado, fragmentário, constitui uma imposição do discurso de um narrador que se sabe perquirindo as razões do existir e, sobretudo, erigindo a identidade de um ser em busca da substância do humano. Sobremodo, essa forma de narrar caótica materializa o estado de angústia por ele vivido, pois, como diz Heidegger, A angústia nos corta a palavra. Pelo fato de o ente em sua totalidade fugir, e assim, justamente, nos acossa o nada, em sua presença, emudece qualquer dicção do “é”. No caso específico de Riobaldo, em decorrência de narrar o vivido, esse corte da palavra implica cortar a seqüência dos acontecimentos, porquanto se encontra em o real estado de ente. A dicção do ser, do é, da personagem, muito significativamente, só ocorre ao final da narrativa. Justamente por isso, ele, enquanto narrador, confirma outra assertiva de Heidegger, quando diz que O fato de nós procurarmos muitas vezes, na estranheza da angústia, romper o vazio silêncio com palavras sem nexo é apenas o testemunho da presença do nada. Que a angústia revela o nada é confirmado imediatamente pelo próprio homem quando a angústia se afastou. Na posse da claridade do olhar, a lembrança recente nos leva a dizer: Diante de que e por que nós nos angustiávamos era “propriamente” – nada. Efetivamente: o nada mesmo – enquanto tal – estava aí.

Em Grande sertão: veredas, entretanto, não são as palavras que estão sem nexo, como ocorre com a linguagem caótica e, sobretudo, com a bestialógica, verificadas no romance Ulysses, de Joyce, e na peça A cantora careca, de Ionesco, mas a própria narrativa é que se mostra desconexa, como se cada seguimento se compusesse de grandes palavras que materializam estados de ser, em que o narrador tem como meta ultrapassar o próprio nada. Esse procedimento narrativo, além de constituir a identidade de Riobaldo, à medida que ele se converte em linguagem, ainda eleva o discurso à uma dimensão metafísica, resultando da conjunção direta com o ser do narrador-protagonista.

Para revelar-se na inteireza do ser, Riobaldo não se contenta em transformar-se em linguagem, mas a explora, desde dentro, à medida que sua narrativa, além de constituir-se relato de ser humano, é, também, reflexão sobre a própria linguagem, pois ela tem de encerrar a essência do ser e desvelá-la ao suposto ouvinte, ao leitor e, sobretudo, ao próprio narrador que sente a necessidade de mostrar-se para si mesmo. À angústia do existir se ajunta, nesse caso, a angústia de revelar as coisas importantes de uma existência que se fez sob a ótica de um ente que se queria ser, como verificamos nesse excerto:  
Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria en tender do medo e a coragem, e a gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe! (1995, 68-69)

As intenções de Riobaldo são claras: narrar a vida de sertanejo, seja se for ja-gunço não tem importância, somo se isso fosse o natural da existência; mas a matéria vertente, ou seja, aquilo que sai de dentro e desde dentro, a substância do humano, na mais profunda concepção metafísica. Não é sem razão que o narrador empreende um viagem, uma travessia, naquele sentido hebraico de nasa', (sn, mergulho dentro de si mesmo, pois sua linguagem que, em essência, é ele mesmo, é a matéria vertente do ser. E essa matéria constitui-se exatamente daqueles elementos inerentes à condição humana, como o medo e a coragem. A coragem aqui não se refere apenas à disposição de enfrentar as adversidades da vida jagunça, mas a pertinácia imprescindível para ele ul-trapassar a condição de ente e inserir-se na esfera do ser, a que se acessa apenas median-te a conquista da substância do humano.

Nesse afã de narrar o que realmente importa, o de dentro do ser, o vocábulo gã assume uma semântica singular, à medida que se refere tanto à multiplicidade dos im-pulsos por que o ser é movido, quanto ao ímpeto, à gana que impulsionam o narrador à prática de atos, às vezes, maus, para poder descobrir o verdadeiro sentido do existir e, sobretudo, do ser. Gã é, portanto, uma força incontrolável que tende para o mal e para o bem, dependendo do sentido que se queira imprimir à existência, notadamente aquele que leva a pensá-la em profundidade, pois, como o próprio narrador o revela, são elas as coisas que formaram o passado para mim com mais pertença: 

Sendo isto. Ao dôido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas -e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção. (1994, 69)

Essa mais pertença constitui exatamente o sertão que assume, nesse momento, a acepção de ser-tão, entendido como a parte essencial do ser, que tem de ser pensada e repensada, porque razão fulcral do existir sendo. Exatamente por isso, é que Riobaldo vai falar do que ainda não sabe, como se ainda não tivesse pensado e nem sido. Mas que, ao ser pensado, permitir-lhe-á falar de um grande sertão, porque entendido não na dimensão geográfica de espaço e de viagem física, mas na esfera do ontológico, em que o ser é.

Assim, a reiteração do verbo falar, considerando o aspecto teosófico que o en-volve, assume uma conotação especial, à medida que falar implica soprar e, portanto, repetir a fala primeira dos deuses, em que sopraram as coisas. Assim, ato de falar é a prova maior de o homem ser, porque, nele, extravasa a sua essência e, em decorrência, afirma a própria identidade existindo e sendo. Justamente por isso, Riobaldo fala do sertão, ou seja, do espaço em que ele vive e, sobretudo, do espaço em que ele é, median-te um mergulho dentro de si mesmo, já que se conforma à perspectiva do homo viator, ou seja, daquele que viaja dentro de si mesmo e, em decorrência, dentro da fala, dentro da linguagem.

Para empreender essa viagem, entretanto, é necessário conhecer-se. Por isso, poucos se colocam em viagem, porque ainda não se sabem, e esse viajar é um ato, im-plica a plena consciência de se estar sendo. Por isso, Só umas raríssimas pessoas − e só essas poucas veredas, veredazinhas o sabem. A imagem das veredas traduz bem esse pouco saber-se do ser sendo de que fala o narrador, pois elas representam um momento de sertão em que o verde predomina, ou seja, um momento em que o ser se diferencia do ente, das coisas. Como poucos chegam a diferenciar-se, porque a maioria apenas passa pela existência, mantendo-se somente no nível do existir, também o uso da palavra no diminutivo, para colocar o ser no estado de matéria e, não, na dimensão metafísica.

Além disso, veredas significa trilhos, caminhos estreitos por que se anda pelo sertão e pelo ser tão. Ora, considerando que o caminhar dentro de si mesmo é um cami-nhar estreito, difícil e raro, elas representam esse estado de ser tão, em que mostram as dificuldades e a raridade de ser em essência. Assim entendido, o diminutivo veredazi-nhas, ao diminuir o espaço físico, sugere também a precariedade do espaço metafísico do ser e a raridade de o ser ascender à essência.
  
Não sem motivo, o narrador fala. Emprega a primeira pessoa do singular, do presente do indicativo, porque possui consciência plena de seu narrar, de estar regis-trando uma história, não como alguém que apenas fala do outro, mas como alguém que  exerce a função de sujeito, de ser sendo. Nesse caso, o eu que fala, ao contrário, por exemplo, do eu de Mersault, é um eu que se afirma, que se mostra em uma dimensão ontológica, pois se sabe em transformação e em conformação de linguagem. Essa dife-rença de ser e de ente, ou seja, de revelar-se e de ser revelado, de ser fala de si mesmo e de ser fala do outro, mesmo falando de si mesmo, como ocorre em O estrangeiro, de Camus, ou como se verifica com o eu do narrador de A terceira margem do rio,  perce-bemo-la, também, nesse trecho, em que o narrador diz claramente que as pessoas não estão sempre iguais, porque em constante construção ou em constante não se fazer, por-que destituídas da consciência de sua historicidade e, em conseqüência, da necessidade de ser linguagem:  

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam.

Portanto, as pessoas que ainda não foram terminadas são aquelas que estão sempre em vir a ser, como o requer o estar no mundo para o ser, ou aquelas que nunca estarão terminadas, porque sempre em estado de ente, de objeto, posto que incapazes de empreender a luta necessária para a conquista da essência. São aquelas que mudam, mas sempre para menos, aquelas que desafinam. O desafinar-se implica, durante o narrar, não assumir a linguagem e, em decorrência, ser fala e linguagem de outro, como ocorre, necessariamente, nas narrativas de terceira pessoa, ou de narrador demiúrgico.

Por outro lado, as pessoas que afinam, são aquelas que, como o faz Riobaldo, lutam para ser, para conquistar a substância do humano, e, por isso, registram-se na his-tória mediante o cristalizar-se em linguagem, assumindo a subjetividade da narrativa, a fim de afirmar-se na existência e na essência. São os narradores que, como Riobaldo, falam o ser tão de si mesmos. Não sem razão que ele repete, à exaustão, que Viver é muito perigoso, porque, quem não se converte em linguagem não cristaliza o seu ser.

É consoante essa visão ontológica da linguagem, do revelar-se, que Riobaldo teme o ato de falar, o ato de converter-se em palavra, mesmo sabendo da necessidade de desvelar-se, pois entende bem que falar para si mesmo é o mesmo que não falar, porque o monólogo, nestas circunstâncias, converte-se em uma espécie de autofagia, como se ele engolisse a si mesmo, enquanto que falar para o outro transforma-se em revelação do ser, em epifania:

Não sei, não sei. Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu amigo mas meu estanho. Mas, talvez por isso mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o mundo se fala?

A verdadeira presença do outro, real ou fingida, como percebemos pela trecho acima, é imprescindível, pois, mesmo parecendo  que se esteja falando para si mesmo, uma vez que o ouvinte logo longe de se via embora, está se mostrando, como o requer a própria essência da linguagem. O falar para alguém, além disso, constitui uma forma de arredar mais de si aquilo que não presta e que faz parte da essência mesma do ser, mas que o falar possibilita anular, mesmo que seja de forma fingida, pois que o que interessa é o revelar-se, o converter-se em linguagem e, não, o esconder-se, o emudecer-se, possível quando não se está vivendo o humano em plenitude. Justamente por isso, narrar não é fácil, uma vez que, nas circunstâncias de uma narrativa existencialista, de cunho metafísico, é preciso achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. A colocação da palavra rumo no diminutivo, no caso, em vez que de diminuir-lhe a importância, avulta-a, uma vez que resulta do ato de remexer o vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de feito, mue coração, naquelas lembranças:

O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de feito, meu cora- ção, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a idéia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. Às vezes não é fácil. Fé que não é.
     
Não se trata, porém, de um vivido qualquer, a despeito de possuir pouco caroço, mas de pensar a existência e enfiar-lhe a idéia, ou seja, o pensamento de si mesmo sendo e existindo, transposto para a linguagem.

Mas, a maior evidência de que a personagem-narradora se transformou em lin-guagem, vemo-la no momento em que se descobre humano, em decorrência de o mal fazer parte da essência mesma da humanidade. Nesse instante, todas as suas dúvidas se dissipam, porque o mal é intrínseco ao ser humano e, não, algo que existe fora dele, personificado na figura do Diabo, como ele mesmo o diz:

  Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem hu-mano. Travessia.

A assunção da linguagem e da certeza de sua identidade de humano se materiali-za na afirmação peremptória: É o que eu digo, se for..., uma vez que mesmo aquela forma inusitada de narrar, indo-voltando-indo, agora se torna incisiva, confirmando tudo que fora narrado em profundidade de forma desalinhavada, como se o narrador, imitan-do o fecho de um discurso, dissesse: Ait, Disse, ou seja, nada mais resta a se dizer, se for... Não o fosse, e o romance não encerraria com um símbolo, que transfere a lingua-gem para um nível cósmico, porque substantivada em infinito. A linguagem semiótica, no caso, constitui a essência de tudo que Riobaldo narrou e, em decorrência, a manifes-tação de sua essência, de sua substância de humano, convertendo-se em palavra de ver-dade e da verdade, de identidade ôntica e ontológica do narrador-personagem.

BIBLIOGRAFIA


CASTRO, Manuel Antonio de. O homem provisório no Grande Ser-tão. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 1976.
FERNANDES, José. O existencialismo na ficção brasileira. Goiânia: UFG, 1984.
───── Literatura e esoterismo. Signótica. Goiânia: UFG, 1993.
───── O poema visual. Petrópolis: Vozes, 1996.
───── O interior da letra. Goiânia: SMC, 2007.
───── A terceira margem do silêncio. www.poetacriticojf.blogspot.com.
HEIDEGGER, Martin. El ser y el tiempo. México: Fondo de Cultura Economi-ca, 1962.
ROSA, João Guimarães. Ficção completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1995.
YANNARAS, Christos. Philofophie sans rupture. Genève: Labor et Fides, 1986. 

Irma Galhardo - Ensaio Poético



RIOS E GÊNEROS LITERÁRIOS 


Conheço muitos rios: Rio das Éguas, Rio São Francisco, Rio Formoso, até o Rio Tâmisa! O Rio Tocantins, porém, é especial!

Nasci às margens do Rio das Éguas, um rio corrente, de águas puras e cristalinas, o mais lindo que já vi. Para mim, é como se fosse poesia. Poesia em seu mais amplo sentido! Tive minha infância e adolescência banhada por suas águas e chorei sua ausência quando fui estudar em Goiânia, onde rios com nome de meia e leite* não calçaram nem nutriram minha saudade. O Rio das Éguas continua em meu coração como o poema mais lindo já escrito.

O Rio São Francisco foi meu segundo rio. Eu, com apenas quatro anos o atravessei pela primeira vez em um pequeno barco a remo. Uma coisa gigante que parecia que não acabava mais! Depois continuei atravessando, pois ficamos morando por um tempo em Bom Jesus da Lapa, na mesma época que o Capitão Lamarca desertou e passou por lá. Eu sempre assustadíssima, pelo rio, pela história mal contada sobre o Lamarca e pelos peixes que sabia que haviam ali: surubins gigantes que comíamos na semana santa, ao leite de coco, postas enormes que denunciavam o tamanho. O São Francisco, para mim é como uma novela. Sua existência em minha vida não foi longa, porém intensa. Cheia de episódios marcantes, como a chegada do meu irmão, minhas primeiras memórias de cinema e minha consciência de muita coisa no mundo.

O Rio Tâmisa eu o cruzei por cinco meses. Há tanta história em seu leito, que deixo a extensa produção cinematográfica falar por mim sobre o assunto. Direi apenas que também morri de amores por ele. Trouxe comigo pedrinhas do seu leito, bem lisas e redondas, lapidadas por milênios! Em termos de comparações literárias, para mim se assemelha a um conto. Claro que um conto muito envolvente, de um medalhão tipo Machado de Assis. Ou, para ser mais europeu, tipo um Tchecov ou Maupassant.

Tem um outro Rio bem cantado,aquele que Gilberto Gil insiste que continua lindo. Tom Jobim disse que foi feito para ele e Vinícius popularizou seu bairro na canção mais ouvida no mundo! Dele não vou falar, porque só irei conhecê-lo em Janeiro. Nem sei se existe rio por lá, sei do mar e de suas famosas praias. Rio, rio demais! Para mim, não passa de um ensaio. Longo, pois são tantos anos que ensaio conhecê-lo, que até perdi as contas.

Muitos outros rios passaram por minha existência. Envolvi-me com todos sentimentalmente, pois tenho muito de elemento água em mim. Foram assunto do meu dia, porém, breve, duraram apenas o tempo de uma crônica.

Mas, o Rio Tocantins... Ah, esse é denso, longo, interminável como um romance! Apaixonante como aqueles romances que não queremos que acabem nunca, como uma Montanha Mágica do Thomas Man. Ou para ser mais nacional, um “O tempo e o Vento” do Érico Veríssimo ou “A República dos Sonhos” de Nélida Piñon.

O Rio Tocantins toca fundo, ao mesmo tempo é mistério e poesia. É história, fonte de alimentos e elementos folclóricos, possibilidade de locomoção que ajuda no desenvolvimento da região. É vida! A vida do tocantinense está intimamente ligada ao rio, não é à toa que ele empresta o nome ao estado. Quem banha em suas águas fica eternamente refém dos seus encantos. Em cada cidade ele assume um charme diferente! Quem conhece Miracema sabe bem do que estou falando. Lá a praia, ou o local de lazer assim chamado, é submerso. Com mesas, cadeiras e pessoas com água até a cintura. Os bares e palcos são flutuantes ou palafitas e o salão de dança fica na água. Com a alegria inundando tudo!

Do outro lado do rio está Tocantínia. É impressionante como o mesmo rio assume características diferentes na outra margem. Os moradores também. Tocantínia e Miracema, separadas apenas pelo rio, tem habitantes com realidades tão diferentes como suas margens. Só quem morou em Tocantínia sabe dos seus predicados, escondidos na simplicidade e aconchego do seu minúsculo mundo. Cidade de muitos índios, para mim é o lar da Buiúna, personagem lendária de um livro meu. Foi lá que ouvi sobre a Buiúna, a primeira vez. Ali crianças me contaram da cobra gigante e de como as águas saiam do leito para dar lugar ao monstro, tão caudaloso como o próprio rio. Morei em Tocantínia, concebi aí minha primeira filha e tive que cruzar águas para trazê-la ao mundo em Miracema. Foram tantos acontecimentos importantes testemunhados por esse rio, tantos sentimentos como só em romance! Um longo romance que fica para sempre, como o rio Tocantins, que deságua em nossas vidas transformando tudo em uma linda história de amor, um verdadeiro romance!

Francisco Perna Filho - Conto



Do lado de cá 




                                                                                                           
Era sexta feira, me lembro bem, eu acabara de deixar a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, quando ouvi pelo rádio do carro a notícia fatídica, estava atônita, descontrolada, enfiei as mãos no apito, joguei o carro para o acostamento, não sabia mais o que fazer. Só pensava no pior. “São inúmeros os cadáveres, não se sabe ao certo, quantos são. Uma verdadeira chacina”, dizia o locutor da Rádio Bandeirantes. 
                                                                                                                                                                     
São pavorosos os olhos da morte, mas pavor mesmo é quando ela vai em direção à vítima, sem lhe dar tempo, como o projétil que ganha velocidade e consistência impulsionado pelo ódio de quem desfere o tiro.

Não importa como, apenas mata-se ou morre-se. Ou você está do lado de cá ou você está do outro lado. Matar ou morrer pode ser conjugado a qualquer tempo, em qualquer lugar. Pode ser agora, como ele aí no chão, estrebuchando. Pode ser depois, no futuro, como foi comigo, quando jurei matá-lo.
 
Quando abri os olhos, o ambiente era outro, calmo, as pessoas usavam branco. Levantei um pouco a cabeça e pude ver a minha mãe que se aproximava, a percebi um tanto abatida, quis chorar, mas não o fiz, até porque não me lembrava de quase nada. Naquele momento dei-me conta de que estava num hospital, de que havia batido o carro. Apenas flashes, apenas confusão mental. “Ele morreu, o Marquinhos morreu, o seu primo estava entre os mortos do Carandiru”, disse a minha mãe. “Foi brutalmente assassinado, como qualquer um ali.” Não lhe deram chance alguma. Coitado, tinha apenas vinte e dois anos. Não acreditei, o que era flash foi tomando consistência, lembrei-me da notícia ouvida no rádio do carro. Quis levantar-me, mas fui contida pela enfermeira.
 
Nada arrefece o ódio, principalmente quando ele é de morte, pois contraria os ditames do perdão. O que vale mesmo é a intenção, a vontade de consumar o ato. A certeza de que não vamos falhar. Dependendo da vítima, o projétil pode ser de chumbo, prata ou ouro, mas para ele foi de chumbo mesmo, com a sua própria arma, um único e exclusivo tiro, à queima-roupa: pá! Assim mesmo, seco, como a batida de uma acha de lenha. O que importava naquele momento era o ódio, era o alvo.
 
Ainda era cedo, acabáramos de transar, porque amor mesmo eu não fazia, eu não trazia este sentimento comigo, até porque, mesmo que quisesse, não poderia, eu não estava ali para amar, apesar dos momentos agradáveis que vivemos e dos presentes que ele me dava. Eu já havia me vestido, ele insistira em deitar-se no sofá, falei para ele do recado na secretária eletrônica, da declaração de amor que ficara gravada. Perguntei quem era aquela mulher. Ele, ríspido, gritou comigo, falou que eu era paranóica, ciumenta, que daquele jeito não dava mais para continuar. Pedi explicação, ele esquivou-se, falei que não aceitaria aquela vagabunda entre a gente, ele retrucou. Levantou-se bruscamente, veio em minha direção, era o que eu precisava, dei um passo para trás, peguei a arma que ele guardava na estante lateral (ele tinha uma em cada lugar estratégico da casa, disso eu sabia, motivos das minhas hesitações), engatilhei-a, ele tentou me conter, pediu “por favor”, disse que me amava. Mas não adiantava mais, era tudo o que eu precisava. Naquele momento só me lembrei do coronel autorizando a invasão ao presídio, talvez imaginasse que estivesse fazendo uma limpeza justa. “Eram todos bandidos, mesmo”, só não pensou nas conseqüências, pensou que aqueles “ali” não tivessem família, que ninguém choraria por eles. Mais grave, entre os mortos, muita gente era primária, estava ali por interpretações mal feitas de algum juiz. 

Aos olhos da sociedade, o que eu fiz foi bárbaro, não tão bárbaro como o meu estratagema para atraí-lo, para seduzi-lo e matá-lo. Lembro-me bem, foi nos jardins, na casa de um ex-professor da faculdade, que era muito amigo do coronel. A partir dali, ensaiei cada lance, cada jogada. Muitas vezes vacilei, senti vergonha de mim, mas resisti. 


Se eu me arrependo? Claro que não, só sinto por não estar atenta às câmeras de segurança. Vacilei, mas quem não vacila? 

Imagem retirada da Internet: alvo

Francisco Perna Filho - Crítica Literária

Jádson Barros Neves - Foto: Facebook - Perfil do autor


 “Eu contemplava uma fotografia de Steve McCurry, que mostra um peregrino na aldeia de Tagong, no Tibet, coberto por um ponche e com um pedaço de pano vermelho na altura da cabeça, o que lhe dá o aspecto de um galo gigante, seguido por um cavalo e passando lentamente por várias casas abandonadas. Era de madrugada, eu olhava a figura e me veio o título do livro. ” 



CONSTERNAÇÃO: possibilidades para um título





Justificando o porquê de seu livro de contos (14, no total) intitular-se “Consternação”, o escritor tocantinense Jádson Barros Neves explica: “Eu ouvia a música ‘Fado Tropical’, de Chico Buarque e olhava a tarde pela janela de minha casa, quando o título me caiu nas mãos.” E outra vez tentando justificar o título gesticula, e fala sumido: “Eu contemplava uma fotografia de Steve McCurry, que mostra um peregrino na aldeia de Tagong, no Tibet, coberto por um ponche e com um pedaço de pano vermelho na altura da cabeça, o que lhe dá o aspecto de um galo gigante, seguido por um cavalo e passando lentamente por várias casas abandonadas. Era de madrugada, eu olhava a figura e me veio o título do livro. ” Depois, ele se cala num silêncio que parece trazer outros silêncios de outras tardes ou madrugadas das várias cidades onde morou no Brasil.



Qualquer definição dada a “Consternação” nasce direcionada ao fiasco, pela abertura que o livro apresenta. É costume, ao se nomear um livro de contos, extrair o título de um conto para se intitular o livro. Geralmente se usa aquele conto de maior peso. Porém, qual conto escolher nessa constelação de 14 contos que o talentoso e premiado escritor Altair Martins, numa resenha brilhante, classificou como “o autor que, entre nós, melhor domina a luz no espaço narrativo”?

Cabe, assim, outra explicação fornecida pelo escritor: a de um título aglutinante, pois o sentimento de consternação permeia todos os textos, seja como expressão angustiosa dos narradores, anseios das personagens ou reflexo no leitor.

No conto “A toalha”, o narrador, sem memória e diante do inescrutável, alinhava explicações para os fenômenos sobrenaturais que assediam o lugarejo onde vive: “Devíamos ter aberto as portas para os cães. Eu tinha talhado as portas das casas, bem sólidas, para que as pessoas se trancassem da noite. (Portas) Servem para fechar casas, tornar perdidos os homens. Uma porta aberta, uma ameaça; fechada, a proteção de uma pequena república. As pessoas gostam de portas de todos os tipos, você sabe.” 

Da resenha escrita por Altair Martins: “O de sempre é que tudo isso é bem feito, com uma justeza e precisão onde se entrevê um Faulkner ou um Rulfo.” Justamente Rulfo, em cujos contos o latido dos cães sinaliza a vida. A ausência, o desamparo, a morte. O conto que abre o livro, “O cachorro e os cães”, sem cães, metaforiza a apropriação degradante que a língua exerce até sobre aquele que é considerado o mais confiável dentre os animais.
 
De modo insuficiente, a confissão do narrador de “A toalha” poderia solidificar o “espírito” do livro. Porém, o que dizer do conto onde um rapaz é obrigado a matar o próprio avô? Ou do pistoleiro que desde o início tem o destino selado pela esposa, primeiro quando é induzido por ela, em “Entre eles, os corrupiões”, a salvar o cunhado – irmão dela – e depois em outro conto, quando é morto pela mesma pessoa que salvou?  E o que pensar do conto do homem que, no futuro, vislumbra em silêncio uma infância de cuja existência não ter certeza? Ou do rapaz que vende o pouco que possui para garantir três ou quatro anos de vida sossegada a um cavalo que o sustentou a vida inteira? Todos os textos mudam de aspecto (e até sentido), conforme a abordagem do leitor.

Cortázar, contista e teorizador do conto, explica que há algumas constantes que fazem uma narrativa ser um conto. Dois elementos essenciais, segundo ele, são a intensidade (despojamento) e a tensão, entendida aqui como aquele jogo de palavras, imagens e ideias que tornam o leitor cativo do texto. Com um perfeito equilíbrio entre a tensão e intensidade, os contos de “Consternação” cumprem o papel a que se propõem, além de serem habitados por histórias secretas, que muitas vezes emergem com um final aberto, tornando-os lúdicos, passíveis de múltiplas interpretações e (ou) recriações, “escondendo o que mostram e mostrando o que escondem”. 

Na tarde do lançamento do livro, dia 16/11, na 59ª Feira do Livro de Porto Alegre, o escritor comentou sobre a geografia do livro: “É uma realidade provisória, que tentei fixar no tempo, usando a poesia dentro da narrativa. Nada disso existe mais. Talvez nunca tenha existido realmente. Talvez eu tenha sonhado. Mas estive lá, garanto.”

Sonhada ou não, vivida ou não, a realidade é reinventada, recriada, com pistas falsas que desnorteiam quem se aventura a cartografar os contos: a realidade criada, “suspensa do solo”, como quer Jádson, tem essa finalidade, “de forma que o leitor sinta-se andando na neblina, sem visão à frente. Caberá a ele, o leitor, encontrar o próprio caminho na névoa.” Assim, sem doutrinar, o escritor estabelece o jogo entre leitor e narrativa.


*Francisco Perna Filho é Crítico Literário, Mestre em Estudos Literários – UFG e Poeta. 
Texto originalmente publicado na edição de hoje, 5 de dezembro de 2013, no Jornal do Tocantins - Palmas - TO.

Francisco Perna Filho - Ensaio Crítico


ESPELHADO DE CÉU MUITO SERENO




Depois de morar em São Luis do Maranhão, Cuiabá, Palmas, Goiânia e Fortaleza, Jádson Barros Neves voltou à sua pequena cidade, Guaraí-TO, para uma jornada de intensas leituras e escritas.

Leitor de William Cuthbert Faulkner, estudioso contumaz das nossas Letras, traz na alma, um tanto quanto inquieta, os causos, lendas e mitos da Região Norte, principalmente do sul do Pará, onde trabalhou como vendedor de secos e molhados, juntamente com seu pai, já falecido.

Jádson, ao longo dos seus quarenta e dois anos de existência, vem construindo um trabalho de fôlego na narrativa contemporânea brasileira, mais particularmente na categoria conto. Detentor de diversos prêmios literários, tanto no Brasil, como no exterior, valendo destacar o Concurso Guimarães Rosa/Radio France Internationale.

Enquanto o primeiro livro não chega, Jádson vai se firmando como escritor, conquistando novos leitores e novas premiações, como recentemente o fez, nos 40 anos da UNICAMP, quando teve o seu conto “O Funil” incluído no livro “CONTOS – UNICAMP ano 40” (Editora da Unicamp,2007).

Ambientado num vilarejo qualquer, às margens de um rio qualquer, da memória do autor, o conto nos fala de companheirismo e perdas. Conta a história de Suzana, viúva de Orlando, e a do seu cunhado, José, na incansável busca para encontrar o irmão que fora tragado pelo rio quando nadava de volta para canoa, após recuperar a sua vara de pesca que caíra na água.

Narrada em terceira pessoa, intercalada por idas e vindas, irrompendo, às vezes, o discurso direto e o discurso indireto livre. O tempo narrado compreende quatro dias na vida dos personagens, desde a Sexta
à tarde, quando Orlando caiu no rio, o Sábado e Domingo de buscas, até Segunda feira, quando o corpo foi encontrado.

Já de início, pode-se ver a força narrativa de Jádson, as belas imagens com que trabalha, consubstanciadas pela força lírica do seu texto. Como se pode conferir neste trecho:
“José havia remado a tarde inteira, por mais de dez quilômetros, rio abaixo, e também havia procurado ao longo do delta, nos baixios e nos remansos e agora estava exausto. Subia a ladeira que dava no vilarejo, onde uma lua gorda, amarela, nascia atrás da colina da igreja. Quando passava, as pessoas olhavam-no em silêncio, e José as cumprimentava e baixava a cabeça e as pessoas também baixavam a cabeça. Era um coro só, o coro do silêncio. José vinha adoecido daquele crepúsculo rápido e sangrento, daquele fim de inverno chuvoso, que ainda repercutia no horizonte em forma de relâmpagos esparsos.(...)”.

Com assomada capacidade perceptiva Jádson Barros Neves consegue, pela plasticidade de suas imagens, compor a atmosfera propícia para o fato narrado, como quando descreve a velha casa onde moram José e Suzana e, outrora, Orlando:

“A casa onde ela morava era velha, pintada de um amarelo corrompido pela ação das intempéries e descascada pelo sol. Esquecida, quase abandonada há anos, suas duas portas, suas três janelas fechadas, com fendas na madeira, guardando o silêncio e a poeira de muito tempo de esquecimento”.
Assim como a descrição encimada, muitos outros belos trechos são marcadamente inesquecíveis, como o que segue:

“Ela concordou mais uma vez com a cabeça e José foi fechando os olhos lentamente, contemplando a imensa lua amarela que sangrava perto da janela e lembrando do quanto era bonita a chuva no delta. Vira-a à tarde, uma cortina escura, que cavalgou escurecendo o horizonte”.

Percebe-se aqui, pelas passagens lidas e superficialmente analisadas, o pleno domínio da narrativa curta por Jádson Barros, a primazia com que tece as tensões nas suas histórias, sempre carregadas de muita reflexão e humanidade. Um voltar-se sobre si mesmo, revelando e encobrindo, causando no leitor a vontade de seguir adiante, como bem nos ensina Wendel Santos:

“O conto forma-se sob o anseio de duas tensões: o de revelar e o de encobrir. Tais tensões podem compor-se de modo o mais diverso. Há o conto que alterna revelação e encobrimento; há o conto que, de início, revela um mínimo suficiente para despertar a curiosidade leitora e, em seguida, numa ordem de crescimento constante, encobre seu objeto até o ponto em que é necessário outra vez revelá-lo(...)”

Jádson sabe muito bem do que fala Wendel Santos. Ele tem pleno domínio da técnica e da arte da escrita, sem falar no seu apurado senso estético. Adentrar a sua obra é permitir-se participar desse jogo, dessas tensões, para uma jornada de acontecimentos. O leitor está convidado a conhecer mais de perto o poder criativo deste autor tocantinense, que, sem medo de errar, faz parte do que de melhor há na Literatura Brasileira. Boa leitura!.

Fonte da Imagem: com conto

Francisco Perna Filho - Ensaio Curto

Carlos Fuentes



ESPAÇO E PRECONCEITO


Há muito que ouço e leio julgamentos do tipo: “esses são poetas menores”, “aqueles são poetas maiores”. Fale-se muito, classifica-se sem critérios, abusa-se de chavões, mas consistentemente nada se tem de concreto. Sobressaindo-se os ditos “Grandes” os “consagrados”, os “intocáveis”, donos de uma obra magistral. “A melhor de todas”. Já ouvi muito dos “ditos consagrados” e olha que as academias, os salões, as agremiações, estão cheios desses imortais indivíduos, tão sonhadores nem quem tempo têm para realidade.

Para a realidade literária, aquela que bate à porta, que clama para ser lida e ouvida. Aquela que está na rua, nas velhas cidades, na universalidade dos becos, no lirismo da despedida. Uma realidade que pulsa na Internet, nos blogs, nos fóruns, nas revistas eletrônicas, exemplo, a Bula.

Franz Kafka
Lembro-me de ouvir por aí, da boca de muitos intelectuais, que eles jamais escreveriam para blogs, para revistas eletrônicas, que isso seria rebaixar-se; que tais espaços não tinham a nobreza para comportar tamanha erudição e imortalidade. Que bobagem! Eu dizia, e ficava observando, escrevendo, refletido. E vi quando as coisas começaram a mudar, quando os nossos intelectuais, os renomados, passaram a descobrir o alcance que tem a Internet. Descobriram também que revistas como esta não se faz do dia para noite, é preciso paciência, seriedade, determinação e bom conteúdo.

A propósito do que estou dizendo, lembrei-me de Julio Cortázar, escritor argentino, numa entrevista concedida ao jornalista uruguaio Omar Prego, ao ser perguntado sobre as influências sofridas pelos autores latino-americanos, e a resistência deles em aceitar tais influências, principalmente quando os pais intelectuais eram, também, latinoamericanos. E, mais ainda, a recusa desses escritores a escreverem o que consideravam como gêneros menores: romances policiais, rádionovelas e memórias.

Julio Cortázar
A esse questionamento, que agora transcrevo, Julio Cortázar, inteligentemente, responde perguntando: “Será que isso não vem das falsas categorias de valores que existem na literatura, e em tantas outras coisas nesta vida? Porque em outro nível ocorre o caso de escritores que recusariam, horrorizados, um eventual convite para que escrevessem radionovelas. Porque consideram que a radionovela é um gênero secundário, insignificante, e eles não poderiam concordar em fazer uma coisa dessas. Raciocínio sumamente sofismático, porque tudo se resolveria fazendo boas novelas de rádio, que aliás existem(...)” e completa “(...)Em Cuba, por exemplo, mais de uma vez disse aos escritores cubanos, que se queixam de não serem editados, principalmente os jovens: “vocês se queixam porque não são editados, e na realidade vocês deveriam é tomar de assalto e se apropriar dos novos meios de comunicação cultural de Cuba, ou seja, o rádio e a televisão.” A resposta é sempre a mesma: “Ah, isso não, eu sou poeta”, ou: “Eu sou romancista.” Consideram indigno pôr a mão em outros meios de comunicação”. Pena não ter ele, Cortázar, durado para contemplar, estupefato, a explosão que é a Internet. Talvez dissesse - como diria meu pai: - Um colosso!

Rompido o preconceito, abertas as portas da interatividade, muitos questionamentos surgem, suscitados pelo espaço democrático que temos aqui na Bula, um desses questionamentos diz respeito ao que foi colocado logo atrás a respeito da fala de Cortázar e do que mencionei no início deste texto: o quanto somos preconceituosos quando o assunto é arte, principalmente Literatura e, mais ainda, quando essa literatura é brasileira.
Juan Rulfo
Na edição passada - há uma discussão sobre o valor de alguns críticos literários, como Harold Bloom: se ele tem ou não tem competência ou se é um mero modismo inventado pela mídia, como também o fora “Claude Levy Straus”. Depois disso, para atender a uma amiga, doutoranda, do Carlos Willian, vieram as batidas listas: “melhores obras”, “maiores autores”(aqui entraria Julio Cortázar, que era altíssimo, e que recebeu de Juan Rulfo, o seguinte comentário: “Tem um coração tão grande que Deus necessitou fabricar um corpo para acomodar esse coração.”), dos “melhores filmes”. Há uma repetição, as mesmas obras, os mesmos autores, algo muito fechado, desconsiderando o quanto de coisa maravilhosa existe na Literatura universal, na Literatura Brasileira Universal. Todas as obras citadas nessas listas têm o seu valor, são grandes, sim, mas se considerarmos que são listas pessoais, são tão iguais, mas tão iguais que parecem não permitir que se fale de outras obras.

E.T.A. Hoffmann
Pensemos, por exemplo, em E.T.A. Hoffmann, Juan Carlos Onetti, Franz Kafka, Carlos Fuentes, RuanRulfo, Autran Dourado, Murilo Rubião, Willian Faulkner, Alenjo Carpentier, e, claro, Gerardo Mello Mourão, autor do grande poema épico “Os Peãs”; do tão maravilhoso: “Invenção do Mar”; e do mais musical deles: “Cânon & Fuga”, do qual transcrevo poema a seguir e aproveito para encerrar parte desta reflexão:
Gerardo Mello Mourão

O que as sereias diziam a Ulisses na Noite do mar


                                                                                                                    Sobre a frase musical de Ivar Frounberg
       “Wassagen die Sirenenals Odysseus vorbeisegelte”



Ninguém jamais ouviu um canto igual
Ao canto que te canto
Escuta: as ondas e os ventos se calaram e a noite e o mar
Só ouvem minha voz – a noite e o mar e tu
Marinheiro do mar de rosas verdes:
Virás: é um leito de rosas e lençóis de jasmim – e ao ritmo
De teu corpo entre a cintura e as ancas
Mais o lençol de aromas de meu corpo
Em monte de pétalas desfeito:
E dormirás comigo
E os que dormem com deusas
Deuses serão
Vem dormir comigo
E comigo
e todas as sereias.
Todas as deusas se entregam
ao amante que um dia possuiu uma deusa
e então todas as fêmeas dos homens
Helenas, Briseidas e a Penélope tua
hão de implorar às Musas – e as Musas a Eros e Afrodite
a volúpia de uma noite contigo.
Não partas!
Se partires
As velas de tua nau serão escassas
Para enxugar-te as lágrimas – e nunca
Nunca mais tocarás a pele das deusas
Nunca mais a virilha das fêmeas dos homens
E nunca mais serás um deus
E nunca mais a melodia de uma canção de amor
Dos hinos do himineu:
Abelhas mortas para sempre irão morar
Na pedra do jazigo de cera
De teus ouvidos cegos.
Mas vem
E vem dormir comigo
E comigo
E minhas mãos irmãs e todas
As sereias do mar
As sereias da terra
E as sereias dos céus.

Texto escrito em maio de 2008.

In. O Rio Tocantins engoliu meu Avô. Goiânia: PUC Goiás/Kelps/Prefeitura de Goiânia, 2012, p.51-54.

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